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terça-feira, 25 de setembro de 2007

Olfodor e o sentir

Na vida há sempre confusões.
Pois vejam vocês... Este mês, por exemplo... Setembro é sempre mais promissor que o pobre agosto. E pensei: pela primeira vez chego à marca dos 30 contos em um mês... Quer dizer, quase um post por dia... Seria ótimo!
Mas aí o que me resta são contos inacabados. "Crime no Catete", por exemplo, está pronto na cabeça, mas quem disse que consigo passar para o computador está mentindo! Nem para o papel consigo...
Tantas coisas em tão pouco tempo!
Pois é... Houve uma vez, há muito tempo, vejam vocês, há uns três, quatro anos, que escrevi sobre Olfodor. Gostava desses anagramas bobos, fingindo que falava de mim sem o fazer. Olfodor, nada mais óbvio. E Olfodor não sentia... Lembro-me bem "Olfodor não sentia, Olfodor era algo que não se permitia", eu dizia no conto.
Pois agora Olfodor sente. E o que faz do que sente? Sente-se confuso!
Minha gente! Sente-se confuso com tanto sentir, o pobre (e vejam bem: quando falo de Olfodo não falo de mim, claro!). Também, pudera! Três anos e pouco sem sentir e agora, sente... Por sorte os sentimentos não sentidos ainda não vieram cobrar com juros e correção pelo tempo que ficaram em fila de espera.
Imagina se isso fosse como uma central telefônica! Quantas ligações Olfodor não ia ter que atender agora, de cada sentimento chatinho dizendo: "Ei, agora toma! E te vira!". Sortudo Olfodor, voltou a sentir mas sem a cobrança dos sentimentos não sentidos no passado.
Ó, tem horas que ele está assim, parado... Do nada sobe essa queimação na garganta e... Um riso gostoso. E ri de si. Não, minha gente! Ele não precisa mais de filme, de livros ou de música! E às vezes a queimação é um choro doído, muitas vezes pela confusão por não estar mais habituado a sentir.
E o que sente? Ixe! Tanta coisa.
Por exemplo, sexta Olfodor saiu com suas amigas. Nossa! Que saudade que ele sentiu durante o final de semana! Tanta que elas nem fazem idéia!
E sábado. No sábado, Olfodor saiu pra dançar com uma amiga das antigas (tanto tempo sem se verem) e conheceu gente nova. E por mais que insista em pensar que não, Olfodor gostou bem é de tudo. Quer dizer, quase tudo, que depois veio uma confusãozinha na mente dele: ele agora pensa que tudo o que estudou nos últimos 3 ou 4 anos de nada lhe serve... Pois imaginem! Agora ele quer mudar até mesmo de seita (e não falo de religião)!
Olfodor é meio estranho, às vezes. Acho que anda meio perdido o coitado no meio de tanta coisa que anda sentindo. E mesmo sem os sentimentos antigos virem bater-lhe à porta e cobrar os atrasados, há tanto sentimento bom e ruim agora, neste exato momento, que ele fica perdidinho. Mas, o melhor: não deixa nenhunzito passar! Vai logo agarrando os sentimentos atuais e... Sentindo.

Ó, não conheço bem o tal do Olfodor. Mas até simpatizo. Domingo por exemplo ele descobriu que mais que ama as amigas. Ele não consegue viver sem elas. AH! Não só as amigas, tem os amigos também. Mas é que elas são mais próximas...

Hoje, por exemplo, teve outra do Olfodor (prometo que é a última): ele reencontrou Lucas depois dum final de semana. Lucas tava meio chata, sabe? Mas é normal. Tem dias que Lucas não está nem para Lucas mesmo. Mas sentiu assim, um calorzinho no peito... É que ele sabia que mesmo de maré ruim, Lucas ia estar ali. Mais Lucas do que todos os outros (e, não, não é chantagem emocional e nem adianta, Lucas, se preocupar achando que não é boa amiga. Vá pro diabo com essas auto-cobranças tolas!).

Mas é isso, minha gente, Olfodor sente. Rola confusão na cabeça dele, mas o que importa é que ele sente!

sábado, 22 de setembro de 2007

Pelo Tempo que Durar

Pelo Tempo Que Durar
(Adriana Calcanhotto, Marisa Monte)

Nada vai permanecer
No estado em que está
Eu só penso em ver você
Eu só quero te encontrar

Geleiras vão derreter
Estrelas vão se apagar
E eu pensando em ter você
Pelo tempo que durar

Coisas a se transformar
Para desaparecer
E eu pensando em ficar
A vida a te transcorrer
E eu pensando em passar
Pela vida com você

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

O mais que perfeito

Ah, quem me dera ir-me
Contigo agora
Para um horizonte firme
(comum embora...)
Ah, quem me dera ir-me!!

Ah, quem me dera amar-te
Sem mais ciúmes
De alguém em algum lugar
Que não presumes...
Ah, quem me dera amar-te

Ah, quem me dera ver-te
Sempre a meu lado
Sem precisar dizer-te
Jamais : cuidado...
Ah, quem me dera ver-te

Ah, quem me dera ter-te
Como um lugar
Plantado num chão verde
Para eu morar-te
Morar-te até morrer-te...

(Vinicius de Morais)

Repetida no re-petição?

É, tem horas que nem sei. Há horas-de-nem-saber na vida. E nem sei, mas acho que já postei esta letra. Mas cabe bem agora... Cabe muito bem agora. Tanta coisa se encaixa, inclusive o apelido do eu-lírico para quem gosta... rs.


Último Romance - Los Hermanos

Eu encontrei-a quando não quis
Mais procurar o meu amor
E quanto levou foi pra eu merecer
Antes de um mês
Eu já não sei

E até quem me vê
Lendo jornal
Na fila do pão
Sabe que eu te encontrei
E ninguem dirá
Que é tarde demais
Que é tão diferente assim
Do nosso amor
A gente é quem sabe, pequena

Ah vai!Me diz o que é o sufoco
Que eu te mostro alguém
Afim de te acompanhar
E se o caso for de ir à praia
Eu levo essa casa numa sacola

Eu encontrei-a e quis duvidar
Tanto clichê
Deve não ser
Você me falou
Pra eu não me preocupar
Ter fé e ver coragem no amor

E só de te ver
Eu penso em trocar
A minha TV num jeito de te levar
A qualquer lugar que você queira
E ir onde o vento for
Que pra nós dois
Sair de casa já é se aventurar

Ah vai!Me diz o que é o sossego
Que eu te mostro alguém
Afim de te acompanhar
E se o tempo for te levar
Eu sigo essa hora
Pego carona
Pra te acompanhar

Volver

Volver é um filme lindo. Pouca coisa expressaria o que sinto agora. O vazio e a dor, e a saudade, e o turbilhão de sentimentos. Mas acho que a cena em que Penélope Cruz canta, entre lágrimas, Volver (na verdade, voz de Estrella Morente), consegue passar um bocado disso. Segue a letra, traduzida.

Volver (Voltar)

Eu pressinto as piscadas
das luzes que ao longe
vão marcando minha volta.
São as mesmas que alumiaram
com seus pálidos reflexos
fundas horas de dor.

E ainda que não queira o regresso
sempre se volta ao primeiro amor.
A velha rua onde o eco disse
"Tua é sua vida, teu é seu querer",
sob o olhar zombador das estrelas
que com indiferença
hoje me vêem voltar.

Voltar...
com a testa vagando,
as neves do tempo
pratearam minha têmpora
Sentir...
que é um sopro a vida,
que vinte anos não são nada,
que febril a olhada
errante na sombra
te procura e te nomeia.

Viver...
com o alma aferrada
a uma doce recordação
que choro outra vez
Tenho medo do encontro
com o passado que volta
a enfrentar-se com minha vida...

Tenho medo das noites
que povoadas de recordações
encadeiam meu sonhar...
Mas o viajante que foge
tarde ou cedo detém seu andar...
E ainda que o esquecimento, que tudo destrói,
tenha matado minha velha ilusão,
guardo escondida uma esperança humilde
que é toda a fortuna de meu coração.

Voltar...

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Cold Water - Damien Rice

Há tantos dias que só posto textos meus... Uns mais leves, outros nem tanto. Então aqui vai uma letra de música...

Cold water - Damien Rice

Cold, cold water
surrounds me now
And all I've got is your hand
Lord, can you hear me now?
Lord, can you hear me now?
Lord, can you hear me now?
Or am I lost?

Love one's daughter
Allow me that
And I can't let go of your hand
Lord, can you hear me now?
Lord, can you hear me now?
Lord, can you hear me now?
Or am I lost?

Don't you know I love you
And I always have
Halleluijah

Cold, cold water surrounds me now
And all I've got is your hand
Lord, can you hear me now?
Lord, can you hear me now?
Lord, can you hear me now?
Or am I lost?

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Do ato de escrever

No mundo há muito de cada coisa. Já escrevi sobre isso (direta ou indiretamente). Principalmente no conto "Pessoas e Pessoas", em que isso, na realidade é o próprio começo do conto.

É como Lili escreveu em seu blog uma vez (e de um modo, digamos, muito tímido, porque sei o quanto ela hesitou em publicar o texto que aqui cito):

Das coisas que existem e das que nunca vimos.
Então tem o mundo né?
E tem...as coisas físicas e todas as outras, que estão infinitamente em maior quantidade, mas não em volume.
Tem as pessoas, tem os animais, tem as plantas,e aí cabem as flores, as frutas, as raízes, as copas, as folhas e todo o resto, tem...os livros, tem...as artes e aí são muitas também: Pintura, escultura, poesia, literatura, dança, teatro, ai tanta coisa, e tem...comida, e diversas formas de prepará-la e serví-la, e comida aliás é assunto que não acaba porque se faz com tudo isso aí em cima...menos pessoas...quer dizer, sim e não. Envolve pessoas.
Tem as casas. Por dentro e por fora.
Tem os lugares. Abertos e fechados. Que já existiam, modificados e feitos todos a mão.
Tem o som, tem o cheiro, tem o gosto, tem o tato, tem o que se vê e o que não se vê também. Tem irmão e uma vez ele me perguntou porque quando fechamos os olhos ou quando está muito escuro mesmo ficamos vendo coisas. Eu ri, e disse que só ele era assim. Ele ficou revoltado e não acreditou. Então disse que era assim mesmo, que todo mundo era assim, que eu não sabia explicar mas que era alguma razão neurológica destas que envolvem descargas elétricas e químicas e ele ficou satisfeito.
Tem água. De todo tipo, de mar, de pia e de rio. E tem todas as criaturas que vivem nas águas, inclusive às que inventamos, e outras que desconfiamos que existem mas dizem que é lenda então ficamos quietos.
Não ficamos?

