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quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Correspondência 3

Esta é a terceira de uma série de cartas encontrada às margens do rio de Águas Turvas num domingo à tarde, em uma caixa amarelada pelo tempo.
Clarice, não tendo recebido respostas de Bruno após tê-lo mandando, em um rompante de raiva, foder-se, escreve-lhe mais uma vez.
(O autor)
Águas Turvas, 02 de setembro de 1972.

Meu pequeno Bruno,
Hoje faz 15 dias desde que te escrevi pela primeira vez. Não sei de onde tirei forças para aquela primeira carta. Menos ainda sei de onde saíram tantos sentimentos confusos: raiva e amor, agora penso, andam mais próximos do que imaginamos.
Hoje faz 20 dias desde que nos falamos pela derradeira vez.
Hoje faz também 12 dias desde que mandei-te foder e sou eu quem me fodo a cada momento longe de ti, sem tua presença, sem tua palavra, sem ouvir de você notícia que seja. Dei-me conta de que a primeira carta, aquela mal-criada, foi apenas uma tentativa desesperada de fazer contato, de receber algo teu, mesmo que fosse ruim.
Teu silêncio depois de minha última carta me apavora até agora. Desculpe-me. Não quis dizer o que disse.
Agora tento desesperadamente te esquecer. Sei que fazes o mesmo nos braços da outra. Não penses que isso me chateia. Cada um usa seus artifícios para esquecer o que deseja. Mas não tenho nem ao menos garantias de que ainda tentas esquecer-me. Talvez isso tenha sido, para ti, mais fácil do que vem sendo para mim. Talvez mesmo, desnecessário.
Tuas coisas ainda estão pela casa. Por favor, me diga o que fazer de cada uma delas. Teu chinelo ainda está na mesma sacola. Hoje abri-a e estava cheio de formigas. Lavei-os penitentemente, entre jorros de água da torneira e gotas de lágrima que me rolaram pela face.
Tua roupa de banho ainda está no armário, no mesmo lugar que deixamos naquele último dia.
Acreditas? Hoje fui ao mercado e encontrei do chocolate que tu gostas! Comprei duas barras. Sei que não devia, mas comprei-as. Estão na prateleira da cozinha. Aguardam por ti ou por minha coragem em desfazer-me delas. Por enquanto, servem para que me lembre de ti a cada vez que por ali passo.


Já pensei tantas vezes em te escrever nestes poucos dias! Resisti a todas. Mas sou fraca. Por isso escrevo-te mais esta vez.

Sabe? Hoje estive lembrando do dia em que nos vimos pela primeira vez. Era como se tudo fosse um reencontro. Senti-me tão à vontade ao teu lado!

Memórias são como fotos. Espero que com o tempo, assim como as fotografias, minhas lembranças se apaguem. E tenho tanto medo: já não sei o que são lembranças do que aconteceu e o que são criações minhas na tentativa de preencher os espaços vazios do vivido. Já disse, repito: não quero esquecer-te. Devo esquecer-te. Nem sei!

Desejo-lhe muitas coisas. Desejo que o feriado próximo seja feliz. Desejo que você seja feliz, mesmo sem feriados. Desejo que consiga o que quer com o retorno para ela. Não é o que eu queria, você bem sabe, eu bem sei. Mas sabemos também que, cedo ou tarde, isso iria acontecer, pelos motivos que sejam: pequena recaída, grande necessidade e outros que agora não consigo listar.

Termino a carta sem saber ao certo o porquê de tê-la começado. Acho que era apenas para dizer mesmo que tenho saudades. Muita saudade.

A esperança, este mal, é o último a morrer. Morrem todos os sentimentos, ela permanece, resistente, teimosinha. Talvez até o amor passe antes que ela. É daí que surgem as ilusões, os platonismos. A esperança persiste... Persiste...

