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sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Erros de "escrivinhação"

Pois se há erros de gravação nos extras do DVD, porque não os erros de escrita no blog ao final deste mês que, Caio Fernando Abreu concorda, é um dos mais longos e chatos do ano: agosto? E não adianta, Rubem (o Fonseca), fazer livro com o nome do mês. Ele é um ingrato mesmo. Muitos contos se iniciam e se perdem nesse mês... É assim sempre! Todo ano. Há dois anos atrás foi um livro que comecei em agosto... E este ainda está parado no oitavo capítulo, dos 30 que eu havia planejado.

Pois segue então três pequenas tentativas de colocar coisas para fora:

1- Uma família saindo de férias ao que tudo indica. Um conto para falar sobre como ignora-se o momento em função da pressa de se viver o que se espera.

2 - Uma tentativa de descrever o sexo. É que ainda tenho destas dificuldades... Ainda farei novos esforços e espero que estes sejam menos piegas.

3 - Um começo de texto sobre um dia chuvoso em que ouvi Nine Inch Nails de verdade.


Então, vamos lá:


1 - Era tudo uma grande correria. A casa cheia. Os cães olhando a todos nada entendendo. porque tanto movimento? Para que tanto movimento? A casa nunca fora assim! As pessoas da casa nunca foram assim!

É que ali havia uma bomba, já vou logo dizendo. Não gosto quando os leitores ficam imaginando, tentando avidamente compor todo o quadro da situação.Esta, a situação, sou eu que crio. Não cabe a vocês. Por enquanto, tudo o que lhes cabe é tentar sentir a pressa.

Os passos na escada iam velozes! Subiam e desciam pessoas a todo o momento. O pai gritava: por favor, rápido! Vamos nos atrasar. A mãe respondia: Querido, você já disse isso um milhão de vezes. E a filha falava: Aí que saco! Detesto férias!






2 - Era puro tudo aquilo. A pureza exalava pelos poros de cada um. Uma beleza sutil, simples. Um campo verde e plácido.

Os olhos se olharam. Não se viam, contudo. Iam além daquela superfície. Os olhos se olhavam e não se viam a si mas sim aquilo que estava para além deles mesmo: viam-se por dentro e desnudavam-se pelo olhar.

Ficaram assim por minutos. Os lábios esboçavam leves sorrisos. Apenas de canto de boca. Uma fugaz folha caindo ao balançar dos galhos. Um diminuto flerte de um lábio consigo mesmo. Os superiores amando os inferiores e ambos abrindo-se levemente. Era um pequenito sorriso nos lábios de cada um.

Tanto haviam esperado. Tanto haviam imaginado. E agora estavam a apenas um toque de distância. E agora não estavam a nem sequer um passo um do outro, que os olhares os fundiam, os fusionavam. Eram apenas um: um único lábio, com um único e mesmo sorriso, um único olhar que se olhava a si, bem no fundo de si.

As mãos, hesitantes, de ambos ergueram-se em súbita carícia. Tocaram-se. Sentiam-se. Era o momento e a própria superação do momento.

Os pêlos eriçavam-se a cada novo toquezito. Leves toques.

Os corpos se aproximaram. E os lábios se aproximaram. E as peles se aproximaram. E os pêlos se aproximaram. Sentiam-se e estavam ali, presentes, por uma vez.

Em resposta aos toques e ao roçar dos lábios, a respiração ofegou-se. Ela tinha vida própria. Controlava-se. Melhor seria, que ninguém ali seria capaz de controlá-la.

As mãos de cada um, em consonância, passaram por trás dos rostos inertes e tocaram a nuca. Levemente, um frêmito tomara os corpos.





3 - A chuva rasga a pele. Tem dias que a chuva é de rasgar. É sempre em dias assim: frios. É sempre em dias em que entre você e o mundo há uma massa gigantesca de gelo. Em dias assim, tudo o que se precisa é um pouco de calor, seja ele qual for, mas aí vem a chuva.
Hoje queria sol à noite. E queria colo de novo. Sinto-me como uma criança recém-saída da barriga materna. Quero dormir como um feto. Ou balançar-me para a frente e para trás como um autista.
Lembro-me da oração budista "Nam-Myoho-Rengue-Kyo" e a possibilidade de que o mundo mude por conta do muito querer. Hoje, quero que o mundo se desmundifique - Nam-myoho-rengue-kyo - quero que o mundo se nadifique- Nam-Myoho-Rengue-Kyo - quero que o mundo não seja meu mundo - Nam-Myoho-Rengue-Kyo - quero ser um nada, novamente - Nam-Myoho-Rengue-Kyo.
NIN é demais, Lucas. NIN é a salvação neste momento. Sinto como se a música entrasse por mim, me limpasse, arrancasse qualquer coisa de dentro, tudo o que há dentro. A música me escarra.






É isso, queridos. Quem quiser, comentários serão bem vindos... Algum destes deveria ser continuado? SIm, isso seria um bom comentário.

quinta-feira, 30 de agosto de 2007

O passado e a esperança

Esperava-o todas as noites. Os olhos seguiam os instantes passados no diminuto relógio na tela. Sentia o tique-taque no peito. É que no peito havia a esperança, aquela que alimentara ao longo de todo o dia, e que agora era devorada a cada novo segundo. O deus Chronos era um bom pai: comia seus filhos a cada novo instante.

Apesar do frio, gotículas de suor brotavam-lhe da pele. As mãos gélidas moviam o cursor na tela em movimentos repetitivos que lhe reduziam a ansiedade, distraindo-lhe.

Foi assim que começara a usar as pessoas: buscava por elas em todos os lugares, as seduzia, as mantinha entretidas e, ao menor sinal de que ele viria, as abandonava.

Contudo, isso era no tempo em que a esperança de falar com ele não era de novo e a cada vez frustrada, em que a esperança era sempre satisfeita ao final do dia. Agora, neste momento em que a frustração é o senitmento que mais se presentifica nesta relação, manter-se nesse movimento com as outras pessoas era um risco que não conseguia correr. Muitos são os riscos de viver, ainda mais por sermos seres relacionais. Assim sendo, o que poderia lhe garantir que continuaria a devotar sua espera e seu afeto aquele que se fazia ausente? O que lhe garantia que se manteria fiel a seu desejo? Mesmo que este, o desejo, nunca tenha encontrado vias de se concretizar ainda, mesmo que todos lhe dissessem que o melhor seria esquecer e seguir adiante, era isso o que queria: manter-se fiel a seu desejo.

- Ei! E o que lhe garante que ele se mantém fiel ao que disse desejar? - pergunto-lhe - E o que lhe garante que este afastamento não serve a ele como um moo de decidir-se e sair paulatinamente desta situação de enamoramento?
- Perdão...?
- Quem te garante que ele ainda gosta de você como você dele? Vejamos... Ele tem alguém além de você?
- Er... Ahn... Sim, tem. Namora há algum tempo.
- Pois então... Não teme que ele te esqueça com esse distanciamento?
- SIm, é tudo o que mais temo!
- E se é exatamente isso o que ele quer?
- Distanciar-se?! Não!
- Ué, já imaginou?
- Quam é você que chega assim e vem me falando essas crueldades?
- De que importa?! O que realmente importa é que agora sente-se inseguro! O que mais sente? De qualquer modo... Sou sua própria consciência, por assim dizer.
- É... Sinto-me inseguro. Mas sinto mais é saudade, sabia? Saudade... Assim mesmo, reticente.
- Como é uma saudade reticente?
- É uma saudade que sabe o que falta apesar de não o conhecer. E mesmo sem conhecer o que falta, não há espaço para a falta, porque o sinto aqui, ao meu lado. É como se enquanto estou no computador esperando por ele que não vem, é como se nessa hora ele estivesse ali, sentado na cama e me olhando, e penso: "é por isso que hoje, mais uma vez, ele não vem. É porque não há como vir se ele já está aqui".
- Mas você sabe que ele não está aqui...
- E nem eu estou lá, mas penso que ele pensa em mim.
- E tem certeza?
- Sim! Bem... Talvez. Agora, com tantas perguntas, já não tenho mais certezas, eu acho. Sabe? É como se eu estivesse à beira-mar, bemonde as ondas começam a voltar para as águas. Eis que surge essa grande onda, que me derruba e me suga para dentro do mar, que já não é mar e sim, poço. Essa onde que me suga é você, minha consciência. Quer me levar para o buraco, este em que o mar se abriu. E não há raízes, nem gramíneas, nem gravetos na beira da praia: não há nada em que eu possa me agarrar...
- Pois vejo que é assim mesmo... Vejo, porém, que ainda assim, se agarra a algo. É este algo aliás, que me impede de atingir minha meta de levá-lo para o tal buraco. Que algo é este que te sustenta?
- O que me sustenta é o que já se deu e o que espero que ainda se dará. O que me sustenta é o passado e a esperança, o que já vivi com este que se ausenta e aquilo que sei ainda ser possível viver. São dois: passado e esperança. São eles que me dão o sustento necessário. Eles e o objeto de meu afeto. Mesmo que não o conheça de fato, desconheço mais ainda o que sinto por ele. Isto que agora sinto e que nunca senti antes do mesmo modo. Sabe? Por exemplo, nunca tive ciúme...
- Verdade?
- Pois sim... É isto que sinto que me sustenta, mais que todas as coisas.

Foi assim que decidi retirar-me e parar de questioná-lo. É que nisto que ele sente não há espaço para mim, não há consciência que se sustente diante de tais sentimentos. Não há razão que dê conta.
Ao sair, ainda o ouvi dizer, mais uma vez:
- Certo, mais uma noite... Vem logo, poxa! - para si mesmo, crendo que o outro, por acaso do destino ou do muito querer, seria capaz de ouví-lo.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Da saudade

Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às
vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra
pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos
sentimentos mais urgentes que se tem na vida

(Clarice Lispector)

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Foguete - Maria Bethania

Tantas vezes eu soltei foguete

Imaginando que você já vinha

Ficava cá no meu canto calada

Ouvindo a barulheira

Que a saudade tinha


Tirei a renda da naftalina

Forrei cama, cobri mesa

E fiz uma cortina

Varri a casa com vassoura fina

Armei a rede na varanda

Enfeitada com bonina


Você chegou no amiudar do dia

Eu nunca mais senti tanta alegria

Se eu soubesse soltava foguete

Acendia uma fogueira

E enchia o céu de balão

Nosso amor é tão bonito, tão sincero

Feito festa de São João

domingo, 26 de agosto de 2007

Carta de amor III - A resposta de Marcelo à Beatriz *

Pequena Beatriz, minha vida!

O amor, assim como a vida, é uma dádiva! E só alguns são capazes de dádivas como estas. Há aqueles que morrem a cada instante: a estes esta dádiva não é dada a conhecer.

Confesso que fiquei surpreso com sua carta. Sim, não esperava. A outra havia sido tão seca, tão dura. Em meio a essa dádiva que a vida é, há dores, mas estas passam, como passaram assim que terminei de ler suas palavras. A que sinto agora, esta dorzinha no peito, é um pequenito milagre e chama-se felicidade.

Notei que faltaram algumas coisas em meio ao que fui buscar na portaria do prédio. O Seo Zé, gente fina como sempre, me perguntou se eu e você estávamos bem... Porteiros... Sempre metendo o bedelho... Disse que estava estranhando minha ausência no prédio. Não sei se fiz bem, mas naquele momento disse apenas que eu estava viajando muito a trabalho. Parece que lá no fundo, eu sabia que ainda teríamos outra chance!

Ah! Como gosto de ti, pequenita!

Não me importo com o que aconteceu! De agora em diante, novos caminhos poderão ser trilhados! E quero trilhá-los ao teu lado!

Compreendo tua raiva, teu desespero. Perdoe-me se em algum momento pareceu que te ignorava, mas é que preferia manter-me distante. Melhor: talvez por não compreender o que eu sentia, mantive-me distante todo o tempo, como quando, como você mesma disse, desnudou-se diante de mim, "meus sentimentos expostos e suas respostas escarradas sobre mim". Como fui tolo! Perdoe-me, querida! Não entendia o que se passava comigo... Era a primeira vez que me sentia assim, como agora compreendo: era a primeira vez que o amor me era apresentado na vida e de um modo tão belo: você!

Quero logo que recebas esta carta! Quero logo acertar tudo! Sinto saudade de ter você ao meu lado quando o dia finda e a cama e a casa pertence a nós e aos nossos desejos.

Do seu,
Marcelo.

* Continuação da série de cartas trocadas entre Beatriz e Marcelo, iniciadas em Julho. Não sei como, mas todas elas param aqui em casa depois de abertas...