Há no mundo escritores e escritores também.

Sartre, em "O que é a Literatura", defende a idéia de uma Literatura Engajada, dizendo, por exemplo, que um dos pilares da produção literária é "para quem se escreve?"... Pois é... Acho que escrevemos para poucos. Por sorte, escrevo para meus amigos, para as pessoas que gosto, para alguns que vêm aqui e lêem (Guida, obrigado pelo comentário - nem sei se Guida voltará aqui um dia, nem sei como ela chegou aqui, mas fico muito feliz e grato),para aqueles que se deixam sentir apesar da pobreza literária que, muitas das vezes, meu texto tem.

Danem-se os críticos. Danem-se as críticas (bem-vindos os comentários, mesmo que com críticas, claro. Falo aqui de uma crítica ferina, despropositada, fria, calculante).

Escrevo, sobretudo, para mim.

Crime no Catete (parte 1)

- Não rabisca aí, moleque! – disse o pai. Estava nervoso. Os olhos esquadrinhavam cada papel pregado ao poste. Buscava naqueles pequenos papéis coloridos e enrugados pelo grude de farinha e água algum sinal de uma virada do destino.
Seriam apenas papéis com números vazios de sentido, mas não para ele. Sempre jogava. Sempre que sobrava um trocado. E sabia dos horários do Miranda, que, ciente da importância de seu negócio, não aceitava apostador qualquer. Podia ser qualquer trocado, mas apostador qualquer não jogava em sua banca. Tinha que ser da área, ou amigo de um amigo, pessoa de confiança. Vez ou outra, tendo clientela tão seleta, até sorteava um número aleatoriamente, arrevelia do resultado oficial para distribuir mais prêmios, mas isso só em datas especiais.
O menino olhou assustado para o pai. Que mal havia em escrever?! Além do mais, a professora disse que era preciso praticar... E... E, bem, era lápis e lápis pode-se sempre apagar. Assim, mesmo após a advertência do pai, acrescentou, de cara emburrada, ao lado do 2 um outro 2, do 3 um outro 3 e do 4 um outro 4, que náo se ensina nada além de copiar hoje em dia.
Percebendo que o filho lhe desobedecera, José tirara os olhos dos papéis fixados mais alto no poste e lançou a mão abaixo, dando um tapa de raspão na cabeça do menino, que estava posicionado bem em frente de sua perna, debaixo do bra;o estendido com o qual apoiava-se ao poste-afixador-de-resultados.
- Ai! Ai! Pai! – gritou o moleque.
- Isso é pra você aprender a me ouvir! Já falei que não pode riscar estes papéis! Vamo, menino, vamo embora que já tá ficando tarde.
Era já cinco e meia da tarde. Mais três horas e Miranda tirava a banca. Decerto, esta não se localizava próximo ao poste, que este tinha a única serventia de ser recebedor dos resultados mais recentes. Todas as manhãs era a mesma cena. O senhor gordo descia as escadas ao lado da farmácia com uma cadeira de praia e uma bandeja com pernas, dessas de café da manhã, nas mãos, e acenando para o Fredim Alfredo, o dono do botequim, sentava-se embaixo da árvore, ao lado da banca de jornais. E aguardava que o Menino, que trabalhava com Fredim, levasse seu café até ali. Então, bebericava o café e só então dava a banca por aberta, colocando por sobre o colo a bandeja de café da manhã e por sobre ela, os blocos e a caneta que tirava do bolso da camisa. Estava iniciado mais um dia de trabalho.
Mas agora já era cinco e quarenta da tarde e José sobe a ladeira com o filho, voltando para casa, pensando se ainda dava tempo de tomar um banho e voltar ali para apostar no jogo da noite.
Contudo, lembrando-se dos horários do bicheiro, falou para si: “É, Zezim, hoje não foi seu dia”.
O menino ainda ia de cara emburrada ao lado do pai. Ao menos, tinha um pensamento que o confortava: mais uma vez, o velho não ganhara nada naquele jogo. Entretanto, sabia que o melhor mesmo era se ganhasse. Sabia que dessa forma ia ter algo mais na janta em casa, um doce ou uma porção maior de comida, quem sabe.
***
Mas do acontecido é que ainda não tratamos. É que como era de se prever, os números do moleque, mal-escritos, à lápis, ao lado dos números oficiais do resultado vespertino, acabarm por gerar despesas maiores que as desejáveis ao Sr. Miranda. Este, agora na prisão, conta todo o acontecido quatro, cinco, dez vezes, repetidas e seguidas vezes, para quem quiser ouví-lo e para quem não quiser também, fala até sozinho o coitado, que o que importa é repassar as cenas e tentar recordar-se de cada detalhe. Era um crime perfeito, era a justiça.

domingo, 16 de setembro de 2007

Amor, saudade, ciúme (The final Cut)

Outras notícias
do corpo não quer dar, nem de seus gostos.
Fecha-se em copas:
“Se você não vem depressa até aqui
nem eu posso correr à sua casa,
que seria de mim até o amanhecer?”
Concordo, calo-me.
(Carlos Drummons de Andrade)

O pior da noite é a impossibilidade de ser dia. Há situações várias em que tudo o que nos resta é aceitar e, resignados, seguir o rumo que se nos apresenta.
O caminho até a rodoviária não fora tão longo nem tão atordoante quanto poderia ser. Um certo alívio lhe acalentava o peito. "O que não tem solução, solucionado está", dizia seu avô, ele lembrou-se.
Não que não houvesse solução. Voltar era uma solução. E fora esta que lhe apresentara o mundo quando a este ele pedira um sinal.
Vencer seu orgulho nem fora uma tarefa árdua. Pensava que não havia falhado. Pelo contrário, havia conseguido entrar em contato com o mundo de tal modo que o mundo lhe disse o que fazer através do rapaz que embarcara na estação Centro e chorara tão logo as portas fecharam-se atrás dele.
Agora, ali naquela fila para compra de passagens, nenhum pensamento rebelde lhe invadia o peito. Nada o tocava. Havia era mesmo um pequenito sorriso nos lábios, modo encontrado por ele de evitar entrar em contato consigo mesmo.
A fome fizera-o comprar uma maçã com um ambulante. Como a fila estava grande, devoraria a maçã ali mesmo e, não podendo lavá-la, dobrou o joelho esquerdo, apoiando-se com o pé na outra perna, apoio o mochila na coxa e tomou para si o canivete.
Descascou a maçã lentamente. À medida em que os pedacitos de casca caiam no chão e ele os ia recolhendo e guardando na mesma mão com que segurava o canivete, pensava sobre como as coisas revelam-se a nós: por baixo da casca, há um saboroso fruto carnudo esperando por ser mordido. Talvez, por baixo de todas as dificuldades, de todo o ciúme, de toda a saudade e de todo o amor que sentia pelo outro, houvesse um fruto carnudo e apetitoso apenas a espera de ser descoberto. Haveria, talvez, uma outra oportunidade. Esta vez apenas não era a vez ainda, quem sabe?
Guardou os pedaços de casca num dos bolsos da calça junto ao canivete. Depois se desfaria deles em alguma lixeira, tanto dos restos quanto do instrumento comprado inutilmente. À primeira mordida, sentiu o suco adocicado da fruta descendo-lhe pela garganta, como um bálsamo. A carne do fruto invadiu-lhe o corpo. Sentiu-se acariciado por aquela fruta mordida.
Olhou ao redor. Ainda algumas pessoas à sua frente. Talvez fosse de se estranhar tanto movimento aquele horário. Os vendedores nos guichês pareciam nervosos. Certamente não esperavam tanta procura por passagens aquela hora do dia e viram seus planos de conversar sobre o futebol da véspera frustrados por um cliente, e depois outro e mais outro.
Não gostava dos passos lentos em filas. Na verdade, era um paradoxo: não gostava dos passos lentos como também não gostava quando alguém esperava que o espaço existente entre si e o outro fosse maior para só então andar. Sentia-se traído pelo outro, este que lhe tirava o direito de escolher entre dar um pequeno passo ou esperar para dar passos maiores.
Bom seria se bastasse o carinho de um fruto ou a decisão ditada a nós pelo mundo para que realmente os problemas se solucionem. Tão lentamente quanto descascara a fruta, um sentimento lhe apertava o peito. Mas era um processo tão paulatino que nosso rapaz conseguira disfarçar para si mesmo o que se passava, aumentando o riso leve que havia posto nos lábios para não entrar em contato consigo mesmo. Contudo, como um balão de ar a encher-se, chegou o momento em que o sentimento estourou-se e virou idéia: o que ele faz agora na companhia do outro?
Era o mesmo pensamento que o fizera sair de sua cidade. O mesmo sentimento que não o deixara dormir na noite anterior. O que fazer daquilo? Como livrar-se daquele sentimento? Seria possível virar a dor pelo avesso?, pensou ele.
Deixou a mão correr por sobre a calça e sentiu-o. O canivete, o instrumento que lhe fora necessário e que então o deixara de ser... A concretude daquela ferramenta ainda poderia servir-lhe de algo.
- Mas que idéia mais disparatada - falou baixinho, apenas para si.
Mas... Porque disparatada? Ele apenas a ele pertencia. Entretanto, e aquelas pessoas todas ao redor? O que diriam? E o que tinham a ver com sua história? Não precisavam ser testemunhas daquele desfecho. "Sim, o melhor é esperar pelo momento certo", decidiu, já pegando o canivete no bolso da calça e guardando-o novamente na mochila, como que para distanciar-se da idéia.
Foi com o pensamento ainda confuso que chegou diante do atendente.
- Uma passagem para ..., por favor - pediu.
- A que horas? - perguntou o atendente. - Hein, ou, a que horas você quer ir? - Repetiu ele de modo rude, ao notar que nosso rapaz não lhe dera atenção.
- Ah, sim... Bem, qual o próximo ônibus?
- Parte em meia hora. Plataforma 47. Vai?
- Sim, está ótimo.
- Vai pagar como?
- Cartão... - ao que invadiu-lhe um pensamento ético: já não seria possível pagar a fatura do mês seguinte. Talvez a família pudesse quitar as despesas, mas não queria deixar para eles nenhum fardo além do da própria morte - Não... Perdão. Ainda dá tempo de mudar? Prefiro se puder pagar à vista.
- Olha, não dá pra gente ficar trocando toda hora. É a vista mesmo... Ou o senhor ainda vai pensar em outra coisa antes de eu emitir o bilhete? - respondeu impaciente o atendente.
- À vista, por favor.
- 79 reais, senhor.
- Ah, sim. Um instante, por favor.
O acaso é um mestre. Tem seus ardis. Certo que nosso rapaz não perceberá mas, sim, apenas agora é que o mundo realmente entra em sintonia com ele. Enquanto pegava a carteira e o dinheiro para comprar o bilhete sob os olhos raivosos do atendente, ouviu o toque de seu celular. Buscou-o rapidamente num dos bolsos da calça e, com um sorriso amarelo dirigido ao empregado da companhia de ônibus, atendeu a ligação: era ele.
- A.. Alô? - titubeou nosso rapaz.
- Alô. ... ?
- Sim, sou eu, querido. Está tudo bem? Sua voz está estranha...
- Acabei de almoçar com ele.
-Com ele?... - prefriu fazer-se de desentendido.
- Você sabe... Saí mais cedo do trabalho hoje. Chamei-o para almoçar comigo no centro da cidade. É um restaurante que a gente gosta. Achei que ia caber bem à situação.
- Sim...
- É... Bem... - falava sofregamente. Era como se quisesse algo. Precisava de algo que ainda não conseguia dizer. Enquanto falava, tentava organizar as idéias e os sentimentos em seu peito - Contei para ele a verdade. Disse que temos nos falado, disse que ainda não te conheço, disse o quanto tempo nos falamos todas as noite, como nos conhecemos. Enfim, contei tudo.
- E ele?
- Saiu chorando. Pegou o metrô. Ainda não nos falamos.
- E você?
- Eu... Eu quero você aqui, agora.
- Eu p...
- Não diga nada... Sei que é difícil. Sei que...
- Moço, por favor, cancela a passagem - disse nosso rapaz para o atendente, que olhou-o lívido de raiva.
- Passagem? Onde você está?
- Onde VOCÊ está?
E soube assim nosso rapaz que ficaria mais uns dias ainda naquela cidade desconhecida.