Guardando comigo tudo o que ainda sinto por ti,
Da tua,
Clarice

Correspondência 2

Esta é segunda de uma série de cartas encontrada às margens do rio de Águas Turvas num domingo à tarde, em uma caixa amarelada pelo tempo.
Clarice, a provável autora, ainda desconhecida, a despeito de todas as procuras, responde a carta enviada por Bruno, seu amante.
(O autor)
Águas Turvas, 20 de agosto de 1972.

Bruno,

Não sei o que te dizer...

Recebi sua carta. Quanta coisa, não?

Não se trata de cutucar onça com vara curta. Você não é onça e não há varas, nem curtas nem compridas.

Você tem razão. Não me deve explicações, justificativas, explicações... Embora - e aí não sei se percebeu - tenha feito isso em cada uma das linhas que me escreveu.

Lamento pelo estilo pobre da sua escrita. Esperei algo um pouco mais elaborado do que dezenas de palavrões a cada linha. No entanto, sigo o estilo: vá se foder!

Um abraço fraterno,
Clarice

Correspondências 1

Esta é uma série de cartas encontrada às margens do rio de Águas Turvas num domingo à tarde, em uma caixa amarelada pelo tempo. Acredita-se que tenha sido jogada há poucos dias fora, pois a caixa não estava maltratada pelo tempo, pela água do riacho.
Havendo procurado no cartório da cidade, não encontrei nenhum registro de Bruno ou Clarice. Tudo o que consegui foi o relato de uma senhora, residente num sítio próximo às margens do riacho. Segundo ela, muito se amou naquela região; as cartas poderiam, então, ser de qualquer um para qualquer outro.
(O autor)
Águas Turvas, 15 de Agosto de 1972.

Bruno, minha vida,


Peço desculpas se demorei a te escrever. Queria e deveria ter feito isso muito antes, quando ainda era capaz de olhar-te na cara para dizer o que deve ser dito. Não, as desculpas não são para ti. Peço desculpas a mim mesma se demorei a te escrever, que eu é que sofri calada por todo esse tempo. Que eu é que não dormi todas as noites pensando no que e como dizer. Eu é que fiquei arrumando remendos para teus farrapos de atenção, de cuidado, de afeto, numa tentativa renitente de perdoar a memória que tenho de você, tornando mais fácil a convivência com minhas próprias lembranças.

Se não escrevi antes talvez seja pelo meu apreço à dor. Talvez por minha fraqueza. E se agora escrevo é que a dor está passando. Abriu espaço para outros sentimentos que, lentamente, aparecem e me possuem por inteira, como a raiva de tua carocha vagabunda e de seu sorriso amarelo e escroto.

Foram muitas coisas, minha vida, muitas coisas e pouca consideração por tudo. Até quando, me diga, até quando pretende agir como se criança fosse? Até quando vai continuar usando suas desculpas para fingir que, na verdade, nada é responsabilidade tua quando se trata da vida dos outros? Que bom deve ser viver como um grande ermitão mesmo se estando em meio à multidão e sendo servido por ela. Que bom deve ser não ter que pensar no outro ao decidir a nossa vida! Me diga: é bom?

Por que não me procurou ao menos para dizer que estava querendo continuar sua vida sem mim? Entendo que tenha sido necessário se afastar para decidir suas confusões. E se decidiu, se preferiu voltar para quem estava com você, porque não voltou para me dizer?!

Mas imagino o que seja: seria exigir demais de você que, além de sair de sua confusão, ainda abrisse mão de suas bengalas, não?! E eu sempre aceitei apoiar o teu peso, sempre carreguei tua vida em minhas costas, tudo aceitando, tudo compreendendo. Tua vida sempre me foi um peso, um peso que eu sempre quis carregar. Mas agora, não! Agora basta!

Basta de desculpas nas entrelinhas, desculpas nunca pedidas, apenas mencionadas como uma intenção escondida, inconsciente. Penso que, na verdade, tais desculpas nem nunca existiram e foram todas criação de minha cabeça.

Sabe de uma coisa? Escrevo para que não fique o rancor. Só agora me dou conta de que já é tarde para isso.