A saudade em Orfeu

Há dias em que os sentimentos embotam as idéias... Há tanto o que se sente, que não se consegue expor. Nesses dias há o que expor, vejam bem. Muito o que expor. Mas é que apenas o que se tem para expor vem com tantos afetos ligados, que não sai da cabeça e do peito.

É em dias assim que um bom texto escrito por outrem nos valhe e nos vale. Reli o "Monólogo de Orfeu", do Vinícius, e lembrei que é por aí o que queria dizer:

"Aqui
Ficam os meus restos a esperar por ti
Que dás vida!

(Eurídice atira-lhe um beijo e sai).

Mulher mais adorada!
Agora que não estás, deixa que rompa
O meu peito em soluços!
Te enrustiste
Em minha vida; e cada hora que passa
É mais porque te amar, a hora derrama
O seu óleo de amor, em mim, amada...
E sabes de uma coisa? cada vez
Que o sofrimento vem, essa saudade
De estar perto, se longe, ou estar mais perto
Se perto, - que é que eu sei! essa agonia
De viver fraco, o peito extravasado
O mel correndo; essa incapacidade
De me sentir mais eu, Orfeu; tudo isso
Que é bem capaz de confundir o espírito
De um homem - nada disso tem importância
Quando tu chegas com essa charla antiga
Esse contentamento, essa harmonia
Esse corpo! e me dizes essas coisas
Que me dão essa fôrça, essa coragem
Esse orgulho de rei. Ah, minha Eurídice
Meu verso, meu silêncio, minha música!
Nunca fujas de mim! sem ti sou nada
Sou coisa sem razão, jogada, sou
Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice...
Coisa incompreensível! A existência
Sem ti é como olhar para um relógio
Só com o ponteiro dos minutos.
Tu És a hora, és o que dá sentido
E direção ao tempo, minha amiga
Mais querida! Qual mãe, qual pai, qual nada!
A beleza da vida és tu, amada
Milhões amada! Ah! criatura! quem
Poderia pensar que Orfeu: Orfeu
Cujo violão é a vida da cidade
E cuja fala, como o vento à flor
Despetala as mulheres - que êle, Orfeu
Ficasse assim rendido aos teus encantos!
Mulata, pele escura, dente branco
Vai teu caminho que eu vou te seguindo
No pensamento e aqui me deixo rente
Quando voltares, pela lua cheia
Para os braços sem fim do teu amigo!
Vai tua vida, pássaro contente
Vai tua vida que eu estarei contigo! "

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

O passado e a escolha (um texto quase teórico)

Ao homem é dada a possibilidade de reflexão. Heidegger, por isso, nos chama de "entes privilegiados", pois só à nós é dada a possibilidade de refletirmos sobre o nosso próprio existir. É por conta dessa consciência que temos de nós, aliás, que somos. Kierkegaard dirá: o eu é relação que se estebelece com a relação estabelecida entre mim e eu mesmo, ou seja, o eu é reflexão acerca daquilo que faço e sou.

Há, contudo, que haver um momento originário, um momento em que percebemos que nós somos algo com o qual nós mesmos dialogamos. Há que se haver uma diferenciação entre mim e aquilo me circunda. Não há separação, posto que não há homem sem mundo, mas há, sim uma diferenciação. Para Sartre, "é no contato com o outro que tomo consciência de minha própria existência". Por isso, aliás, "o inferno são os outros", pois eles nos fazem ver quem somos a todo momento, seus olhares são testemunhos daquilo que fazemos de nós.

O caráter reflexivo do homem lhe confere outra peculiaridade: a liberdade que somos nos permite escolher. Podemos decidir o que viremos a ser a cada novo instante. Mas como se dá cada decisão?

Sartre destacará o que chama de "circuito de ipseidade": o homem, ao escolher no presente, passeia por seu passado, lugar onde "já-fui", e divaga por seu futuro, espaço do vir-a-ser, do lançar-se. Ao vermos uma escada parada em um prédio, podemos escolher passar por debaixo dela ou não. Ao nos depararmos com esta situação, podemos seguir tal caminho: sabemos que algumas escadas caem e podem ferir; lançamos para o futuro este pensamento passado e assim decidimos dar a volta na escada, para não corrermos o risco de sermos atingidos.

Kierkegaard dirá também: escolhas são feitas, mas não sem temor e tremor. O homem, ao decidir, decide-se por si, escolhe aquilo que vai ser neste momento. E o faz sem garantias: não sabe se o que escolhe é o melhor, trará os melhores resultados, se é o mais correto etc. Assim, somos tomados pela angústia (o tremor) e tememos.

No "circuito de ipseidade" há um risco: e se escolho apenas pelo passado? Ao homem é dada também esta possibilidade. Por não conseguir lidar com o temor e tremor que Kierkegaard nos diz de abrir-se para um novo futuro, o homem, ao olhar para seu passado no momento de uma decisão, prefere negar a possibilidade de um novo futuro, prendendo-se à certeza que o passado, que a história construída, é capaz de lhe dar.

Existir é correr o risco de ser si mesmo.

Há sempre a escolha que nos compete: podemos ou não nos manter em determinada posição ou situação. Mas é que, algumas vezes, quando se trata de gostar, a escolha é mais difícil e nem aparece diante de nós, porque os sentimentos a embotam e vemos apenas um caminho: esperar por quem se gosta. Poderia escolher sair. Mas simplesmente não consigo. Não consigo... E há ainda a outra escolha, a do outro, e esta não me compete.

Queria poder resolver todos os problemas. Diminuir as distâncias. Estreitar os laços. Não me comunicar apenas através da tela fria. Queria poder estar perto e acompanhar este processo, estar ao teu lado. E queria dizer (e digo) que sim, quero que a escolha me favoreça (mesmo que admitir isso soe um tanto quanto egoísta, mas a atitude diplomática tem seus limites).

Escolho permanecer ao teu lado, mesmo que, de fato, ao teu lado nunca tenha estado. Escolho a esperança assassina: aquela que quer matar os dias para que logo chegue a noite... A noite, este momento em que, sedentos, partilhamos nosso dia.






PS.: Enfim, queridos que lêem este blog, o texto é apenas uma proposta de reflexão. Talvez tentem descobrir algum sentido e de que escolhas eu falo... Bem, aproveitem apenas as reflexões que, quem sabe (é o que espero) o texto é capaz de suscitar

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Da amizade

Aí ela falou assim Ah é? Mas Clarice é bem mais antigo que qualquer coisa e eu respondi É eu sei. Mas você não lembrou, ela disse! E eu falei Lembrei sim só não quis dizer que lembrei porque quando perguntei se era sobre a gente que você tava falando você desandou a conversa.

Daí ela ficou vermelha e respondeu de ímpeto que ela não desandou coisa alguma e que era eu que não tinha entendido as coisas. Aí mais tarde ela releu tudo e até me deu quase razão.

Oh! Vai pra sua mesa que te escrevo no e-mail, ela emendou. Daí eu sentei na minha mesa e esperei pelo e-mail que nunca vinha... E ele chegou. Então eu li correndo, sem nem dar atenção a cada detalhe, mas só ao que eu sentia. Levantei da cadeira e fui correndo dar um abraço nela. Aì quase chorei, né, que ninguém é de ferro, mas ela me lembrou que era pra manter a postura corporativa e que a gente sempre podia conversar no almoço.

O almoço... Ah! O almoço acabou em risos frouxos sobre a dramaticidade da situação. É que aí eu disse que na verdade ela era importantíssima sim e também que eu sempre tive medo dela, que ela é muito melhor que eu. Daí ela riu e falou que na verdade eu é que era. Aì fomos a uma loja de tecidos e compramos seda pra rasgar (o que, na verdade, não é verdade, é só metáfora).

Da última vez que nos falamos eu tava já no banho pela manhã. Foi coisa rápida. Mas eu pergunto: algum amigo seu já te ligou pra te acordar pra tu não perder a hora prum compromisso importante? Pois é... Mas ó, inveja e olho gordo longe daqui, pelamordideus.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Os olhos fechavam-se, pesando por sobre si mesmos. Já era tarde. O pensamento vagava. O frescor da noite entrando pela fresta na janela. O edredon tocava-lhe levemente o corpo e sentia-se acariciado. Era um bom convite ao sono. Um bom repouso. Aos poucos, sem que se desse conta, a consciência perdeu-se e começou a vagar por caminhos estranhos...

Era uma rua. Uma rua muito cheia. Muitas pessoas. E ele buscava alguém.

Do outro lado. A mesma rua. A mesma multidão. E a outra pessoa o procurava.

Acordara com a ligeira sensação de que ali, naquele sonho, havia um encontro de almas prestes a acontecer. Aconteceria de fato, não fosse o despertador tocando ou uma mensagem intrometida no meio do sonho que assustasse cada um dos dois envolvidos mais do que a própria situação era capaz de assustá-los.

Esta noite, talvez sonhasse de novo. E talvez, apenas talvez, nada entrasse em seus caminhos.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

A necessidade de morrer ou Sobre a morte como tentativa

Não entendia porque escrever, agora, quando tanto havia para dizer, parecia um fardo pesado. Tudo aquilo que tinha para contar não passava dos dedos para o papel, não havendo lógica capaz de explicar tal fato. Escrever fora uma dádiva e esta, lhe tomaram.
Em sua cabeça, cenas das aulas da infância: "Assim é um vírus", dizia a professora. Amar era um vírus e comia-lhe a vida e as idéias.
Talvez um trago. Uma dose dupla de scotch no bar da esquina. A ardência que lhe tomaria a garganta e o estômago o fariam esquecer da outra ardência, a mais interna. Quem sabe assim as palavras não lhe cairiam na cabeça, uma linda chuva de idéias e a ânsia e o mal-estar de ter mais para dizer do que os dedos são capazes de imprimir no papel.
Cada novo passo era para si uma experiência de renovado risco: poderia perder-se, poderia achar-se. Lançava-se no absurdo que era o gostar e, sem pudor, pelo gostar era carcomido.
Não lhe bastaria falar de objetividades: "apaixonei-me por muitos na vida", poderia escrever, "e neste final de semana que se passou, corri atrás do amor, este em que eu tanto acreditava", mas os fatos não iriam rendê-lo das dores do amor e do fracasso que agora lhe tomavam. De que adiantava saber de tudo o que vivera? E de que lhe serviria revisitar a dor e a frustração do já vivido?
Sim, isso! Grande! Desista, rapaz! Abandone a caneta sobre o papel. Para quê chafurdar na lama? Que prazer há de haver no sofrimento para que tanto o busque? Levante-se agora e abra a janela. Olhe o céu! Fecha-se em nuvens, mas lá no fim o sol se anuncia, bem lá no horizonte, onde os olhos já quase não alcançam. Ou apenas deite-se e deixe o pensamento aquietar-se. Tente lembrar-se dos momentos bons, rapaz, quando amor e sexo caminhavam juntos e eram diversão apenas. Delete de si a adultez que lhe toma, que corre em suas veias e faz doer-lhe o peito comprimido.
Deitou-se. A dor era tanta que não conseguia mover-se. Estava deitado por sobre a cama. A raiva contida. Os sentimentos contidos. O horror preso a si, bem ao fundo de si. Tinha horror e raiva da vida, essa coisa absurda que se passa com todos. A vida é uma doença, pensava. A vida é fracasso, concluira.
À vida, são as dores que dão o tom. Se isso é verdade, o que dizer de todos os outros momentos? Como quando este mesmo amor era ainda uma dádiva e você sorria ao encontrá-lo no final do dia, criança que era no parque das sensações. Mas agora é um adulto, deitado em posição fetal e vertendo em lágrimas. Assim sente-se seguro, assim acalma-se.
A vida é doença, é fracasso. E a vida é uma longa espera. Fora uma longa espera e um carrilhão desgovernado de esperanças cada novo amor. Mas os vagões sempre passaram ou pararam pela estação em que se os esperava. Desta vez, fora feito viajante frustrado na mesma estação e a expectativa esvaiu-se em si e, ao mesmo tempo, fora tudo o que lhe restara. Dessa vez, ele não aparecera e tudo fora uma grande espera.
O corpo retesado por sobre a cama, cada músculo em contração, as idéias comprimidas na cabeça. Seu interior era todo apertado demais para aquilo que sentia e seu sangue, correndo e comprimindo-lhe as veias, era insuportável. Como poderia tanto acabar em nada? Que rio, me diga, desagua em riachos? Coisas que se passam em sua vida apenas, imaginava: só com ele grandes amores transmutavam-se em pequena amizade, troca fortuita e banal de experiências sobre o dia longo de trabalho ou o novo relacionamento daquele que amava. Sim, ouvira sempre deles: "Tenho um novo amor, quer saber?", "Pois meu relacionamento vai mal e em breve termina", "Amo-o mais que a mim" e coisas afim.
Não dessa vez! Não outra vez! Mais uma vez era o suficiente para ser insuportável de aguentar. Ele não aparecera e a vida tornara-se uma grande espera: "será como irá falar-me a mim de sua ausência?", pensava ainda no bar, "mais uma vez irei receber uma proposta frugal de coleguismo? 'Mas podemos ser só amigos', dirá ele? Não, não mais uma vez", falou em voz alta, erguend0-se em súbita violência da cama.
Era preciso abrir-se e fazer a dor vazar. Aquele aperto. Aquela angústia. Era preciso abrir-se. Começara então pela diminutas verdezinhas dos nós dos dedos. E chegara ao pulso e à junção macia entre o braço e o antebraço. A essa altura, o quarto já enchia-se de sangue. Mas ainda faltava cortar os tendões do tornozelo, as veiazitas da pélvis e detrás do joelho.
Por fim, livrara-se de toda a angústia que o comprimia rasgando de um só vez a pele, do pescoço ao começo do estômago e sentindo o aço já quente adentrar-lhe o peito, assassinando a uma só vez a si mesmo e aos amores que alimentara.
E ainda assim, mesmo tudo isso, de nada adiantara. Ainda assim a vida era uma grande espera... E esperava o dia em que se falariam de novo, como antes.