Amor, saudade, ciúme (parte III)

A sombre de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma.
(Clarice Lispector)
Foi só por um segundo, todo o tempo do mundo. E o mundo todo se perdeu.
(Cláudio Lins)
O corpo era um pecado ao qual ainda não haviam se permitido. Agora já não havia como. O corpo, aquilo a que não se permitiram, seria uma concretude, talvez pesada, talvez nem tanto.
Metrô em cidade grande é sempre uma multidão, todos aqueles corpos estranhos se esbarrando. Por vezes, sentia-se mesmo violado. O toque da corpulência estranha que o outro era lhe incomodava.
A mochila nas costas complicava mais ainda as coisas. Havia de ter ali espaço para ambos: para ele e para sua única companhia naquela cidade. Nela, mudas de roupa e o canivete, memória indelével de uma percepção súbita de que algo deveria ser feito; nele, a ansiedade e o medo.
Conseguira dormir na estrada. De nada adiantaria imaginar e repassar a cena do encontro. E conseguiu deixar-se dormir, o sol na cara e o ar viciado e frio do ônibus. Sempre preferira o vento no rosto, bagunçando-lhe os cabelos, que o ar condicionado e vidros fechados.
No metrô também não havia muita escolha. O ar entrava pelas frestas no teto e pelas diminutas vidraças abertas. Ao menos, não era gelado.
Subitamente um pensamento invadiu-lhe as idéias claras e organizadas e já não era possível parar, pegar o caderno e tentar organizar cada coisa que pensava. Não havia espaço naquele vagão para isso. ALém do mais, já havia feito isso no caminho entre sua cidade e a cidade do outro, sem muito êxito. Sentia falta das estrelas e do céu escuro, de sua janela e de sua insônia.
Só mais duas estações e precisaria trocar de composição. Era distante o bairro do rapaz. Três linhas de metrô diferentes. Já estava na segunda agora. Mesmo próximo, ainda temia. O caminho era desconhecido. E ainda aquele pensamento, desconsertando-lhe as idéias: "E se não encontrar a casa dele? Ou e se encontrar e ele não estiver em casa?".
O melhor talvez seria resignar-se e dar tudo como resolvido, retornando com sua companheira para sua cidade, tentando convencer-se de que o destino, a casualidade, é um bom solucionador. No entanto, e o que fazer de toda a coragem, de toda a determinação e vontade de resolver tudo e, ao fim e ao cabo, por intermédio do instrumento adquirido no camelô próximo à estação de ônibus, obter o êxito esperado em seu empreendimento?
O medo é terra fértil. E se nada saísse conforme o planejado?, começara a pensar. E se encontrasse a casa do rapaz, se encontrasse o rapaz em casa e, mesmo assim, havendo planejado e ensaiado diversas vezes cada palavra e movimento, e se ainda assim nada saísse conforme o esperado?
Um bom caminho seria buscar, em meio ao ar bolorento e de todos os corpos em contato no metrô, um sinal que lhe desse alguma direção, qualquer que fosse ela. Bastava ser capaz de aceitá-la, de ouvir o sinal ou de vê-lo e, abnegando qualquer decisão anterior, seguir o rumo indicado.
Começou então a atentar para cada pessoa e barulho no vagão. Esqueceu-se, contudo, de atentar primeiramente para o fato óbvio de que sinais nem sempre são claros. São símbolos estes sinais que ele procura, símbolos aos quais compete apenas ao expectador dotar de significados. Assim, acabará por dotar o sinal recebido com o significado que mais bem lhe servir, sem deixar que o real significado venha realmente ao seu encontro.
Foi assim que, na estação Centro, percebeu um rapaz embarcando. Este, havendo parado próximo a porta, com um movimento de cabeça, iniciou um choro doloroso e silente. Era um rapaz pequeno, pele morena, cabelos escuros e curtos, deveria ter cerca de 20 anos, e estava chorando no metrô, as mãos agora por sobre os olhos para esconder as lágrimas. Súbito, enxugou as lágrimas, respirou profundamente e pegou o celular no bolso da bermuda. Não era possível, em meio às vozes dos estranhos no vãgão, ouvir as palavras ditas, mas havia certa dor na expressão, certa tristeza. Seria este o sinal?
- Se não voltar para casa, se não desistir de meu empreendimento, passando por cima de meu orgulho bobo, sou eu que voltarei chorando. Serei eu quem estará com o celular em punho, chorando meus problemas com algum amigo que, a esta altura, ainda estará distante, em minha cidade.
Aguardou ansiosamente pela próxima estação. Era nela que pegaria a linha que o levaria até a casa do rapaz. Mas já havia tomado sua decisão: tomaria o mesmo trem, quando este estivesse retornando. Iria para a rodoviária e voltaria para onde, desde sempre, deveria ter ficado.

sábado, 15 de setembro de 2007

Na pizzaria

A pizza portuguesa é o próprio amor. Tinha ganas de comer pizza. Mas, não sei... Simplesmente foi impossível... A fatia no prato, o garçom já havia saído da mesa. Servia a família sentada ao lado. A menina, santarrona... Pensa que eu não via suas pernas gorduchas chutando a perna bem delineada da namorada do pai. E o irmão...?! Moleque gorducho também. E fazendo piadas tolas sobre como ia emagrecer comendo todas aquelas pizzas. O pai rindo de tudo aquilo. Entupindo as veias dos filhos e rindo de tudo.
Teve momentos que pensei em pedir para mudar de mesa. Mas... Quedei-me ali. Hoje era um desses dias em que eu... A gente acorda sem querer dar trabalho. Nem pra nós mesmos. Não tomei nem banho. Seria muito esforço para mim. Preferi poupar-me o sacrifício.
Engraçado como a gente se esquece das coisas. Sempre fui àquela mesma pizzaria e tenho a sensação de sempre me prometer nunca voltar ali. Mas volto! Sempre volto... O atendimento péssimo. Os garçons sempre com aquela cara de "pois vou fazer um favor em te servir agora". E nem estou na França! Pois é... Terceiro setor de terceiro mundo!
Nada ia bem naquele lugar. Até a tal fatia. Ultimamente não tenho conseguido comer muito. O médico disse que passa, que é coisa da idade. Eu penso mesmo que seja do tempo. Enfim, idade ou tempo, tanto se me dá! (Ai, escrever cansa. E eu quase escrevo que cansar cansa. Mas a modernidade nos deu o backspace, o redial e essas teclas bem funcionais). Não acho que tenha a ver, porém, essa pequenez do estômago com minha inabilidade para lidar com a pizza portuguesa, que foi só ela bater no prato e me indispus. Me indispus comigo mesmo dessa vez.
A pizza portuguesa é o próprio amor. Não é "como se fosse", é ele mesmo. Todas aquelas coisas juntas, aqueles ingredientes comuns a todas as pizzas... Tudo tão frugal e, ao mesmo tempo, tão necessário. Tudo tão comum e, naquele mesmo espaço, disputando sabores, aromas, tudo tão distinto. Até o ovo ralo e mal cozido combina! O presunto, a cebola, o queijo... E olhei aquela fatia... E consegui até olhar a santarrona chutando a perna da futura madrasta com certa simpatia, ou piedade. Ela, a menina, não era capaz de compreender o amor. Quase peguei o prato com minha pizza e esfreguei na cara dela. Mas tem gente que não adianta e hoje é um dia desses, de não se dar trabalho.