Lembra quando me repetiu: "não temos nada. Se ao menos estivéssemos namorando, você podia me cobrar"? Naquela hora já previ o que estaria por vir. Sabia que em algum momento você cairia fora sem nada dizer e, caso eu te procurasse, me jogaria novamente estas palavras na cara. No teu jogo, todas as jogadas são planejadas de modo que você sempre saia vencedor. Sabe? Não me importa ganhar este teu jogo sujo. Do teu jogo sujo, prefiro sair limpa. Limpa, mesmo que ferida! E é assim que saio. Quero devolver-te, com esta carta, a tua sujeira. E ainda, devo dizer, ainda tenho esperanças de que saiba bem o que fazer com isto, esperança de que mude, esperança de que cresça, de que saiba usar tua sujeira para se limpar, que às vezes temos até as ferramentas, só nos falta enxergá-las. E enxergar a merda é um jeito de sair dela. Talvez, no entanto, seja otimismo demais pensar que você seja capaz de enxergar as merdas que faz, a merda que você anda fazendo questão de ser.

Pois muita coisa boa também ficou. Os amigos, por exemplo, ficaram. Tanto os meus quanto os teus. Decerto que os meus são da mesma opinião que eu, mas nunca lhe virarão a cara. Os teus, creio nunca haver dado motivos para que me ignorem e, de fato, até agora não o fizeram. Ficaram também boas lembranças: os passeios, os restaurantes, as idas frustradas ao cinema, a pele queimada e ardida por um sol de um final de sábado em que caminhamos pela cidade enquanto trocávamos palavras doces e cruas.

Tenho raiva de você agora. Mas tenho também muita saudade. Ainda te tenho amor. Menos admiração, mas ainda amor e nunca me arrependo daquela tarde, depois de termos transado, quando disse que te amava. E nem de quando, momentos depois, cantei aquela canção... Aquela nossa canção - talvez você nem nunca tenha percebido que, para mim, era nossa canção -, aquela que eu havia cantado um outra vez sem muita razão de ser mas sabendo que em algum momento viria a ter razão para ter sido cantada e que, então, seria cantada novamente.

Ainda tem coisas tuas em minha casa. Como faço para entregá-las? Preciso exorcizar cada coisa que me faça lembrar você... Só não tenho encontrado meios de exorcizar-me de mim, eu que sou tua e me faço lembrar de ti a cada novo instante. Não quero e tenho medo de te esquecer. Tenho medo que me esqueças também.

Se para ti nada disso ficou, que fique então ao menos uma certeza: de que serei tua ainda por mais algum tempo, quando você passará a ser apenas parte de um tempo guardado nos escaninhos da memória. Serei tua por ainda mais um tempo, mesmo com a raiva, mesmo com o rancor, mesmo com as dores. Aliás, tudo isso também é teu: o rancor, as raivas e as dores, bem como o carinho... As saudades... Os amores... Queria ser forte ou ser dessas que sabem dissimular e dizer que não gosto de você, que de fato nada senti por ti... Não sou assim. Nisso deve haver alguma vantagem que talvez eu descubra com o passar dos anos e que agora ainda me passa desapercebida.

Na espera de que esta lhe encontre bem e, mesmo chateada, desejando-lhe todo o bem de que sou capaz,

Da sua,
Clarice.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

De uma data feliz (depois de duas cervejas e uma garrafa inteira de espumante)

Quero falar sobre todas as coisas sem tocar em nada. Quero sair intocado da dor que é existir. Da dor que é escrever. Escrever é uma dor. Escrever é parir dores. Senão, não é escrita. Para ser escrita, é preciso haver dor.

Há a fdor da gengiva, aquela dor boa, que dá um pequeno nervoso e passa. Essa dor eu sinto agora. Há dor ruim. Aquela que aperta o peito pela ausência, pela incerteza, pela incompreensão. Essa dor eu sinto há mais tempo, faz alguns dias.

Acho muito estranha toda essa coisa de natal.

Sabe que eu acho que gay dança engraçado? Gay dança engraçado.

A cidade está cheia. Sou eu só que estou vazio.