Pequeno... gole de jazz

Os pequenos trechos em negritos...

A Case of you

Just before our love got lost you said
"I am as constant as a northern star"
And I said, "Constant in the darkness
Where's that at?
If you want me I'll be in the bar"
On the back of a cartoon coaster
In the blue TV screen light
I drew a map of Canada
Oh Canada
And I sketched your face on it twice
Oh you are in my blood like holy wine
Oh and you taste so bitter but you taste so sweet
Oh I could drink a case of you
I could drink a case of you darling
Still I'd be on my feet
I'd still be on my feet
Oh I am a lonely painter
I live in a box of paints
I'm frightened by the devil
And I'm drawn to those ones that ain't afraid
I remember that time that you told me, you said
"Love is touching souls"
Surely you touched mine
"Cause part of you pours out of me
In these lines from time to time"
I met a woman
She had a mouth like yours
She knew your life
She knew your devils and your deeds
And she said
"Go to him, stay with him if you can
Oh but be prepared to bleed"
Oh but you are in my blood you're my holy wine
Oh and you taste so bitter but you taste so sweet
I could drink a case of you darling
Still I'd be on my feet
Still I'd be on my feetI'd still be on my feet
(A Case of You, Joni Mitchell)

Tentativa 1

A dor era tanta que não conseguia mover-se. Estava deitado por sobre a cama. A raiva contida. Os sentimentos contidos. O horror preso a si, bem ao fundo de si. Tinha horror e raiva da vida, essa coisa absurda que se passa com todos. A vida é uma doença, pensava. A vida é fracasso, concluira.

À vida, são as dores que dão o tom.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