O amor e a eternidade

"Vem pra separar
O lado bom do mal
E acalmar meu coração (...)
Vem pra se arrumar na minha confusão
Vem querendo ser feliz"
(Dudu Falcão)

O menino, com olhar furtivo lançado ao redor, deixara suas mãos tocarem as da garota. Os dedos entrelaçaram-se e os olhos cruzaram-se tímidos. Ambos desviaram o olhar, aproveitando para, novamente, verificarem se alguém os via.
Estavam na porta do colégio, os colegas haviam saído apressados ao toque da sineta, mas sempre poderia restar algum. Ao que parece, contudo, apenas os dois quedaram-se ali, rentes ao muro amarelado e limoso.
Os portões já estavam fechados. Talvez ainda algum professor esivesse lá dentro, trancafiado numa sala de aula ou na sala de reuniões refletindo sobre os rumos da educação no país ou sobre como faria para pagar o curso de inglês do filho, que o menino decidira fazer direito e ser diplomata.
Se houvesse algum transeunte na rua, isso não seria problema para os dois. Decerto que poderia passar por ali um conhecido. No entanto, não se preocupavam com isso. O problema seria mesmo os colegas ou professores: é que a eles não fora dada a dadivosa compreensão do que havia entre eles, ela recostada no muro, ele agora com o braço passando rente à cabeça da menina: amavam-se e criam na eternidade daquele amor. Os colegas e professores maculariam aquele sentimento: não são capazes de crer na eternidade. "Tudo passa", diriam. Mas o menino e a sua menina, eles dois criam na eternidade daquele amor.
Devagar as mãos do rapaz se soltaram do muro e começaram a tatear o rosto da garota. Ela olhou-o de soslaio, um charmezinho feminino, e sorriu de canto de boca. Ele sorriu de volta e entregou-se ao ímpeto que subiu-lhe em arrepio pela coluna: avidamente, lançou seus lábios contra os dela, buscando sua língua na dela, sua saliva naquela boca. Buscando nela a imagem daquilo que ele sentia. Sentia o amor. Sentia a eternidade.
- Você sabe... Vou ser sempre teu! - ele disse, findo o beijo, acariciando-a os cabelos.
- E eu sempre serei tua, meu pequeno! - ela respondeu.
Foi então que, sem vacilar e temer, deram-se novamente as mãos e caminharam até o ponto de ônibus logo na esquina.

quinta-feira, 13 de setembro de 2007

O ridículo jogo do gostar

"Love's a two way dream"
(Bjork - Bachalorette)

Andava por uma rua estreita e, a medida que caminhava, a medida que avançava a passos rápidos, respiração ofegante, a rua se estreitava cada vez mais.
Tudo começara quando ainda novo. Marina. Ainda era capaz de se lembrar do nome, do jeito, do rosto, do cheiro. Filha da amiga da amiga da mãe. Nunca sentira aquelas coisas antes de vê-la entrando na sala no primeiro dia de aula: o coração disparado, o suor escorrendo pela face, as extremidades carentes de sangue, o rosto pálido. Tudo se assemelhava a um grande susto. Menos Marina. Ela não era um grande susto: era a descoberta do amor, a descoberta do começo da rua larga, daquela imensa boulevard, bela, arborizada, ampla.
Depois veio Nicole. Cabelos de índia, sorriso de moleque. E foi quando, pela primeira vez, arriscou olhares, fortuitamente surpreendidos por ela. Foi quando, pela primeira vez, arriscou dizer o que sentia. Sem surpresa, vira assim as lindas árvores do boulevard morrerem, minguarem e virarem nada mais que plantas secas e estéreis.
Depois vieram outras... Outras e outros que o mundo moderno é uma série de possibilidades. Não que estas não estivessem presentes desde sempre, mas é que a modernidade e sua descartabilidade nos abrem os caminhos. Mas...
Mas ali estava ele. Andava por uma rua estreita e, a medida que caminhava, a medida que avançava a passos rápidos, respiração ofegante, a rua se estreitava cada vez mais.Olhava para os lados e tudo o que conseguia ver eram as paredes opressores de prédios altos e sem reboco. A sensação estranha de que, a qualquer momento, um dos tijolos que revestia a parede de um dos prédios ao redor, se soltaria e lhe acertaria em cheio a nuca, tirando-o do ridículo jogo do gostar. Gostar poderia ser nobre, mas era sempre um jogo ridículo: era admitir a baixeza indefesa do ser homem.
PS.: Texto escrito em às 11h29m do dia 14/08.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Amor, saudade, ciúme (continuação I)

"O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de irvendo tudo.
Mesmo a ausência dela é um coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualuqer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio"
Alberto Caeiro- Heterônimo de Fernando Pessoa


Pela janela vejo um moleque olhando para uma árvore pela tela de seu celular. Não olha com os olhos. Os olhos olham a tela do celular. E meus olhos vêem através da janela. Todos os contatos do mundo são atrapalhados, nada é como é, nada é puro. Queria viver a pureza das coisas, mas estas nunca me são dadas. Ao lado do moleque, o velhote, que, este sim, olha a árvore em sua pureza, também não vê a árvore, mas vê o orgulho que tem do neto que, pequeno, já sabe utilizar a câmera fotográfica do celular comprado em 12 vezes sem juros numa dessas grandes lojas de departamento, na cidade grande.

Moram no meio do nada, estes dois. Ao menos, trabalham no meio do nada. Cuidam dessa barraquita de mangas na beira da estrada. Não sei que estrada. Foi tudo apenas um ímpeto e não posso ainda dizer que me arrependo. O arrependimento talvez venha mais tarde, depois que todos os atos tiverem se consumado. Mas quando poderei dizer que terminei?

Parto por essa estrada. O meu caderno me valhe. Precisava escrever para organizar as idéias que, danaditas, se desorganizam sempre novamente. Foi num momento de iluminação que me dei conta: "é preciso fazer algo" e parti. As estrelas e o céu, a noite, foram minhas testemunhas. Gosto de ficar da janela a noite deixando os pensamentos terem paz. E de que me serve a paz do pensamento? Neste ônibus, busco, no ponto de chegada, a minha paz.

Olho a mochila na poltrona ao meu lado. A velhota na poltrona 47 já adormeceu. Uma velha escarrenta, de cara murcha e feições duras. Não quero envelhecer com marcas do meu sofrimento. A velhice não é redenção. A velhice é a marca da vida e os velhos, como uma grande tela em que a vida segue impressa. Tenho asco de olhar esta tela tão... Funesta. Eles fedem a mortos.

Mas nem o cheiro de morte que vem da poltrona 47, nem o molecote com o celular a beira da estrada e seu avô, me tiram da cabeça a dor e a idéia: a esta hora, ele deita-se com outro.

- Pois vim ver-te - direi.
- Vem cá, endoideceu? - ele irá responder.
- Quem é este cara? - perguntará o outro.

E a cena toda vai começar assim. Um toque de campainha, a porta se abre para mim, subo as escadas do prédio lentamente, porque a ansiedade não caberá no elevador, e entro no apartamento e a conversa se inicia. Se inicia e prossegue com volteamento lógicos e trocas de farpas. Falarei sobre o amor e ele, sobre a abnegação. O outro, gritando que fora traído a todo o tempo. Ele tentando explicar-se. Eu vendo tudo em chamas e sentindo o meu próprio peito esbrasear-se.

- Não vê?!!! Você não deveria ter vindo! - gritará ele comigo.
- Destrui seu mundo cor de rosa? - responderei ironicamente - Querido, não era esta a intenção. Queria apenas resolver tudo. Tenho raiva deste que te acompanha! É com ele que me trai.
- Não! Não invertam o jogo! Eu sou o grande traído! - dirá o outro. - Como puderam?! Como chegaram a isso?! E eu, sem nem ao menos perceber!
- Querido...
- Como assim "Querido"? - direi eu - Quero que decida!
- Decido por ele!
- Sempre abrindo mão do que realmente deseja - dirá o outro.
- Pára! Como assim? Não me quer? - dirá ele.
- Quero, mas é claro que você não me deseja mais como antes. É este que você quer! Este que invadiu nosso quarto e nossa vida - e aponta para mim.

Abrirei então a mochila. Pegarei o canivete... Não... O canivete já não será mais necessário quando eu tiver já morrido por dentro.

sábado, 8 de setembro de 2007

Amor, saudade, cíúme

"Amor é sede depois de se ter bem bebido"
(Guimarães Rosa)

"A saudade mata a gente, morena, a saudade é dor pungente"
(Antônio Almeida e João de Barro)

"Mas na voz que canta tudo ainda arde/Tudo é perda, tudo quer buscar, cadê?/Tanta gente canta/Tanta gente cala/Tantas almas esticadas no curtume/Sobre toda estrada, sobre toda sala/Paira monstruosa/A sombra do ciúme"
(Caetano Veloso)


Era apenas o vazio a sua companhia. O vazio e a insônia, que lhe visitava apenas nos finais do dia, quando dormir era redenção. O cansaço pesava-lhe os olhos, mas não conseguia dormir: havia tanta ausência que dormir não lhe deixaria tempo para sentí-la toda. Não que não dormir fosse uma escolha deliberada, não que este sentido, o sentido do "para quê" não dormir, estivesse claro para ele, mas, sim, podemos arriscar e dizer que, apesar de dizer que não gostava da dor da ausência, não dormia para melhor sentí-la.


E, além da ausência, havia ainda outra dor: é que na cama do outro não havia vazio. Tentava contentar-se com a idéia de que não havia vazio, mas que havia ausência uma vez que ele não estava lá, mas não tinha como garantir que o outro, com sua companhia nos braços, na cama, na hora de dormir, pensava nele, nele que estava sempre tão distante no espaço.


Assim sendo, não dormia, nosso pobre rapaz. Pensava e sentia as dores provenientes do pensar. "Pensamos muito", dizia o outro às vezes, mas como não pensar nas coisas quando elas não são tão simples?


Esta já era a quarta noite consecutiva que, percebendo-se incapaz de dormir, decide levantar-se e passar a noite à janela, olhando o céu e as estrelas, imaginando que estes desciam do céu e vinham fazer-lhe companhia. Mas eram companhia que não lhe bastavam, mesmo que de fato descessem do céu: não era elas que queria. Além do mais, se bastassem, ele teria já voltado para a cama e conseguido pregar os olhos, mas ainda está ali, na janela, fitando o céu.


Ali, era como se as idéias se encaixassem. Era como se pudesse, olhando idéia por idéia, compreender as possíveis conexões, estabelecer paralelos e ir montando o quebra-cabeças do vivido. Foi assim, nesse brincar lúdico com as idéias que lhe afligiam que concluiu e disse em voz alta: "Algo deve ser feito!". A dor era muito grande para simplesmente tentar suportá-la, para ir lidando com ela repetidas vezes, todas as noites em que o outro tinha companhia, todos os finais de semana ou sempre que ambos, por algum motivo, não pudessem se falar.