No amigo oculto de família me sinto quase um estranho e na obrigação de anunciar: tirei uma pessoa que pode não estar aqui no próximo ano... Mas aí pensei: todos se enquadram no perfil, inclusive eu. A dica não foi boa.

Queria ter alguém por perto. Um objeto pessoa que eu pudesse abraçar e que não fosse tão oral quanto as pessoas da minha família. Saí com minha tia para conversar. Acabei só ouvindo. Se passo meia hora com qualquer um, dou meia hora de colo e não recebo nem meio grama de atenção.

A tristeza aparece em cada ato. Estou inteiro em cada pequena ação. O máximo que consegui de compreensão foi um escroto "Ele está nervosinho", vindo do meu pai. Quanta compaixão!

Então é natal minha gente. É hora de calar a boca e pôr um sorriso falso no rosto e fingir que quem você gosta estará ali, para você, a hora que você precisar. Fingir que ninguém, no mundo todo, é egoísta além de você. E assim, dá até pra fazer com que o sorriso falso soe natural.

sábado, 22 de dezembro de 2007

Andei pelas ruas da cidade a esmo. Quem sabe alguém para conversar? Qualquer pessoa em que pudesse apoiar minha cabeça nos ombros e falar da vida. Encontrei meu próprio corpo molhado pela chuva teimosa e fraca. A chuva em meu corpo me dizia: "Você não deveria ter saído. Não percebe que as pessoas da cidade são tão da cidade quanto as ruas?".

(a ser continuado)

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

Pequena Lei Geral

"Segue tua vida, pássaro contente.
Segue tua vida que eu estarei contigo"
(Vinícius de Moraes)

"Podem me bater.
Podem me bater.
Podem até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião"

Lei Geral para a vida:

O que não tem __________, (palavra anterior)ado está.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

O tempo futuro e o instante

Quanto mais eu me entregava,
mais nascia o meu desejo,
mais sobrava só o desejo e mais eu te
Queria sem palavras e sem pensamentos.
(José Vicente)
Pois que havia o desejo, e só o desejo, de nada lhe servia pensar e planejar. Cada instante era um novo instante. E cada novo instante se resumia em si e era tudo. A vida passou a ser cada um dos instantes e nunca era a soma de todos eles. Se muito, era a espera de mais um novo momento. Momento totalmente novo, que os anteriores eram logo esquecidos, deixados no canto, como um brinquedo antigo que perdera a graça.
Nada perdera a graça, contudo, pelo tanto brincar. Tudo perdera a graça pela grande espera da nova graça, do novo brinquedo para o parque do que era sentido.
Já fora o tempo em que esperava, assim como uma criança espera o natal, que a vida fosse uma sucessão de fatos. Também era passado o tempo em que esperava que a vida fosse um grande dicionário, cheio de definições e compromissos renitentes. Ao entregar-se ao momento, desejava o compromisso com o instante, com o segundo vivido. E depois de vivido, tendo cada um seguido seu rumo, a vida se transmutava em nova espera.
Não percebiam ambos que a espera era tão constante que se formava em compromisso. Havia um compromisso com a espera. E isso era tudo. E isso não seria um compromisso como qualquer outro? A aposta tinhosa naquilo que, não se sabe mas espera-se, virá?
O tempo era um grande relógio de cordas. Por mais que dessem corda, seguia seu ritmo acurado. Sabiam que quando chegasse o tempo, algo despetaria em cada um. Saberiam a hora. Saberiam quando chegassem na esperada hora.
Vivam, pois, o tempo presente, que o tempo futuro se aproxima! O tempo futuro... Chegou.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Insight (compreensão interna)

Somos no mínimo dois, devo admitir.
Na cama, o casal é no mínimo três,
também devo concordar.
Nas palavras, os sentidos são melhores
quando são um só. Mas isso nem sempre
é como a linguagem se apresenta, que,
para a sorte de nossos propósitos, ela
tem meandros e melindres.O texto não está
no texto. O texto é construído nas entrelinhas.