A Mensagem - Clarice Lispector

A princípio, quando a moça disse que sentia angústia, o rapaz se surpreendeu tanto que corou e mudou rapidamente de assunto para disfarçar o aceleramento do coração.
Mas há muito tempo - desde que era jovem – ele passara afoitamente do simplismo infantil de falar dos acontecimentos em termo de "coincidência" . Ou melhor - evoluindo muito e não acreditando nunca mais - ele considerava a expressão "coincidência" um novo truque de palavras e um renovado ludíbrio.
Assim, engolida emocionadamente a alegria involuntária que a verdadeiramente espantosa coincidência dela também sentir angústia lhe provocara - ele se viu falando com ela na sua própria angústia, e logo com uma moça! Ele que de coração de mulher só recebera o beijo de mãe.
Viu-se conversando com ela, escondendo com secura o maravilhamento de enfim falar sobre coisas que realmente importavam; e logo com uma moça! Conversavam também sobre livros, mal podiam esconder a urgência que tinham de pôr em dia tudo em que nunca antes haviam falado. Mesmo assim, jamais certas palavras eram pronunciadas entre ambos. Dessa vez não porque a expressão fosse mais uma armadilha de que os outros dispõem para enganar os moços. Mas por vergonha. Porque nem tudo ele teria coragem de dizer, mesmo que ela, por sentir angústia, fosse pessoa de confiança. Nem em missão ele falaria jamais, embora essa expressão tão perfeita, que ele por assim dizer criara, lhe ardesse na boca, ansiosa por ser dita.
Naturalmente, o fato dela também sofrer simplificara o modo de se tratar uma moça, conferindo-lhe um caráter masculino. Ele passou a tratá-la como camarada.
Ela mesma também passou a ostentar com modéstia aureolada a própria angústia, como um novo sexo. Híbridos - ainda sem terem escolhido um modo pessoal de andar, e sem terem ainda uma caligrafia definitiva, cada dia a copiarem os pontos de aula com letra diferente - híbridos eles se procuravam, mal disfarçava a gravidade. Uma vez ou outra, ele ainda sentia aquela incrédula aceitação da coincidência: ele, tão original, ter encontrado alguém que falava a sua língua! Aos poucos compactuaram. Bastava ela dizer, como numa senha, "passei ontem uma tarde ruim", e ele sabia com austeridade que ela sofria como ele sofria. Havia tristeza, orgulho e audácia entre ambos.
Até que também a palavra angústia foi secando, mostrando como a linguagem falada mentia. (Eles queriam um dia escrever. )A palavra angústia passou a tomar aquele tom que os outros usavam, e passou a ser um motivo de leve hostilidade entre ambos. Quando ele sofria, achava uma gafe ela falar de angústia. "Eu já superei esta palavra", ele sempre superava tudo antes dela, só depois que a moça o alcançava.
E aos poucos ela se cansou de ser aos olhos dele a única mulher angustiada. Apesar disso lhe conferir um caráter intelectual, ela também era alerta a essa espécie de equívocos. Pois ambos queriam, acima de tudo, ser autênticos. Ela, por exemplo, não queria erros nem mesmo ao seu favor, queria a verdade, por pior que fosse. Aliás, às vezes tanto melhor se fosse "por pior que fosse". Sobretudo a moça já começara a não sentir prazer condecorada com o título de homem ao menor sinal que apresentava de ... de ser uma pessoa. Ao mesmo tempo que isso a lisonjeava, ofendia um pouco: era como se ele se surpreendesse de ela ser capaz, exatamente por não julgá-la capaz. Embora, se ambos não tomassem cuidado, o fato dela ser mulher poderia de súbito vir a tona. Eles tomavam cuidado.
Mas, naturalmente, havia a confusão, falta de possibilidade de explicação, e isso significava tempo que ia passando. Meses mesmo.
E apesar da honestidade entre ambos se tornar gradativamente mais intensa, como mãos que estão perto e não se dão, eles não podiam se impedir de se procurar. E isso porque - se na boca dos outros chama-los de "jovens" lhes era uma injúria - entre ambos "ser jovem" era o mútuo segredo, e a mesma desgraça irremediável. Eles não podiam deixar de se procurar porque, embora hostis - com o repúdio que seres de sexo diferente têm quando não se desejam -, embora hostis, eles acreditavam na sinceridade que cada um tinha, versus a grande mentira alheia. O coração ofendido de ambos não perdoava a maneira alheia. Eles eram sinceros. E, por não serem mesquinhos, passavam por cima do fato de ter muita facilidade para mentir - como se o que realmente importasse fosse apenas a sinceridade da imaginação. Assim continuaram a se procurar, vagamente orgulhosos de serem diferentes dos outros, tão diferentes a ponto de nem se amarem. Aqueles outros que nada faziam senão viver. Vagamente conscientes que havia algo de falso em suas relações. Como se fossem homossexuais de sexo oposto, e impossibilitados de unir, em uma só, a desgraça de cada um. Eles apenas concordavam no único ponto que os unia: o erro que havia no mundo e a tácita certeza de que se eles não se salvassem seriam traidores. Quanto a amor, eles não se amavam era claro. Ela até já lhe falava de uma paixão que tivera recentemente com um professor. Ele chegara a lhe dizer - já que ela era como um homem para ele -, chegara mesmo a lhe dizer, com uma frieza que inesperadamente se quebrara em horrível bater de coração, que um rapaz é obrigado a resolver "certos problemas", se quiser ter a cabeça livre para pensar. Ele tinha dezesseis anos, e ela, dezessete. Que ele, com severidade, resolvia de vez em quando certos problemas, nem seu pai sabia.
O fato é que, tendo uma vez se encontrado na parte secreta deles mesmo, resultara na tentação e na esperança de um dia chegar ao máximo. Que máximo?
Que é, afinal, que eles queriam? Eles não sabiam, e usavam-se como quem se agarra em rochas menores até poder sozinho galgar a maior, a difícil e a impossível; usavam-se para se exercitarem na iniciação; usavam-se impacientes, ensaiando um com o outro o modo de bater asas para enfim - cada um sozinho e liberto - pudesse dar o grande vôo solitário que também significaria o adeus um do outro. Era isso? Eles se precisavam temporariamente, irritados pelo outro ser desastrado, um culpando o outro por não ter experiência. Falhavam em cada encontro, como se numa cama se desiludissem. O que é, afinal, que queriam? Queriam aprender. Aprender o quê? Eram uns desastrados. Oh, eles não poderiam dizer que eram infelizes sem ter vergonha, por que sabiam que havia os que passam fome; eles comiam com fome e vergonha. Infelizes? Como? Se na verdade tocavam, sem nenhum motivo, num tal ponto extremo de felicidade como se o mundo fosse sacudido e dessa árvore imensa caíssem mil frutos. Infelizes? se eram corpos com sangue como uma flor ao sol. Como? se estavam para sempre sobre as próprias pernas fracas, conturbados, livres, milagrosamente de pé, as pernas dela depiladas, as dele indecisas mas a terminarem em sapatos de número 44. Como poderiam jamais ser infelizes seres assim?
Eles eram muito infelizes. Procuravam-se cansados, expectantes, forçando uma continuação da compreensão inicial e casual que nunca se repetira - e sem ao menos se amarem. O ideal os sufocava, o tempo passava inútil, a urgência os chamava - eles não sabiam para o que caminhavam, e o caminho os chamava. Um pedia muito do outro, mas é que ambos tinham a mesmo carência, e jamais procurariam um par mais velho que lhes ensinasse, por que não eram doidos de se entregarem sem mais nem menos ao mundo feio.
Um modo possível de ainda se salvarem seria o que eles nunca chamariam de poesia. Na verdade, o que seria poesia, essa palavra constrangedora? Seria encontrarem-se quando, coincidência, caísse uma chuva repentina sobre a cidade? Ou talvez, enquanto tomavam um refresco, olharem ao mesmo tempo a cara de uma mulher passando na rua? Ou mesmo encontrarem-se por coincidência na velha noite de lua e vento? Mas ambos haviam nascido com a palavra poesia já publicada com o maior despudor nos suplementos de Domingo dos jornais. Poesia era palavra dos mais velhos. E a desconfiança de ambos era enorme, como de bichos. Em quem o instinto avisa: que um dia serão caçados. Eles já tinham sido por demais enganados para poderem agora acreditar. E, para caça-los, teria sido preciso uma enorme cautela, muito faro e muita lábia, e um carinho ainda mais cauteloso - um carinho que não os ofendesse - para, pegando-os desprevenidos, poder capturá-los na rede. E, com mais cautela ainda para não despertá-los, levá-los, astuciosamente para os mundo dos viciados, para o mundo já criado; pois esse era o papel dos adultos e dos espiões. De tão longamente ludibriados, vaidosos da própria amargura, tinham repugnância por palavras, sobretudo quando uma palavra - como poesia - era tão esperta que quase exprimia, e aí então é que mostrava mesmo como exprimia pouco. Ambos tinham, na verdade, repugnância pela maioria das palavras, o que estava longe de facilitar-lhes uma comunicação, já que eles ainda não tinham inventado palavras melhores: eles se desentendiam constantemente, obstinados rivais. Poesia? Oh, como eles a detestavam. Como se fosse sexo. Eles também achavam que os outros queriam caça-los não para o sexo, mas para a normalidade. Eles eram medrosos, científicos, exaustos de experiência. Na palavra experiência, sim, eles falavam sem pudor e sem explicá-las: a expressão ia mesmo variando sempre de significado. Experiência às vezes também se confundia com mensagem. Eles usavam ambas as palavras sem aprofundar-lhes muito o sentido.
Aliás, não aprofundava nada, como se não houvesse tempo, como se existissem coisas demais sobre as quais trocar idéias. Não percebendo que não trocavam nenhuma idéia.
Bem, não era apenas isso, e nem com essa simplicidade. Não era apenas isso: nesse ínterim o tempo ia passando, confuso, vasto, entrecortado, e o coração do tempo era o sobressalto e havia aquele ódio contra o mundo que ninguém lhes diria que era amor desesperado e era piedade, e havia neles a cética sabedoria de velhos chineses, sabedoria que de repente podia quebrar denunciando duas caras que se consternavam por que eles não sabiam como se sentar com naturalidade numa sorveteria: tudo então se quebrava, denunciando de repente dois impostores. O tempo ia passando, nenhuma idéia se trocava, e nunca, nunca eles se compreendiam com perfeição como na primeira vez em que ela dissera que sentia angústia e, por milagre, também ele dissera que sentia , e formara-se o pacto horrível. E nunca, nunca acontecia alguma coisa que enfim arrematasse a cegueira com que estendiam as mãos e que os tornasse prontos para o destino que impaciente os esperava, e os fizesse enfim dizer para sempre adeus.
Talvez estivessem tão prontos para se soltarem um do outro como uma gota de água quase a cair, e apenas esperassem algo que simbolizasse a plenitude da angústia para poderem se separar. Talvez, maduros como uma gota de água, tivessem provocado o acontecimento de que falarei.
O vago acontecimento em torno da casa velha só existiu porque eles estavam prontos para isso. Tratava-se apenas de uma casa velha e vazia. Mas eles tinham uma vida pobre e ansiosa como se nunca fossem envelhecer, como se nada jamais fosse suceder - e então a casa tornou-se um acontecimento. Haviam voltado da última aula do período escolar. Tinham tomado o ônibus, saltado, e iam andando. Como sempre, andavam entre depressa e soltos, e de repente devagar, sem jamais acertar o passo, inquietos quanto à presença de outro. Era um dia ruim para ambos, véspera de férias. A última aula os deixava sem futuro e sem amarras, cada um se desprezando o que na casa mútua de ambos a família asseguravam como futuro amor e incompreensão. Sem um dia seguinte e sem amarras, eles estavam pior que nunca, mudos, de olhos abertos.
Nessa tarde a moça estava de dentes cerrados, olhando tudo com rancor ou ardor, como se procurasse no vento, na poeira e na própria extrema pobreza de alma mais uma provocação para a cólera.
E o rapaz, naquela rua da qual ela nem sabiam o nome, o rapaz pouco tinha do homem da criação. O dia estava pálido ainda, involuntariamente moço, ao vento, obrigado a viver. Estava porém suave e indeciso, como se qualquer dor só o tornasse ainda mais moço, ao contrário dela, que estava agressiva. Informes como eram, tudo lhes era possível, inclusive às vezes permutavam as qualidades: ela se tornava como um homem, e ele como uma doçura quase ignóbil de mulher. Varias vezes ele quase se despedira, mas, vago e vazio como estava , não sabia o que fazer quando voltasse para casa, como se o fim das aulas tivessem cortado o último elo. Continuara, pois, mudo atrás dela, seguindo-a com a docilidade do desamparo. Apenas um sétimo sentido de mínima escuta ao mundo o mantinha, ligando-o em obscura promessa ao dia seguinte. Não, os dois não eram propriamente neuróticos e - apesar do que eles pensavam um do outro vingativamente nos momento de mal contida hostilidade - parece que a psicanálise não os resolveria totalmente. Ou talvez resolvesse.
Era uma das ruas que desembocam diante do cemitério João Batista, com poeira seca, pedras soltas e pretos parados à porta dos botequins.
Os dois andavam na calçada esburacada que mal os continha de tão estreita. Ela fez um movimento - ele pensou que ela ia atravessar a rua e deu passo para seguí-la - ela se voltou sem saber de que lado ele estava - ele recuou procurando-a. Naquele mínimo instante em que se buscavam inquietos, viraram-se ao mesmo tempo de costa para os ônibus - e ficaram de pé diante da casa, tendo ainda a procura no rosto .
Talvez tudo tivesse vindo de eles estarem com a procura no rosto. Ou talvez do fato da casa estar diretamente encostada à calçada e ficar tão "perto". Eles mal tinham espaço para olhá-la, imprensados como estavam na calçada estreita, entre o motivo ameaçador dos ônibus e a imobilidade absolutamente serena da casa. Não, não era por bombardeio: mas era uma casa quebrada, como diria uma criança. Era grande, larga e alta como as casas ensobradas do Rio antigo. Uma grande casa enraizada. Com uma indagação muito maior do que a pergunta que tinham no rosto, eles se haviam voltado incautelosamente ao mesmo tempo, e a casa estava tão perto como, se saindo do nada, lhes fosse jogada aos olhos uma súbita parede. Atrás deles os ônibus, à frente a casa - não havia como não estar ali. Se recuassem seriam atingidos pelo ônibus, se avançassem esbarrariam na monstruosa casa. Tinham sido capturados.
A casa era alta, e perto, eles não podiam olhá-la sem ter que levantar infantilmente a cabeça, o que os tornou de súbito muito pequenos e transformou a casa em mansão. Era como se jamais alguma coisa estivesse estado tão perto deles. A casa devia ter tido uma cor. E qualquer que fosse a cor primitiva das janelas, estas eram agora apenas velhas e sólidas. Apequenados, eles abriram os olhos espantados: a casa era angustiada.
A casa era angustiada e calma. Como palavra nenhuma o fora. Era uma construção que pesava no peito dos dois meninos. Um sobrado como quem leva a mão à garganta. Quem? Quem a construíra, levantando aquela feiúra pedra por pedra, aquela catedral do medo solidificado?! Ou fora o tempo que se colara paredes simples e lhes dera aquele ar de estrangulamento, aquele silêncio de enforcado tranqüilo? A casa era forte como um boxeur sem pescoço. E ter a cabeça diretamente ligada a ambos era a angústia. Eles olhavam a casa como uma criança diante de uma escadaria.
Enfim ambos haviam inesperadamente alcançado a meta e estavam diante da esfinge. Boquiabertos, na extrema união do medo e do respeito e da palidez, diante daquela verdade. A nua angústia dera um pulo e colocara-se diante deles - nem ao menos familiar como a palavra que eles tinham se habituado a usar. Apenas uma casa grossa, tosca, sem pescoço, só aquela potência antiga.
Eu sou enfim a própria coisa que vocês procuravam, disse a casa grande.
E o mais engraçado é que não tenho segredo nenhum, disse também a casa grande.
A moça olhava adormecida. Quanto o rapaz, seu sétimo sentido enganchara-se na parte mais interior da construção e ele sentia na ponta do fio um mínimo estremecimento de resposta. Mal se movia, com medo de espantar a própria atenção. A moça encorara-se no espanto, com medo de sair deste para o terror de uma descoberta. Mal falassem, e a casa desabaria. O silêncio de ambos deixava o sobrado intacto. Mas, se antes tinham sido forçados a olhá-lo, agora mesmo que lhes avisassem que o caminho estava livre para fugirem, ali ficavam, presos pelo fascínio e pelo horror. Fixando aquela coisa erguida tão antes deles nascerem, aquela coisa secular e já esvaziada de sentido, aquela coisa vinda do passado. Mas e o futuro?! Oh Deus, dai-nos o nosso futuro! A casa sem olhos, com uma potência de um cego. E se tinha olhos, eram redondos olhos vazios de estatua. Oh Deus, não os deixeis ser filho desse passado vazio, entregai-nos ao futuro. Eles queriam ser filhos. Mas não dessa endurecida carcaça fatal, eles não compreendiam o passado: oh livrai-nos do passado, deixai-nos cumprir nosso duro dever. Pois não era a liberdade o que duas crianças queriam, elas bem queriam ser convencidas e subjulgadas e conduzidas - mas teria que ser por alguma coisa mais poderosa que o grande poder que lhes batia no peito.
A moça desviou subitamente o rosto, tão infeliz que sou, tão infeliz que sempre fui, as aulas acabaram, tudo acabou! - porque na sua avidez ela era ingrata com uma infância que fora provavelmente alegre. A moça subitamente desviou o rosto numa espécie de grunhido.
Quanto o rapaz, ele rapidamente perdia o pé na vaguidão como se fosse ficando sem um pensamento. Isso também era resultado da luz da tarde: era uma luz lívida e sem hora. O rosto do rapaz estava esverdeado e calmo, e ele não tinha nenhuma ajuda das palavras dos outros: exatamente como temerariamente aspirara um dia conseguir. Só que não contara com a miséria que havia em não poder exprimir.
Verdes e nauseados, eles não sabiam exprimir. A casa simbolizava alguma coisa que eles jamais poderiam alcançar, mesmo com toda a vida de procura de expressão. Procurar a expansão, por uma vida inteira que fosse, seria em si um divertimento, amargo e perplexo, mas divertimento, e seria uma divergência que pouco a pouco os afastaria da perigosa verdade - e os salvaria. Logo eles que, na desesperada esperteza de sobreviver, já tinham inventado para eles mesmo um futuro: ambos iam ser escritores, e com uma determinação tão obstinada como se exprimir a alma a suprimisse enfim. E se não suprimisse, seria um modo de só saber que se mente na solidão do próprio coração.
Ao passo que com a casa do passado eles não poderiam brincar. Agora, tão menores que ela, parecia-lhes que tinham apenas brincado de ser moço e doloroso de dar a mensagem.
Agora, espantados, tinham finalmente o que haviam perigosa e imprudentemente pedido: eram dois jovens realmente perdidos. Como diriam as pessoas mais velhas, "eles estavam tendo o que bem mereciam" . E eram tão culpados como crianças culpadas, tão culpados como são inocentes os criminosos. Ah, se ainda pudessem apaziguar o mundo por eles exacerbados, assegurando-lhes: " estávamos apenas brincando! Somos dois impostores!" Mas era tarde. "rende-te sem condição e faze de ti uma parte de mim que sou o passado" - dizia-lhes a vida futura. E, por Deus, em nome de que poderia alguém que tivesse esperança de que o futuro seria deles? quem?! Mas quem se interessava em esclarecer–lhes o mistério, e sem mentir? Havia por acaso alguém trabalhando nesse sentido? Dessa vez, emudecidos como estavam, nem lhes ocorreria acusar a sociedade.
A moça havia subitamente voltado o rosto com um grunhido, uma espécie de soluço ou tosse.
"Meio que chorar dessa hora é bem de mulher", pensou ele do fundo da sua perdição, sem saber o que queria dizer com "essa hora". Mas essa foi a primeira solidez que ele encontrou para si mesmo. Agarrando-se a essa primeira tábua, pôde voltar cambaleando à tona, e como sempre antes da moça. Voltou antes dela, e viu uma casa de pé com um cartaz de "aluga-se". Ouviu o ônibus às suas costas, viu uma casa vazia, e ao seu lado a moça com um rosto doentio, procurando escondê-lo do homem já acordado: ela procurava por algum motivo ocultar a cara.
Ainda vacilante, ele esperou com palidez que ela se recompusesse. Esperou vacilante, sim, mas homem. Magro e irremediavelmente moço, sim, mas homem. Um corpo de homem era a solidez que o recuperava sempre. Volta e meia, quando precisava muito, ele se tornava um homem. Então, com mão incerta, acendeu sem naturalidade um cigarro, como se ele fosse os outros, socorrendo-se do gesto que a maçonaria dos homens lhe dava como apoio e caminho. E ela?
Mas a moça saiu de tudo isso pintando com batom, com ruge meio manchado, e enfeitado por um colar azul. Plumas que um momento antes haviam feito parte de uma situação e de um futuro, mas agora era como se ela não tivesse levado o rosto antes de dormir e acordasse com as marcas impudicas de uma urgia anterior. Pois ela, volta e meia, era uma mulher.
Com um cinismo reconfortante, o rapaz olhou-a curioso. E viu que ela não passava de uma moça.
- Ficou por aqui mesmo, disse–lhe então despedindo-se com altivez, ele que nem sequer tinha mais hora certa para voltar para casa e sentia no bolso a chave da porta.
Despediram-se eles, que nunca se apertavam as mãos, pois ela, na falta de jeito de em tão má hora ter seios e colar, ela estendera desastradamente a sua. O contato das duas mãos úmidas se apalpando sem amor constrangeu o rapaz como uma operação vergonhosa, ele corou. E ela, com batom e ruge, procurou disfarçar a própria nudez enfeitada. Ela não era nada, e afastou-se como se mil olhos a seguissem, esquiva na sua humildade de ter uma condição.
Vendo-a afastar-se, ele a examinou incrédulo, com um interesse divertido: " será possível que mulher possa saber realmente o que é angustia ? " E a dúvida fez com que ele se sentisse muito forte." Não, mulher servia mesmo era para outra coisa, isso não se podia negar." E era de amigo que precisava. Sim, de um amigo leal. Sentiu-se então limpo e fraco , sem nada a esconder, leal como um homem. De qualquer tremor de terra, ele saía com um movimento livre para frente, com a mesma orgulhosa inconseqüência que faz o cavalo relinchar. Enquanto ela saiu costeando a parede como uma intrusa, já quase mãe dos filhos que teria, o corpo pressentido a submissão, corpo sagrado e impuro a carregar. O rapaz olhou-a, espantado de Ter sido ludibriado pela moça tanto tempo, e quase sorriu, quase sacudia as asas que acabavam de crescer. Sou homem, disse-lhe o sexo em obscura vitória. De cada luta ou repouso, ele saía mais homem, ser homem se alimentava mesmo daquele vento que agora arrastava poeira pelas ruas do cemitério São João Batista. O mesmo vento de poeira que fazia com que o outro ser, o fêmeo, se encolhesse ferido, como se nenhum agasalho fosse jamais proteger a sua nudez, esse vento das ruas.
O rapaz viu-a afastar-se, acompanhando-a com os olhos pornográfico e curioso que não pouparam nenhum detalhe humilde da moça. A moca que de súbito pôs-se a correr desesperadamente para não perder o ônibus...
Num sobressalto, fascinado, o rapaz viu-a correr como doida para não perder o ônibus, intrigado viu-a subir no ônibus como um macaco de saia curta. O falso cigarro caiu-lhe da mão...
Alguma coisa incômoda o desequilibrara. O que era? Um momento de grande desconfiança o tomava. Mas o que era?! Ele vira a correr toda ágil mesmo que o coração da moça, ele bem adivinhava, estivesse pálido. E vira-a, toda cheia de impotente amor pela humanidade, subir como um macaco no ônibus - e viu-a depois sentar-se quieta e comportada, recompondo a blusa enquanto esperava que o ônibus andasse... Seria isso? Mas o que poderia haver nisso que o enchia de desconfiada atenção? Talvez do fato dela Ter corrido à toa, pois o ônibus ainda não ia partir, havia pois tempo...Ela nem precisava ter corrido... Mas que havia nisso tudo que fazia com que ele erguesse as orelhas em escutar angustia, numa surdez de quem jamais ouvirá a explicação?
Ele tinha acabado de nascer um homem. Mas, mal assumira o seu nascimento, e estava também assumindo aquele peso no peito; mal assumira a sua glória, e uma experiência insondável dava-lhe a primeira futura ruga. Ignorante, inquieto, mal assumira a masculinidade, e uma nova fome ávida nascia, uma coisa dolorosa como um homem que nunca chora. Estaria ele tendo o primeiro medo de que alguma coisa fosse impossível? A moça era um zero naquele ônibus parado, e no entanto, homem que agora ele era, o rapaz de súbito precisava se inclinar para aquele nada, para aquela moça. E nem ao menos inclinar-se de igual para igual, nem ao menos inclinar-se para conceder... Mas, atolado no seu reino de homem, ele precisava dela. Para quê? Para lembrar-se de uma cláusula? Para que ela ou outra qualquer não o deixasse ir longe demais e se perder? Para que ele sentisse em sobressalto, como estava sentindo, que havia a possibilidade de erro? Ele precisava dela com fome para não esquecer que eram feitos da mesma carne, essa carne pobre da qual, ao subir no ônibus como um macaco, ela parecia ter feito um caminho fatal. Que é! Mas afinal que é que está me acontecendo? Assustou-se ele.
Nada. Nada, e que não se exagere, fora apenas um instante de fraqueza e vacilação, nada mais que isso, não havia perigo.
Apenas um instante de fraqueza e vacilação. Mas dentro desse sistema de duro juízo final, que não permite nem um segundo de incredulidade senão o ideal desaba, ele olhou estonteado a longa rua – e tudo agora estava estragado e seco como se tivesse a boca cheia de poeira. Agora e enfim sozinho, estava sem defesa à mercê da mentira pressurosa com que os outros tentavam ensiná-lo a ser um homem. Mas e a mensagem?! A mensagem esfarelada na poeira do vento arrastava para as grades do esgoto. Mamãe, disse ele.
(in Legião Estrangeira, Clarice Lispector, Editora Rocco)