Não moravam longe, contudo a distância era certamente um fator que contribuia para que as coisas ainda estivessem no pé de complicação em que estavam. Ela era certamente um dos fatores para que nosso solitário rapaz deixasse o outro livre para seguir com seu relacionamento antigo: melhor velar o amor que enterrá-lo de vez, constatando seu óbito. Mas o outro certamente diria, caso ouvisse esta frase: "Mas meu amor por este que me acompanha não morreu!".


- É que aos humanos é dada a miserável percepção da miséria como um considerável ganho, que ser miserável é melhor que nada ser - responderia nosso rapaz no ímpeto de justificar-se e defender sua idéia (que, por si só, já é defesa), apesar de saber que, de fato, o amor do outro por aquele que o acompanhava não deve mesmo ter morrido. Exatamente por isso, seria preciso, agora, fazer algo.


Por não morarem distantes, decidiu que estava a pôr um ponto final em toda sua dor, pegou a mochila por sob a cama e, nela enfiando algumas mudas de roupa, partiu para a rodoviária.


Foi no meio do caminho entre sua casa e a rodoviária que lembrou-se de que havia esquecido o principal: o instrumento que, ao fim e ao cabo, lhe extirparia a dor do peito. Assim, decidira improvisar: comprara um pequenito canivete, diminuto porém bastante afiado, num dos camelôs próximo à estação de ônibus, os olhos vidrados na lâmina e a mente planejando o futuro.


Nada mais tinha consigo a não ser o canivete, as mudas de roupa na mochila, a dor que lhe mantinha em contato com o outro e com seus propósitos e indicações parcas de onde o outro morava. Não sabia nem sequer o que ele estaria fazendo a esta hora em sua cidade, mas isso não era problema: tinha na cabeça um plano e na mochila um instrumento. Havia ainda, contudo, o mais importante: a certeza de que levaria até o fim aquilo que planejara. De que levaria até o fim e com êxito.



No ônibus, repassava as cenas, as falas... Tudo estava ensaiado já para o grande encontro.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

De:Fernando Sabino Para: Clarice

"Não acredito que você tenha chegado a um ponto de onde não possa mais sair. (...) Não acredito porque ninguém chega a ponto nenhum, Clarice, com uma entrada e uma saída. Você está simplesmente passando, como a Elianinha passou por aqui. Está sofrendo e chorando como a Elianinha, porque tomaram o seu brinquedo. E ninguém te engana com um maço de cigarro, você de repente não é criança mais. É uma fase: e você vai saber o que dizer, quando fizer uma confissão que salve tudo. Nem que seja para você mesma. É horrível mesmo ver você presa num círculo de giz. Sei que é uma fase porque você diz que interrompeu o seu trabalho, achando que é talvez para sempre. Acredito que outras vezes você já deve ter interrompido o seu trabalho achando que era para sempre. Se fosse mesmo, todo mundo perceberia, até no seu jeito de olhar, no jeito de sobrescritar um envelope. Menos você mesma. Você própria não notaria, teria "tranferido", outra coisa teria nascido em você. Mas não vejo jeito de você ter mudado. Na sua carta diz mesmo que não vê começo de uma coisa nascendo. Eu não vejo nada morrendo. O que você deve ter não é um problema, mas muitos problemas, que podem ser horríveis, mas são muitos, portanto não são você, apenas te prendem - e eu gostaria mesmo que você pudesse abrir seu coração e se libertar, Clarice. Creio muito em você, tanto quanto às vezes em mim mesmo. De repente descreio violentamente: tenho medo de nós falharmos. Tenho os meus problemas, e outras vezes é meu livro que me desespera"

Fernando Sabino para Clarice Lispector, em 3 de agosto de 1946.

O Retorno

Não tinha suspirado, não tinha beijado o papel devotamente e nem era a primeira vez que (aqui devo mudar e não mais parafrasear) sentia aquelas sentimentalidades, como diria um Eça há tempos atrás. É que na modernidade, ainda há papel mas este quase não se usa, é melhor não suspirar profundamente que o ar nos grandes centros é sujo e, apesar de não ser a primeira vez que sentia tais sentimentalidades, era a primeira vez que as sentia daquele modo.
Já havia muito que não se falavam propriamente. Já havia muito que ele deixara de lado o medo de perder e substituído pela vontade de desistir. É que o medo tem desses meandros: faz-nos crer que queremos aquilo que menos desejamos, aquilo que é exatamente o oposto do que esperamos. As longas conversas noturnas haviam sido trocadas por breves palavras ao telefone ou pequenitas mensagens ao longo do dia.
O retorno daquele que se gosta, de esperado, passou a ser temido: como seria o reencontro? Depois de tanta distância, como resgatar a proximidade? Seria necessário um grande esforço, pensava ele. A esta altura, já deve estar gostando de outra pessoa, daquele que o acompanha, já deve ter desistido e voltado à sua vidinha, pensava.
Eis que chegara o dia do retorno. E, tremendo pelo encontro, marcara outros compromissos e não foi esperar pela pessoa, como desejaria fazer. Ausentou-se... Melhor ausentar-se do que correr o risco de perceber que, de fato, tudo o que temia era verdade, que realmente havia perdido.
E então chega em casa e encontra por sobre a cama uma pequenita mensagem: "Espero-te. Venha.". Mas não foi. AO invés, deixou outra mensagem: "Não pude, demorei demais na rua com amigos", ao passo que o que queria dizer era: "Perdão, mas tive medo".
Entretanto, nem tudo pode-se evitar. Não sempre. E no dia seguinte, o reencontro se deu.
Como diz Kundera: era como se entre um e outro houvesse uma planícia gigantesca, repleta de gelo, neve. Havia o frio instalado entre ambos. E conversaram sobre ele.
Na vida, as coisas são assim: é quando menos esperamos, quando mais tememos e quando começamos a notar que os caminhos que não queríamos é exatamente aquele que percorremos, é nesse momento que tudo começa a arrumar-se. Pois foi assim: quando começou a pensar que não tinha jeito e que realmente havia perdido no jogo do gostar, começou a recuperar o tempo perdido. Começaram, melhor dizendo.
A neve, o gelo, o frio, rapidamente se desfizeram. O calor novamente. A luz. O acalanto.
Assim foi o retorno. Assim foi o reencontro. Assim é o recomeço.

Explicaçãos aos posts

Queridos leitores,

Segue abaixo uma série de contos antigos. Acho que dá para notar que são antigos pelo estilo: são um pouco mais confusos do que os atuais, menos diretos. Eram tempos de confusão interna maiores que os atuais, tempos de meias-palavras. Enfim. Encontrei-os nesta pasta do computador do trabalho e, por medo de perdê-los por completo um dia, decidi postá-los.

Há um que é novo. Que é de hoje mesmo. Chama-se "Da escatologia" e está ao final de todos os posts desta data, ok??

Enfim, só para constar mesmo rs.

Beijos a todos (que, sei, não são muitos rs)

Bernardo e o Vazio

O sentimento de vazio era ainda grande. Como não sentir-se esvaziado em situações como essa? A dor que sentia devia-se mais, porém, à solidão que ao vazio que sentia. Mas não seria o vazio fruto da solidão? Se sim, podemos dizer que o vazio tinha parte nessa dor.

Júlia era uma mulher bonita. Cabelos compridos até quase os quadris, escorridos e em tom amarronzado desses produzidos por grandes empresas de cosméticos. Mesmo não lhe sendo natural, a cor dos cabelos lhe caia muito bem e parecia ter nascido assim já. Os olhos castanho claros, a depender da incidência solar, mostravam-se verdes. Melhor mesmo era quando eram da cor que eram de fato, pois eram realçados pela cor anti-naturalista dos fios grossos e pesados que desciam pelo seu corpo.

A pele branca e salpicada com algumas sardas na altura dos ombros dava um tom de experiência de vida unida à vontade de viver. Há quem pense que experiências de vida diminuem a vontade de viver justamente pela sensação do já-vivido, mas esse não era o caso de Júlia. Sentia-se a vida, seu cheiro, exalando por cada um dos poros daquela mulher.

Fora isso que o fascinara. Bernardo vendo Júlia pela primeira vez teve certeza de nada ter vivido em sua vida. Ela entrar na livraria e partira direto para a seção de Filosofia. Como uma mulher bonita poderia interessar-se por tais assuntos, questionu-se Bernardo, sem nem parar para pensar como estava sendo paradigmático. Sim, gostaria de aproximar-se, mas não poderia. Era tímido demais para isso. De onde estava, detrás da prateleira de livros de Psicologia, ele poderia olhá-la por mais alguns minutos e isso já seria o suficiente.

Isso poderia ter sido suficiente não fosse a angústia rasgando e queimando seu peito. Alguma coisa naquela mulher o atraía. O olhar decidido de Júlia percorrendo a prateleira o encantava cada vez mais. Viu que ela agora puxava um livro. Estava de frente para ela, bem na direção em que ela estava. Não poderia ver qual era o livro e nem ter certeza se ela, de fato, retirara algum da prateleira, mas pelo que viam seus olhos, imaginava que sim.

Enregelou-se por dentro quando o olhar de Júlia subira dos livros e encontrara os dele. Desceu o olhar e tentou agir como se estivesse olhando para o nada ao invés de como se olhasse para ela.

Júlia não havia notado aquele homem ali na prateleira de Psicologia. Não até que visse que ele a olhava. Não se interessara por ele de primeira, embora mais tarde viesse a dizer que sim: a idéia do amor a primeira vista ainda encanta os humanos que, num mundo de "viver sem fronteiras" em que faz-se "mais que o possível", tudo deve ser vivido como se fosse capa de uma revista de moda. Seria mais "primeiro-capesco" dizer que seu coração palpitara por ele desde que o vira desviando sorrateiramente o olhar.

Júlia, mais madura e experimentada que Bernardo nas coisas do amor, decidira sentar-se no café da Livraria, uma vez que Se ele quiser, virá me encontrar, pensou ela.

Bernardo seguiu-a minutos depois. Tomou o cuidado de sentar-se numa mesa bem em frente àquela em que a mulher se sentara. Trocaram olhares e, dias depois, confidências ao pé do ouvido. Tudo fora muito rápido.

O casamento fora como Bernardo sempre quisera: apenas foram morar juntos. O apartamento de dois quartos enchera-se com a vida de Júlia e com os objetos dela. Dera seu tom à casa. Ajeitara cada canto a sua maneira.