Outrora, num tempo deveras passado mas nunca esquecido, havia um lavrador possuidor de todas as terras da pequenita região onde morava. Não era, assim, grande feito ser dono de toda a terra, que toda a terra era pouco chão. Ali, vivia acompanhado por Baco, seu cão, numa casa modesta, de palafita, com apenas dois cômodos: o de Baco e o dele, Dubielino.
Muita história tinha o lavrador, a começar pelo nome. Pai e mãe, desde então já possuidores do mesmo naco de terra, nunca chegavam a um acordo sobre nada. Josefa queria ter uma propriedade repleta de girassóis.; Sr. Nô, uma repleta de cravos multicoloridos. Este mesmo desacordo se extenderia a qualquer assunto: a compra do mês, a raça do cão que iria substituir aquele que havia morrido, a cor do tecido que comprariam para fazer as vestes que usariam pelos próximos seis meses etc. Até que Josefa falou para Sr. Nô da gravidez e nova querela se iniciou: ele queria que, sendo menino, se chamasse Pedro; ela, José, homenagem que prestaria a si mesma. Foi quando, na feira da vila mais próxima, ouviram um sábio falando de um púlpito improvisado com caixas de legumes: "O texto, meus senhores, é dúbio!".
Maravilhados pelo discurso do palestrante, Sr. Nô e D. Josefa foram perguntar ao sábio o que dúbio significava e ele disse: "Dúbio é tudo o que não se define", e definiram então que o nome do filho deveria ser Dubielino, o rapaz cujo nome não se define.
A propriedade herdada dos pais não era difícil de reconhecer: ao longe podia-se ver o campo repleto de narcisos amarelejando as verdes gramíneas, que ele não precisava debater o que queria plantar, uma vez que era só.
Seus narcisos eram conhecidos em toda a região. Muito bem cuidados! Flores lindas, impecáveis, perfeitas na cor, no porte e no cheiro exalado. Decerto eram assim, pois Dubielino devotava sua vida a sua plantação. Buscava sempre na vila novos métodos de plantio, novos fertilizantes, novas ferramentas, que pudessem lhe auxiliar na labuta e lhe garantir resultados a contento.
Numa dessas buscas, descobriu que para cada tipo de planta, um tipo de adubo. Comprou então trezentos sacos de adubo para Narciso e viu, como que por mágica, sua plantação florescer cada dia mais bonita, se isso fosse possível.
Todos os dias, havendo regado as plantas, extraído ervas daninhas, adubado a terra, enfim, tendo realizado todo o ritual de cuidado, Dubielino chamava Baco e iam os dois, cão e dono, para a janela do casebre contemplar a beleza amarela na gramínea verde.
Mas todos os dias são muitos dias. Com o passar dos anos, Dubielino começou a notar que suas vistas já estavam se cansando do amarelo, esta cor tísica. O que fazer? E toda a vida devotada àquelas plantas? E todo o adubo estocado?
Apenas a primeira destas perguntas, contudo, é que passou pela cabeça do lavrador. Para ela, respondeu: "Vou começar plantio novo".
E lá foram ambos, ele e Baco, comprar novas sementes.
Quando voltaram para a propriedade, Dubielino foi logo pegando a foice e, decepada a parte incômoda dos narcisos, justo aquela que ficava bem abaixo e a frente da janela do casebre, lançou as sementes dos gerânios avermelhados.
Cuidava das novas flores todos os dias e com o mesmo cuidado que cuidava anteriormente dos narcisos. Aliás, sim! os narcisos! Esquecera-se deles. Os coitados, espalhados por maior parte do terreno, mas não no naco de chão visível da janela, começaram a murchar lentamente pela ação da sol e das ervas. Ignorados, definhavam.
No entanto, ignorar é um modo de reconhecer a presença. Quando acordava, o lavrador devia escolher novamente ignorar a presença dos narcisos e, nesta deliberação, acabava por reconhecer indiretamente que aquelas plantas amarelas ainda existiam em seu terreno. Foi num desses momentos matutinos de reafirmar sua escolha, que Dubielino viu-se de cara com ela, aquela que estava presente em seu nome, a Dúvida.
Vinda do nada, a Dúvida lhe disse:
- Pretende ignorar até quando aquelas plantas inocentes?
- Do que fala?
- Você bem sabe do que falo... Os pobres narcisos não tem culpa pela futilidade de seu dono. Não deveriam pagar. Se aqui há culpado, este é você, que agora os deixa à mercê da Morte, minha companheira de trabalho.
Assim como chegara, a Dúvida fora embora: do nada, e só podiamos ver, então, os passos apressados de Dubielino para o celeiro, e do celeiro para o campo e do campo para casa, com a companhia de seu cão, e na casa, para a janela. Adubara os narcisos, cuidara deles e ainda voltara a tempo de ver o sol se por por sobre as novas flores avermelhadas.
Dubielino começara a dar valor aos prazeres da vida. Aquele antigo lavrador, compromissado com suas plantas, ficara para trás, dando lugar a um homem capaz de se felicitar apenas com o prazer, não tolerando as dores e sacrifícios. Entretanto, pensemos: como poderia ser prazeiroso adubar de modo diverso, posto que para cada planta um adubo, narcisos e gerânios? A labuta só aumentaria! E o espaço para o prazer à janela?!
Dubielino, juntando todas as suas economias e chamando Baco, partiu novamente para a vila, voltando desta vez com a grande sensação do momento: o Adubo Universal, capaz de alegrar gregos e troianos, ou melhor, narcisos e gerânios e quaisquer outras plantas que queira qualquer lavrador.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