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

O medo e seus artifícios

"Amar eu posso até a hora de morrer.
Amar não acaba. É como se o mundo
estivesse à minha espera. E eu vou
ao encontro do que me espera"

(Clarice Lispector)





O medo lhes denunciava. Poderia ser sentido à quilômetros de distância, o que é exatamente a distância que há entre um e outro neste exato momento.




Acordou. Estava cansado. Havia dormido pouco, que a noite fora de longas conversas. Hoje seria o dia. Pensava em Clarice dizendo "E eu vou ao encontro do que me espera".




Foram tão parcos dias, tão miúdos. Ainda assim tão cheios de coisas, de pequenitos detalhes, que a mesma quantidade de dias não seria suficiente para que descrevesse o que falaram, o que sentira, o que achava que o outro sentira... E hoje era o dia.




Tudo estava certo. A mala por sobre a cama. A passagem no bolso do paletó, os documentos, enfim, tudo que lhe era necessário. Apenas a calma lhe faltava, que a ânsia de encontrar com o que nos espera é uma das piores quando é o acaso que une as pessoas.




Assim sendo, viajou. Cada quilômetro de distância fora percorrido, o coração na mão, mesmo que, ao mesmo tempo, cheio de felicidade. Felicidade é essa coisa estranha que nos abre o peito e faz dele vazar tudo que de ruim há, deixando apenas aquilo que de bem nos serve.




Assim sendo, chegou à cidade e foi para o local combinado para o encontro. Estava com amigos e entre uma bebida e outra, falavam sobre a casualidade da vida, ao que ele disse:




- Como é o acaso! Penso agora sobre o acaso e é este o assunto que vocês iniciam na mesa!




E as horas passavam.




Acontecia que do outro lado da cidade, o outro hesitava. É que tinha compromissos. Talvez fosse melhor cumprí-los (ou seria, honrá-los?), ele pensava, tentando encontrar a resposta correta para a pergunta. Não se tratava de compromissos consigo mesmo, mas com outrem, um terceiro.




Se soubesse que o outro hesitava, nosso viajante diria: E que compromisso é maior senão o compromisso que temos com aquilo que sentimos?, mas não teria esta oportunidade. Falar não lhe seria permitido hoje caso o rapaz não aparecesse.




Sem saber que respostas certas para a questão que se fazia não existia, o rapaz do compromisso refletia cada vez mais e pensava em todas as possibilidades de final para esta história.




Foi assim que o medo lhes denunciava. Poderia ser sentido à quilômetros de distância, o que é exatamente a distância que há entre um e outro neste exato momento. De lá, um hesitava por conta de outro, de cá o outro temia porque a hora já ia avançada e nem sinal do rapaz. E de cá eu me despeço, que o desfecho para esta história, ninguém ainda sabe. Tudo o que sabemos é que o medo tem dessas nuances: é um grande artífice... Faz-nos crer que não desejamos nosso desejo, que desanimamos de nossos propósitos, que queremos cuidar do outro mais do que de nós mesmos.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Da compreensão

Engraçado como nunca havia sido capaz de compreender a letra dessa música da Bjork. Achava tola, vazia de sentido. Como sentir falta daquilo que não se conhece?

À medida que vivemos, os sentidos saltam aos olhos. E posto a música:

I miss you (Bjork)

I miss you
But i haven't met you yet
So special
But it hasn't happened yet
You are gorgeous
But i haven't met you yet
I remember
But it hasn't happened yet

Do encontro

Olhava insistentemente para o relógio. Chegaram a brincar com ele "está chato assim aqui conosco? Quer ir embora!", ao que respondeu "Não se trata disso". De fato, não se tratava disso. O ambiente era agradável. Boa música, espaço intimista, boa comida e bebida, amigos agradáveis a mesa, conversas interessantes...
- Por favor, mais uma rodada - pediu a amiga sentada ao seu lado.
- Não, pra mim não, por favor! - disse ele.
- Oras! Estou dizendo, você está estranho! Já vai parar de beber... - retrucou ela.
- Não é que eu vá parar. Não sei se dá tempo.
- Tempo? Para quê? Espera algo?
- Sim.
- O que?
- Não sei.

De fato, não sabia o que esperava. Um ligação, talvez. Um presença desconhecida. Sentia uma sensação acalentadora no peito quando pensava naquilo que lhe fazia estar ansioso àquela hora. O celular por sobre a mesa do bar era mantido sob seus olhos. O primeiro toque e sim, seria a hora.
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Estava na festa. Amigos. Bebiam e falavam sobre o que homens falam: mulheres. Vez por outra, trabalho, carro, esportes. A música de festa de São João ao fundo. Mas não estava presente nas conversas. Tudo hoje era ausência. O mundo torna-se esvazia-se de sentidos quando há diante de nós o desconhecido.
Pensava: tenho um encontro hoje e tenho ainda medo. Há tantas esperanças, tantas expectativas. Melhor seria ter permanecido nos degraus mais baixos da escada. Quanto mais se sobe, maior o tombo, minha avó sempre diz. E não quero cair. AO mesmo tempo que temo, sinto que não há porque.
- Queridos, vou partir. Nos vemos amanhã no trabalho!
- Oras! Vai cedo! Todos teremos que estar lá também! Fique mais um pouco!
- Estou cansado.
Caminhava as passos rápidos para o estacionamento.
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Em pé, em frente ao bar, esperava. O celular já tocara, já havia confirmado que aquilo por que espera, aquilo que desconhece e que, mesmo assim, é o que ansiosamente aguarda, já está a caminho.
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Ligara uma música no carro. Bjork canta:
"I miss you. But I haven't met you yet"
A mão suada no volante deslizava facilmente a cada esquina virada. O peito, extravasado em angústia, arfava em ritmo acelerado, seguindo o descompasso do coração e da respiração ofegante.
Como seria o encontro?!
------------------------

Ele entrou no carro. Olharam-se. Em meio ao silêncio, o diálogo era visível nos olhos:
- ...
- ...
- !
- ...
- ...?
- .
- !?
- ?!
- ...! ...?
- !
- .
Os olhos postos sobre o olhar um do outro. Os corpos, retesados, lembravam a tensão. Falariam sobre tudo quanto fosse natural. Seguiriam a noite conversando. Mas como será? O que irá acontecer?
-------------------------
Agora tive que sair do carro. Há coisas que, mesmo narrador, não podemos ouvir ou ver.
Nos últimos momentos que vi, ainda conversavam. Pareciam bem com toda a situação. Os corpos aproximados. Os olhares em riste. Da última vez que olhei para trás, vi uma mão levantar-se, esboçando gestos de carinho no ar...

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

All is full of love - Bjork

And listening to a bjorkian song, he thinks: "Somehow, I trust it, I do trust it", for he knew that there could be some troubled waters underneath the surface, but there was something more, something bigger than that. Something else.

You'll be given love
You'll be taken care of
You'll be given love
You have to trust it
Maybe not from the sources
You have poured yours
Maybe not from the directions
You are staring at
Twist your head around
It's all around you
All is full of love
All around you
All is full of love
You just aint receiving
All is full of love
Your phone is off the hook
All is full of love
Your doors are all shut
All is full of love!
And be the lil'angel

** Icelandic part **

All is full of love, all is full of love
All is full of love, all is full of love

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Do diálogo ou Sobre como escrever o que se sente

Quando mais as coisas são necessárias é que elas nos faltam, como o ânimo que se esvai em uma semana de trabalho intenso ou como quando o amor mostra-se fraquejante diante de uma crise conjugal. Vejo-o ali, sentado à mesa, e é na ausência que penso. Sua presença me lembra a ausência, a privação, a negação do presentificar-se: tenta, rabisca, traceja letras, chega a desenhá-las, passando e repassando o lápis por sobre as poucas palavras que conseguira escrever, mas a criatividade, aquela tão necessária nesse momento, decidiu não dar as caras no dia de hoje.

É frustrante. Sinto daqui que há tanto para exprimir, há tanto para pôr no papel... Mas ele não encontra meios.