Bernardo já não tinha nada que fosse só seu. Júlia tinha seu sofá, seu computador e seus livros. Bernardo já não tinha sua casa apenas, tinha a casa deles dois. Júlia tinha a casa dela e era com muito orgulho que falava isso para as amigas do trabalho. Bernardo não sentia-se só por saber que Júlia estaria ali e Júlia sentia-se só a cada vez que Bernardo não aceitava ir ao shopping no domingo à tarde.
Cansada de viver sozinha, Júlia decidiu partir um dia. Mudou-se de uma hora pra outra levando sofá, e computador, e livros e tudo aquilo que era seu. Bernardo, em casa, sentia-se vazio: já não tinha mais com quem dividir sua vida. Júlia, noutra casa, sentia-se completa: já não tinha mais que dividir-se em dois.

Corria por uma rua.

Corria por uma rua. Rua. Ruía a rua. Ruía o mundo, tudo caia, tudo desabava. O chão por onde pisava caía. E ele corria. Talvez para tentar não desabar com o mundo, corria. Debatia-se contra tudo aquilo que estava ao seu redor. Diriam Rema contra a maré, mas já nem há maré, nem mar, só concreto.
A concretude se fez presente no modo da impossibilidade. Já havia coisas impossíveis e, mesmo que possíveis, continuariam impossibilitadas. A concretude o prendia a seus pensamentos e o fazia dar passos largos entre o mundo que ruía. O prédio a sua frente começara a desabar antes mesmo que ele passasse por ele.
Era dessa maneira, comum aos filmes (poderíamos chamá-la de clichê): o mundo começou a ruir e ele decidiu correr. Após sua passada, o local exato em que seu pé havia pisado fazia-se nada. Mais ele corria, pra tentar não ser dragado pelo chão que se abria. E mais o chão se abria, porque mais pedaços de chão seus pés pisavam e percorriam.
A rua ia se estreitando... Ele já começava a pensar se haveria ainda uma saída dali quando chegasse ao fim. Ou seria o fim simplesmente O Fim, assim, com maiúscula para destacar a finitude e a importância do final.
Corria... Corria... E era como em um daqueles sonhos em que quanto mais se corre, mais devagar se vai. Para manter os paradoxos, quanto mias devagar, na verdade mais rápido ele ia. Sentia-se levado pela maré das circunstâncias. Tudo já era tão sem sentido e tudo já estava tão “nadificado” atrás dele, que decidiu deixar-se levar e, nesse jogo de ser levado, o ritmo era também o de corrida.
Nada para ele poderia ser diferente: deveria tudo ser uma grande corrida, ansioso que era. Dessa vez, certamente não estava feliz em correr. Era a vida que lhe impusera a tal concretude. Ela mesma também lhe trouxera o desespero e este foi o que lhe fez correr e ver seu mundo ruir.
Agora, ainda no caminho de corrida, vendo a rua se estreitar, sentindo-se sufocado por tudo e vendo o caminho que estava deixando para trás tornar-se nada, já sendo levado pela maré das circustâncias e desistindo de correr e de tentar uma saída para uma das esquinas que às vezes enxergava a sua direita ou esquerda, pensou que valeria mesmo a pena esforçar-se contra a tal maré e deixar-se cair no vão da nadificação, esperar que o princípio de seu fim se dê ao invés de correr dele alucinadamente. Começou a fazer força. Agora sim remava contra a maré. Esforçava-se para parar. Olhou para trás e havia o nada ali. Nem escuridão era. Era nada. Foi quando decidiu olhar mais uma vez para a frente.

Evidências Apodíticas

O mundo já não fazia sentido. O peso de seu corpo sobre o colchão duro. O ventilador girava. O vento movia-lhe os fios de cabelo levantados. Já não havia ali, porém, nem cama, nem colchão, nem ventilador, nem vento, nem fios de cabelo: o mundo já não fazia sentido.
Não era vítima de nenhuma síndrome em que os sentidos se desfazem. Estava apenas deitado e percebeu como, nos últimos dias, já não sentia. Não era coisa momentânea, como o leitor pode ter pensado: era coisa de dias, mas que era apenas percebida agora por ele: não sentia.
Já não é a primeira vez que falo dos anestésicos. Essa insígnia dou àqueles que juram nada sentir quando tudo sentem. O mundo a estes se apresenta e sentem que nada sentem. Mas sentir que não se sente, já perguntei-os, leitores, uma vez, não seria também sentir? E (esta questão, garanto, é nova) será que não sentem?
Ao menos podemos nos aliviar com a idéia de que percebe que ainda consegue pensar e refletir e com o fato de que desse pensar e dessa reflexão conseguiu tirar um sentido ao menos para seu momento atual: não percebe o sentido do mundo.
Para os empiristas, sentido deriva-se de atos mentais que têm início no sentir. O mundo sensível é o caráter gerador. Mas como fica aquele que já não sente?
Olhou para o ventilador no teto. Girava. No girar daquelas pás, viu as cenas que lhe vieram comprovar o sentido que dera a todos os pensamentos que lhe ocorriam. Pensamentos tais que organizou cartesianamente em ordem de evidenciação:
Evidência 1: Há treze dias vira uma menina de 10 anos ser estuprada numa cena de filme. Não se comoveu. Achou até bastante natural, dadas as circunstâncias, que aquilo tivesse acontecido.
Evidência 2: Recebeu o telefonema de um amigo antigo. Atendeu-o muito bem. Fora até caloroso. Não conseguira, todavia, compreender o porquê das lamentações do amigo pelo tempo em que ficaram sem contato: A vida tem dessas coisas, disse ao rapaz do outro lado da linha.
Evidência 3: Vira, próximo ao trabalho, um corpo estirado no chão.Imediatamente, olhou para céu e, vendo que o sol estava despontando após longo período de chuva e frio, disse: O tempo está melhorando.
Evidência 4: Assistira a um filme em que crianças matavam adultos, em que pais perdiam seus filhos, em que mães morriam com bebês no colo. Quanta dor... Já fazia 3 horas que não comia e seu estômago reclamava por comida: Quanto dor...
Evidência 5: Já não sentia o coração ao dizer a um amigo “eu te amo”.
As evidências, perante elas mesmas, passaram a não ter importância. De que importava evidenciar sua falta de sentido? Agora que a evidenciara, sentia. Sentiu a dor por tudo que deixara de sentir no tempo certo e lembrou-se do que lhe disse seu pai quando era ainda criança e brincavam de cavalinho nas tardes de domingo: “Filho, viva tudo antes que, por não sentir, tudo lhe tome a vida”.
A primeira lágrima escorreu do olho direito. Desceu pelas bochechas e molhou o colchão duro. A velocidade do ventilador parecia diminuir, mas na verdade era o tempo que começara a correr em outro tempo. A segunda lágrima. A terceira. O choro.
Chorava compulsivamente pelas dores, alegrias, amores, sentenças, libertações. Chorava por todas as sensações que não sentira. Aquelas evidências eram, certamente, apodíticas como exigiria seu professor husserliano. Mas aquelas evidências... Certamente fariam sentido num livro de filosofia ou lógica, mas não lhe traziam o sentido de tudo. Apenas o ajudaram a recobrar o sentido de tudo. O sentido, existindo, estava no próprio vivenciar da vida que cobrava-o os sentimentos que não lhe foram devotados. E chorou pela menina na tela, e pelo amigo distante, e pelo homem morto e jogado na rua, e pela crueldade do filme e pela falta de amor no “eu te amo”.
Nesta noite, dormiria e sonharia que tocava e era tocado pelo mundo lá fora.

Gridin' e o amor

- Era capaz de tudo por aquele homem! Não era qualquer um. E aquele macacão, garantiu-me ela, faria toda a diferença em meu corpo e poderia, quiçá, salvaguardar alguns momentos extras de felicidade conjugal. Ouvia no trabalho e na família que, para que os problemas pretéritos não se repetissem, deveria cuidar-me. Cuidar-me, penso eu, certamente inclui vestir-me bem e disso assegurou-me – dizia ela.
Era um dia comum. Andava pelo shopping. Vendo as vitrines, lembrava-se de como não poderia viajar nestas férias por precisar economizar para a compra da casa e do carro. Tivera certos problemas ao longo do ano e o que menos queria era vê-los repetidos. Cuidaria melhor de sua vida afetiva e isso certamente incluía a idéia de uma nova casa e de um carro Sem os quais não é possível conseguir felicidade conjugal, repetiu para si mesma enquanto andava em frente às lojas.
Tudo se lhe figurou como tentação. Cada vitrine era um convite ao desbunde. A casa, lembre-se da casa, repetia mentalmente, O carro, lembre-se do carro. Ao pensamento dos dois, recordava-se do marido no trabalho e pensava O casamento, lembre-se do casamento.
Então viu o macacão e o modo como se apaixonou por ele já o sabemos por palavras dela mesma. Aquele pedaço de pano rosa com aplicações de swarovskis legítimos caberia exatamente em seu corpo e, certamente, assegurariam mais alguns momentos de felicidade ao casal. É necessário reconquistá-lo, senão de que adiantarão casa e carro?, pensou.
Entrou na loja. O preço. Vou dar uma voltinha e ver mais coisas e, não achando nada que agrade mais, volto para comprar, disse à vendedora, que já estava cansada de ouvir essa mesma frase dita por clientes que achavam que a roupa, mesmo que bonita, não é mais que pano.
Não era, contudo, este o caso de nossa personagem. A roupa, mesmo que de pano, era mais do que isso. Convencera-se de que a roupa lhe traria a tão sonhada felicidade conjugal e ela não saberia viver sem isso mais nenhum instante.
Desde nova fora criada com a idéia de que o casamento é a fonte de felicidade de uma mulher. Desde que casou-se, devotou sua vida e felicidade ao marido, sem o qual não conseguia tomar nenhuma decisão. Ao chegar em casa perguntarei a ele o que pensa sobre comprar ou não o macacão.
Decepção. Certamente ele ainda pensava na outra, porque não a motivou a comprar o macacão que garantirá a ambos a felicidade conjugal! Que tenha dormido e ficado com aquela uma não há problemas, mas negar a ambos uma possibilidade de serem felizes?!
Fora para o trabalho no dia seguinte pensando em passar pelo shopping e verificar se o macacão ainda estava na vitrine. E o fizera. E vira a beleza estonteante daquele pedaço de pano enfiado no corpo de um manequim macérrimo.
Entrou na loja. Vem cá, você acha que... E desfiou o rosário de lamentações acerca do marido e de tudo o que ocorrera. Então você pensa que com esse macacão eu consigo melhorar isso tudo, perguntou para a vendedora, que lhe assegurou que a vida dela mudaria depois de adquirir aquela peça de beleza ímpar.
Ainda assim não se convenceu. Foi para casa e ligou o televisor. Comerciais. Sua atenção fora chamada para aquele de uma loja em que a mulher entrava cabisbaixa e lembrando-se das brigas em casa (cenas mostradas em preto e branco) e saía com novas roupas e um marido muito atencioso levava-a para jantar na noite daquele mesmo dia (cenas mostradas em cores bem vivas).
A vendedora estava certa. Confiaria o que sobrara do salário do mês anterior (quantia que havia poupado para ajudar na compra da casa) à palavra da vendedora.
Voltara imediatamente à loja. Comprara o macacão e vestira-o imediatamente. Voltaria para casa já na roupa que mudaria sua vida e a de seu marido.
Nunca estivera tão ansiosa para entrar em casa e encontrar seu companheiro. No ônibus, imaginava como seria sua vida a partir de agora: colorida como no comercial.
A chave girava rapidamente e a maçaneta, por ter sido a porta aberta com força, bateu com força na parede. O marido não estava. Era comum que se atrasasse alguns minutos.
O trânsito na cidade, o chefe que demanda demais. Todos poderiam ser os motivos. Não esperava, contudo que o motivo seria aquele. A felicidade conjugal, outrora já ameaçada, ruiu-se por completa, mesmo perante o pedaço de pano rosa com cristais swarovski: ao ver a sombra do marido apontar no começo da rua já começou a sorrir pensando no impacto que ele teria ao vê-la, linda, trajando o macacão rosa e quanto mais ele se aproximava mais sorria; deixou de sorrir apenas quando viu o semblante apreensivo do cônjuge e chorou apenas quando ouviu Já não quero tentar viver a vida ao seu lado.
- Era capaz de tudo por aquele homem! Não era qualquer um. E aquele macacão, garantiu-me ela, faria toda a diferença em meu corpo e poderia, quiçá, salvaguardar alguns momentos extras de felicidade conjugal. Ouvia no trabalho e na família que, para que os problemas pretéritos não se repetissem, deveria cuidar-me. Cuidar-me, penso eu, certamente inclui vestir-me bem e disso assegurou-me esta mulher. Como pode ter me vendido a infelicidade? Por esse homem, por minha vida, faria tudo outra vez – dizia ela perante o corpo de jurados olhando as fotos do corpo estilhaçado daquela que lhe vendera o pano rosa com cristais.