Sim, acabou de passar-lhe pela cabeça comprar uma idéia. Como se estivesse em uma feira livre, perguntaria um a um de seus amigos: "Você! É capaz de me vender uma idéia? Preciso de algo como um mote para uma história, uma pequena frase, uma imagem simples, que de sentimentos estou cheio. O que me falta é história para que estes entrem no papel. É isso: preciso de uma história em que caiba o que sinto. Alguém tem desse produto para vender?".

Logo desistiu da idéia. De nada lhe valeriam história compradas. Ele cá tinha a sua. Aliás, fora por isso que se propusera a escrever. Contudo, não encontrava o melhor modo de escrever. O problema, como disse, era simplesmente de criatividade... Pois como falar daquilo que de há muito se fala sem que se repita? Como não cair ou recorrer a clichês? E será melhor cair nos clichês, como que por acaso, ou aceitá-los e lançar mão deles deliberadamente? Se decidisse por aceitá-los poderia começar o texto com um: "Era uma vez numa sala de bate-papo...", pois reinos distantes não existem e estamos na modernidade. E no caso de querer evitá-los poderia começar com algo como... Como... Pronto, achamos o cerne do problema! É por querer fugir dos clichês que nada consegue escrever.

Talvez um café ajude. Acho que vou sugerí-lo isso:

- Ei! Você...
- Sim? Quem fala?
- Eu, o narrador.
- AH! Oi... Estou ocupado. Seria bom não interromper. Combinamos que você só ia ficar me olhando, sem me atrapalhar.
- É, eu sei, mas é que não consigo... Você aí, sem conseguir escrever palavra e, ao mesmo tempo, com tanto para dizer! Só queria dar uma sugestão. Porque não pára um pouco e toma um café? Vai lhe aliviar a tensão.
- Não estou tenso! - respondeu-me rispidamente.
- Sim, percebo pelo tom de sua voz que anda bem tranquilo - retruquei em tom de ironia.
- É... Desculpe-me... Tem razão. Estou nervoso. É que isso nunca me aconteceu antes. Ou bem não queria escrever e não escrevia ou bem queria escrever e as palavras me saiam facilmente da ponta do lápis. Isso que hoje se dá nunca aconteceu!
- Talvez seja um dia em que não queira escrever, de fato. Um dia em que pensa que quer, mas se engana.
- Não há enganos. Quero escrever. Preciso pôr os sentimentos em ordem. Iam bem, os coitados. Agora perdem-se como um cavalo estourado em campina: vagam por todos os pensamentos que me habitam e voltam, velozes, ao mais recorrente de todos. É sobre este último pensamento que preciso escrever.
- E do que se trata?
- Pois se eu te disser, promete nada contar?
- Isso não posso te garantir. Estou aqui para escrever sobre você. Aliás, cada palavra que dizes, as letras correspondentes a ela se formam na tela do computador em que eu escrevo. Sou o narrador, esqueceu-se e você é minha história.
- Verdade... Bem, assim sendo, se te conto minha história, a terei escrito de alguma maneira, mesmo que seja com suas palavras!...
- Sim! Melhor ainda: com tuas próprias palavras! Sou fiel aos diálogos. Acho que sempre são enriquecedores... Sem contar que pode-se lê-los mais rápido do que se lê um parágrafo denso de prosa.
- Pois bem. Conto-lhe. É que conheci uma pessoa...
- Sim, uma pessoa...?
- É, pois é... Por enquanto isso é tudo. Acho que devo deixar rolar para que tenha mais o que dizer.
- E o que há de difícil em escrever sobre uma pessoa que se conhece? O que há de tão complicado se a cada dia conhecemos várias?!
- Não há não nada no mundo que se conheça que seja igual aquilo que já se conheceu um dia.
- A velha história de que cada um é cada um ou então o velho clichê das ondas do mar, que nunca são iguais... Mas todos são pessoas. É tudo uma mesma humanidade.
- Para cada humano, um sentimento diferente, narrador! Oras! Não esperava tanta falta de sentimento de sua parte! Pensei que se tratasse de alguém com um pouco de "amorosidade".
- Não sou dado a sentimentalismos.
- E histórias de gostar são sentimentalismos?
- Depende da história.
- Bem, esta é mais ou menos assim: conheci essa pessoa que te falei pela internet, sabe? Uma dessas salas de conversa. E conversamos um par de vezes e...
- E...?
- E hoje é a segunda vez que acordo e penso nela. Não sei... É estranho. Não nos conhecemos. Mal nos vimos. Poucas fotos e parcos segundos de vídeo. O senhor deve saber como são essas coisas de internet. Nem ao menos as vozes foram ouvidas. E é o segundo dia que acordo pensando nesta pessoa. Sinto-me bem como há algum tempo não me sinto e, ao mesmo tempo, tenho medo.
- Como digo: tudo uma mesma humanidade! Pois qual é o homem que não teme diante daquilo que deseja?
- E quem falou em desejo?
- Oras! Poder até ser afeito à volteamentos da lógica, a uma boa retórica, mas o senhor não me engana. É impossível escapar aos olhos de quem vê aquilo que salta na cena vista, aquilo que nela grita. Há o desejo.
- Somos apenas amigos... Apenas amigos.
- Admiro-me o senhor, o senhor, aquele que defendeu que cada pessoa é uma, querendo dizer que toda amizade é a mesma! Nesta amizade, nesta entre você e a pessoa em que pensa, há o desejo. É isso que a faz diferente de todas as outras. É isso que diferencia o amor fraterno dos outros - após alguns momentos de silêncio, em que o vi refletir sobre o que acabara de ouvir, emendei - Se não for invasão demais, o senhor pode me dizer o que mais te atrai nessa pessoa?
- Ah, claro! É "amorável".

Assim prosseguiu a conversa, por horas. Contou-me cada detalhe, cada volteamento das conversas com a pessoa. Falou-me do estranho sentimento que tinha ao longo do dia, misto de ansiedade, medo, vazio, preenchimento e felicidade angustiante. Refletimos juntos acerca do que poderia vir a acontecer. Refletimos sobre o que já havia acontecido também.

Agora acabara de sair do trabalho. Leve. Não mais precisaria prender-se a mesa e tentar escrever e compreender tudo o que sentia. É que ao longo da conversa, lembrou do que lhe disse a pessoa no dia anterior: "DEIXA ESTAR. Foi você que me disse isso" e sentiu em si o peso da leveza da espera por aquilo que se deseja.

domingo, 12 de agosto de 2007

A festa de família

Elisinha cantava e no final dizia "é uma dôooor" (acrescento o acento para dar o tom exato) e, de fato, ERA uma dor.

Hoje não sei se é dor. Não tenho "Snapshots". Agi comportadamente na festa de família (ia dizer: "fresta" de família. Ato falho?). Mas a verdade é que não há como: os amo. A todos. Sim. Todos. Mesmo aqueles com quem não tenho contato.

A festa sempre termina. Sempre começa com aquela sensação de "ai que saco, putaqueopariu, vou ter que sorrir por três horas". Aí vem o espaço para a autencidade. Sorrio. Fico sério. Fico alegre, triste, alegre-triste. Vejo as crianças correndo, o cachorro latindo, as crianças com medo do cachorro latindo, o cachorro com medo das crianças com medo... Vejo a mãe negligente sentada tomando cerveja e o filho, sabedor da negligência, pulando na cama elástica de modo a provocar um tombo. Tombo este com o qual ele nunca se machuca, mas ergue-se com cara de choro e vai pro colo da mãe... Para acabar sendo consolado pela tia que se senta ao lado, que a mãe prefere segurar o copo de cerveja.

Meu pai, que sempre disse não ter tempo para aproveitar uma festa porque tinha o famigerado trabalho. O famigerado trabalho de 23 anos que lhe comia o tempo e a saúde. E agora que já não o tem, usa como desculpa a necessidade de ter tudo em ordem para ir dormir. Não pára. Carrega coisas para lá, para cá, de novo para lá, a mesma coisa, só para tirá-la de lugar e sentir-se ocupado. "Meu filho, senta do lado do pai um bocado", disse-me ele agora, agora quando eu já estava sentado ao lado dele e olhei-o com uma cara de "como assim?! Já estou sentado ao seu lado".

Meu avô... Sempre sentado na ponta da mesa. Sempre pousando de patriarca. O galo. O manda-chuva. O grande mestre que de mestre nada mais tem. Não manda em nada mas é como se mandasse. Age como se comandasse a festa, que nem é dele. Não pagou nem por meia tigela... Mas é como se tivesse pago. E fico feliz em vê-lo ali, assim, cantando de galo, como se tudo e todos o pertencessem. Sinto que há vida nele ainda. Por mais alguns bons anos. Quero vê-lo em minha formatura também.

E as tias. As irmãs do meu pai. Sempre ocupadas, sempre tristes, sempre com problemas a contar (mesmo que sejam os da vizinha, da amiga, ou da prima do parente distante lá de Curicia do Norte, esse lugar que nem sei se existe, esse lugar onde mora esse parente distante de onde nem nunca ouvi falar mas que parece ter um câncer. Aliás, parece ter um câncer... Que é de família... Que todos têm! Meu deus! Será que eu vou ter?!). Elas, com seus netos nas mãos, limpando as golfadas das crianças. A linda priminha de olhos verdes e bochecas gordas e rosada... Sua roupinha rosa. E a avó, baloiçando-a para lá e para cá.

E os primos. Aquela que senta do meu lado e diz: "Não sei o que faço... Gosto dele mas não sinto o mesmo ânimo". E aquela que diz: "Primo, vou te visitar", mas ela sempre diz e nunca visita... Eu também faço o mesmo: sempre digo e nunca visito. Falamos todos também sobre a querida prima-irmã que está longe, muito longe... E todos temos saudades. Quanta saudade! Parece que a vida parou e todos esperamos a volta dela para que os assuntos sejam, de fato, colocados em dia.

A tia que me abraça e comenta que estou alto. Ela sempre comenta que estou alto e há anos que não cresço.

Sinto saudades de todos e uma tristeza nostálgica dos minutos que acabaram de se acabar. E prometo-me, mais uma vez, "durante a semana, ao longo deste ano, vou me reaproximar de cada um deles" e tenho a ligeira sensação de ser capaz de mudar a vida de cada um.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Carta de Amor*

É que quando desacostumamos a sentir, qualquer sentimento é dor. Vem, rasgante que é, estraçalhando nossos interiores. Há aqueles que são capazes de aguentar, mas eu, eu, que sou fraca, eu, que me envergonharei de mim por isso, não aguento. Por isso escrevo-lhe mais estas linhas, apesar de ter-me prometido e ter-te dito que não mais o faria. É que não consigo não pensar em você quando a tarde cai e a noite vem, trazendo a lua e a solidão para dentro do meu quarto e do meu peito.
Agi de má-fé comigo mesma. Não há como enganar-me e fugir de mim, daquilo que sinto e que agora me dói. Como podemos fazer tanto mal a nós mesmos? Quão ingênua fui ao pensar que poderia me esconder de mim! E agora, novamente, coloco-me a teus pés: é que já não sei o que fazer de mim sem que mo digas.
E agi de má fé contigo. Nem tudo que é teu e que estava aqui lhe devolvi. Vejo agora como fui tola. Talvez a posse de algo seu pudesse me ajudar a manter a raiva que conseguia manter por estar sendo ignorada, eu pensei. Talvez se você percebesse que eu ficara com algo, viesse me procurar, eu pensei. Qual nada! Tudo o que consegui foram lembranças! Tolas lembranças... Como no dia em que você chegou de mansinho, abriu a porta devagar, pisando leve e me surpreendeu na cozinha, me abraçando pelas costas e me deixando com as pernas bambas pelo susto e pelo prazer.
Sim, me afastei. Fiz de tudo o que pude. Sei que tudo o que fiz fora, também, fruto de uma decisão tomada apenas por mim, nunca a propósito de qualquer pedido seu. Julguei o que era melhor e assim o fiz. Com isso, aprendi que nem todos os julgamentos, por mais que sejam bem feitos, são corretos. A justiça é cega e assim o é, do mesmo modo, o amor. Não há como querer exatidão ao unir os dois. Não passei de uma boboca infantil querendo ser adulta e senhora de minha vida, a mesma que pertence a ti - agora bem sei.
Talvez não receba bem estas palavras. Talvez precise rasgar esta carta para que uma outra mulher não a veja ou não a descubra no bolso do casaco, quando o "acaso" acaba servindo ao propósitos ocultos que temos, aqueles que escondemos de nós mesmos. Não há problemas. De cá, tento satisfazer-me simplesmente com o fato de tê-las escrito e de crer que consegui fazê-las chegar a ti.
Queria poder dizer, como Pessoa disse a sua amada: "Quanto a mim, o amor passou", mas seria mentir novamente. Amo-te, querido. Amo-te, mesmo que, por isso, sinta dores. Aliás, estas me são bem quistas, uma vez que são o único motivo que tenho para amar-me a mim: o amor que tenho por ti e que faz doer-me o peito.
Da sua,
Beatriz

* Para os que não leram, há em Julho o post "Carta de (des)Amor", também de autoria da Beatriz, ao qual o presente representa continuação.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Caetano

Caê, irmão de Taninha. Gente, amo essa família. E aí, ontem me dei conta de que ainda não tinha ouvido o cd novo do Caetano. Daí, ouvi. E é superbo! Músicas despeitadas, a meu ver. Ótimas! Bom ver alguém pondo pra fora tudo aquilo que muitos recalcam.