Não sabia mais o que fazer.

Não sabia mais o que fazer. Sentia como se a vida estivesse perdendo o rumo. Olhava para os fios nos postes. Altos. Lá de cima, estirados, esticados até o último centímetro. Iam em linha reta até o poste seguinte e ao seguinte, e ao seguinte... Iam em linha reta. Queria que sua vida fosse como a do fio de luz entre os postes altos da cidade.
Passava em frente ao local onde a conhecera. O café amarelado próximo ao cinema. De fato, era inacreditável pensar que ela o vira dentro da agência bancária onde recebia seu pagamento, o procurara na “Clowns and Parties”, agência de festas infantis em que trabalha, e não o encontrara, e, mais inacreditável ainda, é o acaso que fez com que ambos se esbarrassem naquela noite fria, em que todas as pessoas da cidade parecem sair das ruas e enfurnarem-se ou em casa ou em café em tons amarelados.
Passa agora em frente à vidraça da entrada do café. Sua vida, sem rumo, o guiava por caminhos desconhecidos por ambos: por ele, nosso rapaz, e por ela, vida dele.
Resumiria-se como solitário. Era um rapaz solitário.
Trabalhava onde já sabemos. Tinha a profissão que saberemos. Ainda não sabemos nada, porém, sobre essa que, conforme ele pensa agora, o guia: sua vida. Perdi-me em explicar o que se passa agora e esqueci-me de falar do passado de nosso personagem principal e sem nome.
É engraçado pensar que um personagem principal não tenha nome. Todo livro que se pretende livro tem que ter no mínimo dois personagens: o principal, mocinho, aquele com qual o público, em geral, irá se identificar, e o segundo, o rival, aquele do qual o público, na maioria das vezes, terá raiva, aversão e medo. O primeiro, coitado, sempre sofre com tudo e todos. No entanto, em um mundo maniqueísta, sempre vence no final. Antes, porém, sofre o coitado do rapaz (ou rapariga). Sofre. E sofre mais uma vez. Triunfa no fim, mas sofre. E é por isso, aliás, que nos identificamos com ele: temos essa tendência egocêntrica de achar que só nós sofremos no mundo... E somos aliviados no final: se ele triunfou, também hei de triunfar!
Enfim, em nosso caso, isso não se aplica. Saímos em frente, uma vez que, além do mocinho e do bandido, temos Georgina. Na verdade, saímos em frente já por não termos mocinho e bandido. Como no mundo real, somos todos vítimas e assassinos de todos e de nós mesmos e assim são nossos personagens. Ganhamos ainda alguns outros marionetes que ajudam a dar colorido à narrativa: a senhora na fila do banco, a mulher na rua e seu filho que acaba de fazer 18 anos, a atendente da “Clowns and Parties”, aqueles que estão caminhando nas ruas... Ufa! Voltemos ao que contava!
Nosso rapaz se descreveria como solitário. Quando criança, morava com a mãe e pai, apenas. Filho único. Pensa que se tivesse tido um irmão ou irmã, teria mais força perante a vida e seria menos solitário. Leu, outrora, que “se” é a palavra das impossibilidades, por isso toda vez que lhe vem essa idéia em mente, a repudia quase que automaticamente. É filho único e esse é o fato.
Gostava muito de brincar com bonecos dos personagens de desenhos animados que assistia no canal 4 aos sábados de manhã. Escolhia sempre o cavaleiro destemido, o matador de dragões, o lutador imbatível... Qualquer boneco que compensasse alucinadamente aquilo que ele era em relação àquilo que ele queria ser.
Certa vez, aos sete anos, fez amizade com o menino que sentava na carteira atrás da sua na escolinha. Tomé. E foram amigos até o dia em que Tomé mudou-se de cidade com a família. A mãe de nosso rapaz não aprovava muito a amizade: Tomé era por demais desorganizado e, quando ia brincar com seu filho em sua casa, desarrumava todo o quarto de brinquedos. Não gostava que seu filho brincasse na rua. Não gostava que seu filho bagunçasse a casa enquanto brincava. Podemos concluir que não se importava que o menino fosse só. Importava-se mais com a cor branca do sofá que não poderia encardir-se até que pudesse estofá-lo novamente no ano seguinte.
Aos 10 anos e meio, nosso rapaz ganhou um papagaio de presente de sua tia. O mais interessante sobre o bicho, ele pensava, era quer tinha alguém com quem conversar. Bastava que ensinasse o bicho a responder a certos sinais. Foi quando conseguiu fazer com que Louro dissesse “Sim” quando ele, o rapaz, piscasse os dois olhos por três vezes seguidas e “Não” quando ele estalasse a língua. As conversas iam sempre animadas até o horário de fazer o dever, Louro, você gosta de mim (três breves piscadelas), Sim, E de mamãe quando ela implica com meu sapato sujo (um estalo), Não, Quer ser meu amigo pra sempre, Sim. E assim por diante.
Seu pai era sempre muito ocupado. Quase nunca brincava com o filho. Talvez fosse por isso que não sentiu a morte do mesmo como uma perda significativa. Quando menino, já o sabemos, juntou dinheiro para dar ao pai uma poltrona reclinável, tinha certeza de que essa poltrona era o preço que o pai estipulara para sua atenção. Bastaria a poltrona e seriam amigos. Já sabemos a resposta do pai ao ver o presente. Podemos imaginar o resultado disso tudo na relação entre os dois. Desistira de conquistar o pai e provavelmente por isso a morte do mesmo não fizera grande diferença.
Poderia dizer até mesmo que a falta de nome do rapaz deve-se a ele mesmo. É tão comum que se perde em si e no mundo e tornou-se, a meus olhos, um simples rapaz. É solitário como todos, pobre de espírito como muitos, sente-se aquele que tem o privilégio sobre os sofrimentos e mazelas humanas como vários. É mais um dentre muitos, diferindo-se do todo apenas pela particularidade de sua história (oras, mas não é assim com todo mundo?). Temos todos coisas em comum, como essa solidão que aperta o peito a cada nova manhã, mesmo naquelas em que nos sentimos acompanhados por alguém. Seria essa solidão constitutiva?
Não é interessante, leitor (e creio que você há de concordar comigo), longos relatos históricos. Se se tratasse de uma pessoa, bastaria que fizessem uma consulta ao histórico escolar dele, sua ficha criminal. Seu histórico familiar facilmente seria levantado através dos sobrenomes. Em algum cartório obteriam seus dados civis. Na internet poderiam encontrar cadastros em lojas, sites de relacionamento etc. Entretanto, é um objeto esse rapaz e sua história nada tem de real a não ser o relato que faço dela. Aliás, nem sequer o relato que faço dela é real. Tomemos por real apenas o papel que seguram agora ao lerem esta página. Sim, esta é a realidade da vida de nosso rapaz. Não perderei, portanto, mais tempo descrevendo sua história-passada. O que nela for importante terá reflexos em sua vida presente e é esta que quero relatar.
Os postes lhe davam a exata impressão de como sua vida estava agora, depois de Georgina. Enquanto falava sobre sua vida, nosso rapaz, caminhando já saiu da fachada do café onde encontrou Georgina duas semanas atrás. Apesar de já não mais em frente ao lugar, era lá dentro que sua mente vagava.
Viu uma menina estranhamente familiar entrando. Ela o vira desde quando estava na rua. Aliás, fora por isso que ela decidira entrar ali. Nunca gostara muito de cafés, mas para ter a oportunidade de vê-lo novamente perderia seu tempo e dinheiro, ainda mais porque assim que o vira na fila do banco encantara-se com o rapaz que, para ela, a olhara no fundo dos olhos e, por conseguinte, dentro dela mesma, e vira seu “eu” mais profundo. Pensava como aquele rapaz a desnudara com os olhos.
Foi buscando esse rapaz que ela pegou a conta de telefone caída no chão. Foi também pensando nele que ela ligara para o número que constava na conta. Combinara com a mulher que a atendeu dizendo “Clowns and Parties, Gílcia, bom dia, em que posso ajudar?”, que iria no dia seguinte no endereço informado levar os papéis. Esperava encontrar aquele homem lá. Vê-lo. Já era o bastante. Vê-lo, ao menos.
Todavia, chegara na agência, entregara o envelope em que colocara os papéis a Gílcia e saiu com a certeza de que nunca mais teria nenhuma oportunidade de vê-lo, muito menos de tê-lo, aquele rapaz de cabelos negros e olhos castanhos que lhe desnudara a alma.
Ele estava dentro do café e foi por isso que ela decidiu tomar um capuccino com creme.
Ele olhou-a profundamente. Tinha e impressão de tê-la visto já alguma vez. Havia sido um dia cansativo. Gostava de sentar-se na mesa ao fundo do café sempre que tinha um dia cansativo. Tinha a sua frente uma planilha de controle com as datas críticas na agência. Maldito o dia em que aceitei ser sócio daquele lugar, pensou, melhor era quando apenas ia fazer bico quando Richardson convidava.
A raiva que deixou extravasar em pensamento, expressou-se deixando com que a xícara de café caísse em cima de todos os papéis. Foi buscar com os olhos o ponto da mesa em que os guardanapos estavam. Seus olhos, porém, prenderam-se em outra coisa. O café agora gotejava no chão. Não conseguia tirar os olhos da menina. Viu uma menina estranhamente familiar entrando...
Essa imagem se desfez agora em sua mente e voltou para o momento presente. Não podia acreditar, andando agora nas ruas, duas semanas após o dia no café, que tal garota não entrara apenas naquele lugar. Viera como o café, destruidor de papéis, e destruiu todos os planos que tinha.
Já não importavam planos. Já não importavam datas. Perdera os caminhos, os fios, as linhas, os rumos. Perdeu o prumo como um fio num poste não pode perder. Já não invejava, no entanto, os fios. Não... Revendo o que até ali vivera, era como se tivesse enchido de certezas novamente. Era comum vacilar. Muitas vezes vacilava em seus propósitos. Saíra de casa vacilante. Desespero é um nome que podemos dar a esse vacilo: como lidar com tantas mudanças? Mas agora percebia que já não saberia aceitar que as mudanças mudassem novamente e que tudo voltasse a ser como era. Não aceitaria deixar que aquela menina, Georgina, saísse de sua vida.
Já sabia o que fazer. Não sentia como se a vida estivesse perdendo o rumo. Olhando para os fios nos postes e vendo novamente que iam em linha reta até o poste seguinte e ao seguinte, e ao seguinte, já não queria que sua vida fosse como a desses fios estirados. Já sabia o que fazer: iria para o prédio em que ela morava. Queria vê-la e tê-la para si por minutos que fossem. De onde estou, só consigo ver agora o ritmo mais apressado que impôs a si e a seus passos quando dobrava a esquina.