Aì vai uma letra:

Deusa Urbana

Com você eu tenho medo de apaixonar, eu tenho medo de não me apaixonar
Tenho medo dele, tenho medo dela
Os dois juntos onde eu não podia entrar
Com você eu tenho mesmo que me conformar, eu tenho mesmo que não me conformar
Sexo heterodoxo, lapsos de desejo
Quando vejo, o céu desaba sobre nós.

Mucosa roxa, peito cor de rola
Seu beijo, seu texto, seu queixo, seu pêlo, sua coxa.
Menina, deusa urbana, neta do sol.
Eu sou você e os meus rivais. Sou só.

Mucosa roxa, peito cor de rola
Seu beijo, seu texto, seu cheiro, seu pêlo, cê toda
Menina, deusa urbana, neta do sol.
Eu sou você e os meus rivais. Sou só.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Chega de fazer fumaça

Sei que sempre disse: samba não é comigo. Aí cresci e comecei a dizer: só se for de raiz. E sabe-se lá deus como, eu confundia a Mart'nália com a Margarete Menezes rs e dizia ~que não gostava. E sempre disse que não gosto de música tema de novela, mas me mandaram esse pelo MSN dia desses e achei ótima. E é da Mart'nália!

Cabide - Mart'nália

Se eu fingir e sair por aí na noitada, me acabando de rir
Se eu disser que nçao digo e não ligo e que fico
E que só vou aprontar
É que eu sambo diretinho, assim, bem miudinho, cê não sabe acompanhar
Vou arrancar tua saia e pôr no meu cabide só pra pendurar.
Quero ver se você tem atitude e se vai encarar.

Se eu sumir dos lugares, dos bares, esquinas, e ninguém me encontrar
Se me virem sambando até de madrugada e você for até lá.
É que eu sambo diretinho, assim, bem miudinho, cê não sabe acompanhar
Vou arrancar tua blusa e pôr no meu cabide só pra pendurar.
Quero ver se você tem atitude e se vai encarar.

Chega de fazer fumaça, de contar vantagem, quero ver chegar junto pra me juntar
Me fazer sentir mais viva, me apertar o corpo e a alma, me fazendo suar.
Quero beijos sem tréguas, quero sete mil léguas, sem descansar.
Quero ver se você tem atitude e se vai me encarar.

Se eu fingir e sair por aí na noitada, me acabando de rir
E seu eu disser que não digo, não ligo e que fico
E que só vou aprontar
É que eu mando direitinho, assim, bem miudinho.
Sei que você vai gostar.
Vou arrancar sua blusa e por no meu cabide só pra pendurar.
Quero ver se você tem atitude e se vai encarar.

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Exorcizando velhos fantasmas

Deus disse a Abrãao: "Tome seu filho, o seu único filho Isaac,
a quem você ama, vá à terra de Moriá e ofereça-o aí
em holocausto, sobre uma montanha que vou lhe mostrar"
Genesis 22, 2

Não estava acostumado a ambientes como aquele. A cor verde dos corredores lhe dava uma aconchegante sensação de frescor, quebrada pela crueza da forte luz branca das lâmpadas fluorescentes. As pessoas, desde a hora que entrara, olhavam-no sorrindo. Havia algo de estranho nelas... Não era o olhar de adultos encantandos com a graça da infância, aquela que perderam há algum tempo.
No quarto, a mesma forte luz branca cortando-lhe a retina. O verde, que a cada passo adentro daquela casa estranha, lhe acalentava, fora-lhe roubado. Tudo o que via eram paredes brancas e altas. Um pequeno quarto.
A cama não era das mais confortáveis, mas sua avó lhe assegurara: voltariam para casa em pouco tempo. E não havia muito o que fazer. Melhor seria não ter tido o voluntarismo de ir à cidade grande. Caso tivesse feito alguma oposição... Bem, caso tivesse feito alguma oposição talvez algum membro da família tivesse desistido, entendendo a falta de vontade como algum sinal divino.
Onde está minha mãe?, pensava. E como se adivinhasse o pensamento do garoto, vovó passara as mãos de leve na cabeça dele ao passo que dizia: "Meu filho querido, mamãe está voltando".
Naquele quarto não havia ninguém mais que não fossem os dois e a presença etérea de uma mãe desejada, que adentraria a qualquer momento aquele quarto. Sim, ela o tiraria dali caso ele quisesse. Não sabia ainda, contudo, se queria sair dali. Apesar da luz cortante e das altas paredes, estava fatigado. No intervalo entre um visita e outra à cidade grande, esquecia-se do que sempre acontecia e era por isso que sempre respondia animadamente: "Quero ir!", quando a mãe lhe perguntava se gostaria de juntar-se a ela e a avó no passeio. Sempre que iam à cidade, sua mãe e sua avó andavam quilômetros, entrando em todas as lojas abertas, procurando coisas que não queriam, comprando coisas que não precisavam e deixando de lado aquilo que, de fato, era o mais profundo desejo das duas. Melhor levar o que não se quer do que correr o risco de nada mais ter para desejar na vida.
Apenas dez minutos se passaram desde que entraram naquela casa estranha, desde que passaram pelos corredores verdes e viram as pessoas olhando para ele daquele modo que, só mais tarde, viria a entender ser pena: "Uma criança, tão nova, aqui neste lugar!", deviam pensar elas ao ver o molequito andando para dentro do hospital.
Dez minutos era muito tempo para uma criança. Certamente havia naquele lugar uma imensidade de possibilidades a serem exploradas. Poderia, talvez, imaginar que era uma grande casa daquelas antigas, de escravos, e que ele era o senhor de todas aquelas terras. Ou então, que se tratava de um forte de guerra e que ele deveria espionar os bandidos que vinham lá longe na estrada, fazendo poeira ao trotar dos cavalos. Na tentativa de descobrir este mundo, disse:
- Vovó, posso ver a janela?
- Não, meu querido. Em breve chegará um amigo para você e é melhor que descanse.
- Um amigo?
- Sim, meu filho. Um amigo - respondeu-lhe a avó em tom de fechamento. Não era possível explicar a ele o que se passava ali, pensava ela. Melhor: preferia não explicar... Talvez ele ficasse com medo e medo é bobagem, luxo a que o garoto não poderia se dar. Já havia muito que ela e a filha planejavam levá-lo ao doutor. Hoje era o dia, este que planejaram. Tudo estava marcado, mas ainda sentia dentro em si um pequenito receio de algo pudesse dar errado, de que o trem, tão bem posto em seus trilhos, pudesse descarrilar por algum motivo. - Tome! Trouxe aqui uma das revistinhas que você gosta. Porque não lê para mim?
E entregou ao menino uma revistinha em quadrinho nova e viu os olhos dele brilharem. Apesar de ter apenas 5 anos, ele sabia ler. Aprendera aos 4 num pequeno passeio à praia. Desde então, não parara, sempre pedindo novas revistas, novos livros... Não saberia ela determinar (nem ao menos a mãe) se a precocidade do garoto na leitura era um ganho ou um problema familiar, pois o dinheiro que tinham não acompanhava a leitura do menino, que ao final do dia em que recebia uma revista, já logo pedia outra.
- Querido, enquanto lê, vovó vai sair rapidinho. Fique deitado, hein? Já já mamãe chega e seu amigo também. É melhor que descanse.
Nem tivera tempo de sentir-se aflito, nem ao menos de terminar a leitura da primeira historinha da revista. Logo chegaram todos: vovó, mamãe e o novo amigo.
- Querido, este é o Dr. Paulo - disse-lhe a mãe.
- E aí, rapaz? - disse o médico em tom amistoso.
Mas o menino preferiu calar-se. Não era dado a falar com estranhos. Vivera uma infância muito fechada no berço familiar, não era de muitos colegas. Não era afeito a amizades que se fazem de hora para outra. Talvez (sim, talvez) venha a mudar essa postura após o que estava prestes a viver. Talvez tomasse consciência da necessidade de ligar-se aos outros para evitar a dor da vida.
- Meu filho, o dr. Paulo irá te examinar, certo?
- Vou tirar sua bermuda, ok? - disse o médico, como querendo acalmar o menino.
- Para quê, mamãe?
- Querido, sem perguntas - respondeu ela. Era possível, mesmo para ele, perceber a insegurança e o medo na voz materna.
- Não quero.
Ao som dessas palavras, viu a mãe olhando para a avó. Esta, compreendendo o olhar, dirigiu-se para a parte superior da cama. Mamãe, aproximando-se da cama, debruçara-se sobre o corpo do filho, não sem antes tomar-lhe a revista. Num ímpeto, agarrou-lhe os braços e deu-os à avó, que agora os segurava com força acima da cabeça do garoto com uma mão e, com a outra, levantava a cabeça dele de modo que não pudesse olhar para outro lugar que não para o rosto senil dela. Não lhe era permitido olhar para baixo, não lhe era permitido ver o médico neste momento despindo-lhe dos quadris para baixo.
O que estaria acontecendo?, pensava, ainda tentando manter-se tranquilo, pensamentos vagando na história que lia ainda há pouco. Sentira, então, as mãos geladas da mãe tocando-lhe os pés e prendendo-os firmemente à cama.
- Mâaaaae, não quero! Estou com medo! - gritou em desespero, todos os pensamentos tranquilos esvaindo-lhe como a água de uma banheira sendo sugada para o ralo - Não quero! Vovó! Vovó! O que está acontecendo?
- Calma, meu querido, vovó está aqui - respondera a avó com um sorriso nos lábios. Ele era forçado a ver aquele sorriso, seu rosto sendo puxado em direção àquela visão.
Sentiu as mãos do novo amigo tocando-lhe em sua intimidade. Além do rosto da avó, a única coisa que conseguia ver pelo canto do olho era o vulto alto daquele homem, todo vestido de branco.
- Nãaaaaaao! Nãaaao! - gritava o menino, entre soluços - Nãaaao... Mãe, me ajuda... Vó, me ajuda... Me ajuda...
Sentira então uma grande dor. Dos olhos, as lágrimas rolaram com maior velocidade quando estes se fecharam em resposta ao que sentia. Nem ao menos conseguia dobrar as pernas e defender-se. Não que não tentasse, mas as mãos geladas da mãe eram mais firmes que as pernas dele. Abrira os olhos e o vulto alto do homem na sala tinha agora tons avermelhados onde só havia o banco asséptico.
Já não mais conseguia gritar. Nada lhe era possível. Pensava no pai. O grande herói das revistas que lia. Pensava nele. Porque o abandonara ali, naquele momento? Porque não estava lá para ajudá-lo? Será que sabia?
Uma sensação estranha lhe subia pela garganta. Entre a dor e os gritos havia o ódio. O que havia entre mamãe e aquele homem? Será que ela também chorava como ele? Ou se felicitava com o que estava acontecendo ali?
- Querido, está quase acabando - ouviu, ao longe, a voz da avó.
Sentia-se violado. Sentia-se humilhado naquilo que era seu: ele mesmo. Então não era tão forte como pensava? Nem tão astuto? Nem tão capaz de perceber o que se passava ali antes que tudo se desse?
Sentira que o homem tirara a mão de seu corpo, o mesmo corpo que o menino já não conseguia sentir por inteiro. Alguma coisa lhe havia sido tirada? Uma vez, brincando, cortou-se e sangrara. Sabia que aquele vermelho que percebera de relance era seu sangue. Onde o haviam machucado? Não sabia, criança que era, que não importava o machucado, mas sim os danos invisíveis do espetáculo de horror a que era submetido. Também não o sabiam a avó e a mãe, devo dizer-lhes, para que não dirijam todo seu ódio contra elas. Talvez nem ao menos soubesse o médico que o sangue era o de menos e que a grande ferida era interna.
- Vó, segure os braços com mais força - disse o médico. - Garoto, estamos quase terminando. Agora falta só o remédio. Vou por o remédio agora. Você vai sentir arder.
Já nem tinha forças para se opor. Sentira a ardência queimar-lhe toda a carne. Ainda urrava de dor o pequenito corpo na cama quando tivera as pernas e os braços libertos. Virara o corpinho para o lado, dobrando-se sobre si mesmo ao puxar as pernas para perto de si e ficara assim, na posição em que os bebês ficam quando ainda não precisam sofrer a vida. E nem tempo lhe deram para sofrer a vida. A avó fora logo o empurrando para que se levantasse. Já era hora de ir embora. Não havia porque ficarem ali.
- Vista-se - disse-lhe ela.
E obedeceu. Não seria mais capaz de se opor a nada. Aquilo que era, perdera-se. Restara-lhe apenas a possibilidade de aceitar tudo de todos na vida.
Ao subir a cueca e as calças, vira o que acontecera: um curativo.
- ... caem - ouviu o médico dizer para a mãe ao fundo da sala. Não sabia que se tratava dos pontos e logo imaginou que se tratava da parte de seu corpo a que dava tanta importância, aquilo que o diferenciava das meninas e o fazia parte do mesmo mundo do pai.
Por isso saíra do hospital andando lentamente enquanto as pessoas lhe olhavam com o mesmo sorriso que lhe olharam ao entrar, apenas pela diferença que desta vez perguntavam a mãe:
- Fimose?
- Sim - ela lhes respondia.
- Ah! Ele vai andar assim, com as pernas abertas por mais alguns dias... - diziam, rindo.
Mas não sentia dor alguma. Não sentia nada. Ignorância causualista dos adultos, que acham que para cada causa, um efeito. Sim, andaria com as pernas abertas: era o único cuidado que conseguia pensar para evitar que aquela parte tão querida a si de seu corpo caísse, como vaticinara seu "novo amigo" ao pé do ouvido da mãe.
Entrara no carro. Voltaria para casa. Violadamente, voltaria para casa.