Da escatologia

E o menino perguntou:

- Mãe, o cocô é a gente que faz, né?
- É, meu filho - respondeu a mãe, embaraçada, que todos no ônibus olharam.
- E como é que é feito?
- AH! Meu filho... Como é que é feito?... A gente come... Aí a comida faz um caminho muito longo...
- Como este que a gente tá fazendo? Tá chegando?
- Tá quase, meu filho, tá quase - respondeu ela, aliviada. O menino parecia ter esquecido o assunto. O silêncio presentificou-se, até que:
- E como é o caminho da comida, mãe?
- Começa na boca e - aí seguiu com o dedo da boca do menino até a barriga, fazendo cócegas. E ele riu... Mas não esqueceu de continuar:
- E aí sai por baixo, né?
- É. Sai - o rubor visível.

Então o menino começou a olhar pela janela. Havia esquecido do assunto?

- Mãe, mas então o cocô vem da comida, né?
- É, meu filho.
- E a comida tem um cheiro bom...
- Sim, uma boa comida tem cheiro bom...
- Mas porque o cocô fede?
- Júlio Alberto, vamos deixar pra conversar isso outra hora, ok? - disse ela ao perceber o riso solto do rapaz no assento ao lado - Isso não é coisa de se falar assim, em público.
- Ah é verdade, mãe. Isso é coisa de se fazer escondido. No banheiro. Mas é porque fede, né? Mãe - disse sorrindo - já pensou se não fedesse? Aì a gente ia poder fazer cocô na frente dos outros...
- É, Júlio Alberto, mas agora chega, viu?

O menino levantou-se. virou-se e ajoelhou no banco. Ficou olhando para a janela. Os carros passando. Levantou-se de novo, virou e sentou. Aío levantou e pulou por uns dez segundos. Aí sentou. Aí deitou no colo da mãe. E levantou do banco e fez menção de sair para o corredor, mas a mãe não deixou. Estava visivelmente inquieto. As idéias ferviam em sua cabeça.

- Mãe, chega aqui - acenando para que ela chegasse mais perto. Falou, então, ao pé do ouvido - Mãe, o papai também faz cocô?
- Ué, meu filho, claro! Todo mundo faz!
- Até Deus?
- Aì não sei, filho, porque ninguém conheceu Deus pra dizer...
- Nem a vovó? Você disse que ela tinha ido morar com Deus.

A senhora do assento da frente olhou repreensivamente para a mãe do garoto: como podia mentir para uma criança?!

- Querido, sim a vovó foi morar com Deus, mas nunca voltou pra contar como é. Mas Ele disse que fez a gente a imagem e semelhança dele, então ele deve fazer cocô também.
- E o vovô? O vovô também faz?
- Faz. Todos fazem, Júlio Alberto! Já lhe falei. E agora, fique quieto e sossegue!
- Mãe, só mais uma pergunta?
- Ahn?
- O vovô faz na calça, né? Que nem eu faço ainda de vez em quando, mas eu sei que vou parar... O vovô sou eu, depois.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Sobre sempre conhecer pela primeira vez

Sábado conheci pessoas conhecidas pela terceira vez (?) e elas me conheram novamente também. É estranho conhecer pessoas conhecidas de novo. Há um quê de contentamento e de tristeza em conhecer sempre pela primeira vez.

Admito: no começo me senti meio estranho. Deslocado talvez seja a palavra. Pensava: sou eu que dou muita atenção às pessoas.

Mas, como disse, há um quê de contentamento e de tristeza ao conhecer sempre pela primeira vez. É como se nada mais houvesse além da possibilidade de uma primeira vez.

"Prazer", diziam eles quando eu era apresentado por Lucas. E eu pensava: como assim "prazer"? Será que não se lembra que já nos conhecemos?...

E fato: não se lembram.

Comprei também sabonetes novos. Tomar banho virou uma tarefa árdua. É que tem um de açúcar mascavo e foi exatamente o que abri primeiro. Me dá ânsia de vômito. Será que vou associar banho à vômito? Espero que não... Sempre gostei tanto de banho.

E será que vou associar a palavra "prazer" a relações que não se aprofundam? Pois quando tudo não passa de primeira vez, há o contentamento da leveza, mas há a tristeza da dificulade de referências ao passado, de trocas, que são o que fortalecem qualquer relação.

Devo dizer: de fato, não me importo. Por fim, acabo me sentindo em casa. São pessoas ótimas. Diria que são pessoas bastante sedutoras. No final, conversamos, nos esbarramos e até trocamos palavras. Mas... É assim: já sei que, da próxima vez, será novamente "prazer" a palavra que vou ouvir.

Gente, pensem: isso é assim mesmo ou é só medo? Tem que ser assim mesmo ou é só falta de uma boa terapia?

sábado, 1 de setembro de 2007

A vida de Maria

Foi assim que Maria começou a viver: num dia de sol, um pombo acinzentado, sobrevoando a pista de corrida do Aterro do Flamengo, teve um taquicardia e despencou velozmente do céu ao chão, estabacando-se aos pés de nossa heroína, que corria como fazia todos os dias pela manhã.

Não... Não está bom! Maria deve ser uma mulher de 40 anos, faz cooper todas as manhãs no Aterro... Talvez seja uma executiva... Sim! Uma executiva. Bem sucedida, solteira... E começar a viver diante da morte é um clichê... Sim!:

Foi assim que Maria começou a viver: ao chegar em casa após mais um dia produtivo no trabalho, abriu a caixa do correio e encontrou o convite para o casamento de Arlete, aquela amiga de infância que Maria jurava que nunca ia ter pretendentes na vida.
Com o convite na mão, chamou o elevador. A respiração presa. Rompeu-se em lágrimas ao adentrar seu apartamento triplex na rua da praia: ela, Maria, era só.
"Você sempre foi uma moça tão casadoira, minha filha", dizia sua avó, "não entendo como todos as suas amigas se casam e você fica só...".

Ah! Pronto! Mais uma tentativa frustrada! Maria não pode ser uma mulher "casadoira"... É uma executiva, bem sucedida, decidida, objetiva. Maria, certamente, leria Marie Claire! Isso se não tivesse feito a faculdade de Economia e se convencido de que ser mulher era perda de tempo:

Foi assim que Maria começou a viver: no sinal, decidiu comprar uma água do ambulante e abaixou o vidro elétrico. Nisso, seus olhos bateram nos dela, nos de Gorette, que ia sentada ao volante do carro ao lado. Gorette, percebendo-se olhada e simpatizando com a figura de Maria, pegou um cartão seu no porta-luvas e, amassando-o para que melhor vencesse a resistência do ar e mais chances tivesse de alcançar o outro carro, arremessou-o.
O sinal abriu. O coração de Maria batia acelerado quando, lentamente, seus pés soltaram a embreagem e pisaram o acelador. O que fazer com aquele pedaço de papel que lhe arremessara a outra? Ela era solteira... Não era errado conhecer uma nova pessoa. E assim, decidiu ligar.

Mas Maria abre-se tão facilmente assim para os outros?! Ah! Maria é uma mulher que tem uma vida... E eu já me canso de tentar escrever sobre esta mulher tão comum! :

Foi assim que Maria começou a viver: num dia de chuva, num lugar descampado e com gramíneas verde claro, um grupo de pessoas chorosas e trajando preto olhavam a descida do ataúde. Por fim, uma meninita, talvez sobrinha da defunta que descia os sete palmos, jogara por sobre o caixão um ramalhete de rosas brancas e um pequeno cartãozinho onde se podia ler: "Maria, parta em paz para uma nova vida".