quinta-feira, 2 de agosto de 2007

O Silêncio

Pior do que a voz que cala,
é um silêncio que fala.
Simples, rápido!
E quanta força!
Imediatamente me veio à cabeça situaçõe
sem que o silêncio me disse verdades terríveis,
pois você sabe, o silêncio não é dado a amenidades.
Um telefone mudo. Um e-mail que não chega.
Um encontro onde nenhum dos dois abre a boca.
Silêncios que falam sobre desinteresse,
esquecimento, recusas.
Quantas coisas são ditas na quietude,
depois de uma discussão.
O perdão não vem, nem um beijo,
nem uma gargalhada
para acabar com o clima de tensão.
Só ele permanece imutável,
o silêncio, a ante-sala do fim.
É mil vezes preferível uma voz que diga coisas
que a gente não quer ouvir,
pois ao menos as palavras que são ditas
indicam uma tentativa de entendimento.
Cordas vocais em funcionamento
articulam argumentos,
expõem suas queixas, jogam limpo.
Já o silêncio arquiteta planos
que não são compartilhados.
Quando nada é dito, nada fica combinado.
Quantas vezes, numa discussão histérica,
ouvimos um dos dois gritar:
"Diz alguma coisa, mas não fica
aí parado me olhando!"
É o silêncio de um, mandando más notícias
para o desespero do outro.
É claro que há muitas situações
em que o silêncio é bem-vindo.
Para um cara que trabalha
com uma britadeira na rua,
o silêncio é um bálsamo.
Para a professora de uma creche,
o silêncio é um presente.
Para os seguranças de um show de rock,
o silêncio é um sonho.
Mesmo no amor,
quando a relação é sólida e madura,
o silêncio a dois não incomoda,
pois é o silêncio da paz.
O único silêncio que perturba,
é aquele que fala.
E fala alto.
É quando ninguém bate à nossa porta,
não há emails na caixa de entrada
não há recados na secretária eletrônica
e mesmo assim, você entende a mensagem.
(A Voz Do Silêncio - Marta Medeiros)

E há o silêncio. Há o silêncio como esta coisa pesada entre os dois. A distância. O silêncio da distância. Ele, sentado do lado de cá, ela, do lado de lá de uma mesma mesa de bar.
Ao redor, todos falavam humoradamente. Ser homem é estar em disposição para o mundo e relacionar-se com tudo a todo o momento. Sentados, encaravam-se e, no entanto, ignoravam aquilo que os rodeava, inclusive o barulho, assim como ignoravam um ao outro. Mas ignorar o mundo não seria lidar com ele? E o que se não nos apresenta que não seja a incômoda ausência, já que é no vazio entre as paredes que se está em casa? O que, se não a frustração, é que nos coloca em contato com aquilo nos vem ao encontro?
A privação do silêncio, portanto, é que os fez perceber que entre eles havia os rumores do calar-se.
- Mais uma cerveja? - perguntou o garçom, quebrando o silêncio e fazendo com que este fosse imediatamente percebido.
- Ah... Sim? - respondeu ele em tom inquisidor, questionando a mulher com o olhar.
- Sim. Pode ser. - Ela sempre tinha esse modo direto de encerrar os imbróglios.
A linguagem é limitada. De que nos vale algo que não nos serve em todos os casos? De que nos serve algo que precisa de complementos outros que não estão a nosso alcance? Não há em nossa língua uma só palavra que descreva a contento o sentimento que pesa agora sobre a mesa. Talvez, uma imagem, uma metáfora, mas nem estas seriam suficientes para descrever o familiar estranhamento da cena.
Melhor seria dizer coisas óbvias, falar de coisas comuns... Jogar palavras fora, vomitá-las, se assim fosse necessário.
Ele, irriquieto, procurara pelos olhos dela que, inertes, miravam a espuma da cerveja que se agarrara na parede do copo após o gole anterior. Subitamente então, ele fora tomado pelo desejo de dizer o que sentia, de abrir o peito, extravasá-lo. Assim, subitamente, é que fora tomado pelo ímpeto de fazer-se aberto, desnudar-se, correr o risco de dizer que, mesmo homem, sente. Desse modo, é que tivera a vontade infantil de dizer o que lhe vem à mente, sem censuras, e de arriscar ser visto como um menino. Sim, apesar da idade semelhante de ambos, ela lhe dissera numa das raras ocasiões em que o silêncio não os constrangera a ponto de instalar-se como uma visita entre eles: "às vezes, quando nos falamos, sinto-me tão envolvida por você que me esqueço... Me esqueço que você é apenas um menino". Era preciso pesar bem, era preciso determinar exatamente o que colocava a perder mostrando-se dominado pelo ímpeto, como só as crianças se permitem, mostrando-se incapaz de controlar seus impulsos, assim como se espera de um adulto.
Ela, ainda olhando o copo, calada, pensava sobre como o silêncio era bem vindo nessas situações desconfortáveis em que não se tem o que dizer. Ou naquelas em que o que se tem a dizer não é exatamente agradável. Preferia ficar calada.
- Que ele não fale nada! - pensava ela.
- Será que devo dizer o que sinto? - ruminava ele.
- Se ele disser algo, respondo secamente e ele se cala.
- Se eu falar como me sinto, talvez ela se abra para dizer como se sente...
- E se não se calar, eu fecho a cara.
- Mas porque será que ela não disse nada até agora?
- Pensando bem... Talvez se eu dissesse que não tenho mais interesse em me encontrar com ele vez ou outra... Bem, talvez ele parasse de me ligar e insistir para que saiamos.
- Será que ela não gosta mais de minha companhia? Mas é que... Bem...
- Nem é que não goste mais da companhia dele. Sim, da companhia gosto. Mas não quero ter a obrigação do sexo vagabundo que fazemos depois do bar.
- É que... É sempre tão bom quando saímos. Nunca encontrei alguém com que me desse tão bem! Somos tão parecidos... No entanto, eu desejo falar e ela, bem, ela permanece em seu silêncio.
- Acho que é melhor dizer logo.
- Se for para dizer que não quer mais nada... Melhor manter-se como um corpo insepulto a minha frente.
E assim, a noite se findou. O sexo vagabundo se consumou. E cada um foi para sua casa, mais uma vez.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Do medo e seus empecilhos

- Que assim seja!, pensou quando entrava no ônibus. Era melhor não dizer uma só palavra. Melhor não abrir espaço para o diálogo.

Guardou a idéia para si. "Que assim seja!", seguiu o caminho até sua casa pensando. Não é que uma decisão importante tenha sido tomada. Apenas questão de convicções...

Havia tempo que deixava doer em si uma dor. Fora forçado, desde pequeno, a se tornar um indíviduo. Por mais que pedisse à família: "por favor, me engulam", aos 6 anos de idade, no dia do aniversário, ainda assim, pedindo, havia de ser só no mundo. Não, sem antes, tentar desesperadamente agarrar-se ao que lhe viesse ao encontro.

Foi assim, na busca por portos a que pudesse atracar seu barco de indivíduo e torna-se, no mínimo, dois, foi assim que aprendeu a amar. Ou fora assim que nunca aprendera a amar.

Aos 12 anos, conhecera Carla. Carla, adorável, gostava de ver novelas. Passara então, a assistir ao lado dela, todos os capítulos da das sete e das oito, "as melhores", segundo ela.

Aos 13, apaixonara-se por Quintanilha. Não que a menina tivesse esse nome. Família tradicional, Quintanilha. Mesmo amantes, não se sentia à vontade para chamá-la pelo nome, Laurinda, e chamava-a pelo sobrenome da família.

Vivia a família Quintanilha e foi assim que começara a se interessar pelos assuntos da matemática e da economia. Era preciso saber conversar com o Sr. Quintanilha nos jantares de família. Era preciso, desesperadamente, fazer parte daquele mundo que, na verdade, era apenas um mundo: o que importava era fazer parte.

Muitos anos ficou com a menina. 3. Foi quando aos 17 conheceu Paulinha. Quanta amabilidade! Paulinha! Ah! Que saudade daquela época em que corriam que nem loucos de cinema a cinema na cidade em busca dos melhores filmes nos festivais! E do melhor lugar para sentar!

"Paulinha era louca", ele diria! Na verdade era apenas mais velha que ele. Encarava a vida de outro modo. Estudava teatro na federal. Grupo de amigos. Maconha aos finais de semana. E aquele pensamento leve de quem não tem compromissos a não ser consigo mesmo.

Depois, amargou dois anos só. Casa-trabalho, trabalho-casa e muitas sessões de terapia para aprender que não precisava ser o outro para ser gostado pelo outro. E muitas sessões de terapia para aprender que ser indivíduo nem era tão pesado assim.

Como nem tudo, porém, muda, a couraça do indivíduo que ele era permanecera igual em alguns pontos.

E aí foi quando conheceu Daniella num desses sites de relacionamento. Começaram a trocar mensagem esparsas, depois, se falar por um desses programas de conversa... Até que trocaram telefones, endereço... Até que marcaram de se ver... E se viram.

Muito havia em comum! Talvez nunca tanto! Nem era preciso ser outro para ser dela. Ela nem precisaria ser outra para ser dele. Haviam sido feitos um para o outro (?). Os gostos eram iguais. Não surpresa quando, no dia do encontro, por exemplo, a menina exclamara: quando mais nova eu achava que tinha que ser outra para que gostassem de mim e ia mudando de roupagem a cada relacionamento que arrumava. Ou então: desde muito nova eu achava que era pesado ser eu... então, fiz terapia.

No entanto, nem tudo é igual, que seria como lidar com um espelho. Daniella morava próximo ao local deste primeiro encontro. Levou o rapaz até o ponto, sem saber o que ele pensava.

- Como pode? E agora?! Terei que ser eu simplesmente?!!! E como esconder-me de alguém que é tão eu quanto eu mesmo?! Sim... Se gosto? Gosto! Como gosto! Seu cheiro, sua pele, seus olhos! Seus cabelos e seu sorriso! Seu toque... Seu calor... Como gosto! Como dói ter de andar ao lado dela e ouví-la falar sobre as coisas que viveu, sabendo que vamos para o ponto de ônibus e que não mais nos veremos esta noite!... O que fazer, meu Deus?! O que fazer?!... Sim... Que assim seja!

- Que assim seja!, pensou quando entrava no ônibus. Era melhor não dizer uma só palavra. Melhor não abrir espaço para o diálogo.

Acenou um tchau quando ainda passava pela roleta. Daniella sorrira da calçada e acenara de volta. Um beijo? Sim, ela jogara um beijito célere, sem nem ao menos saber que, de hoje em diante, o rapaz decidira: se esconderia dela.