A Sessão

(Texto escrito em 13/11/07)

- Eu sei que o certo seria eu dizer pra ele: ó, seguinte, eu não te amo mais, mas não consigo.
- Você não consegue se posicionar.
- É. Fico assim, no meio do turbilhão. Porque sei bem o que quero, mas não consigo.
- Você não vê outra solução além de ficar na situação em que está.
- Isso! Mas eu não quero ficar onde estou!
- E como sair?
- Ué, dizendo que não dá mais.
- Mas isso você não consegue. O que ainda dá para fazer?
- Acho que eu preciso mesmo é ter a certeza de que a outra pessoa gosta de mim.
- É preciso que o outro te assegure para que você, só então, possa tomar uma decisão.
- Não consigo sozinho.
- E assim vai vivendo: esperando que alguém te ajude a decidir e a se posicionar, mesmo que essa espera te cause dor.
- Isso mesmo, doutor. Eu vou vivendo assim! E dói! Dói mais ainda porque eu tenho a certeza de quem eu quero.
- Mas a certeza de quem você quer não lhe dá a certeza de que é esta é a decisão certa...
- Não! Não é isso. É a decisão certa, eu sei. Quer dizer, eu sinto que é... Mas a questão é: e como vai ficar este que está comigo? Quando penso nele, eu paro, não faço nada. Ele vai sofrer, eu acho.
- Talvez ele sofra. E enquanto ele sofre na sua idéia, você sofre aqui, agora.
- É, mas e depois? E se eu sofrer mais? Também penso assim, ó: e se eu deixo ele, fico com o outro e nada dá certo...?
- Você teme abrir mão do que já tem, já que não tem garantias de como as coisas vão vir-a-ser. Não larga o osso, mesmo não gostando tanto desse osso, tanto que sabe que não é esse que quer, e sim o outro. Mas fico pensando... O quanto de fato você gosta do outro osso...? Ou será que o que te atrai nele é exatamente o caráter de irrealização, de pura idealização que o reveste?
- Não! Sei que é ideal... Mas sei também desde sempre que o que quero é que saia desse campo. Doutor, você sabe tão bem quanto eu quase que eu, desde o começo, tento encontrar-me com ele! Sempre tentei! Ainda agora, mesmo estando com quem estou, eu tento.
- Você percebe que, mesmo com quem está, age no intuito de conseguir ter quem deseja.
- É. Eu sei que não é certo, mas... Tento todas as noites... Todas as noites penso nele, todas as manhãs também. E penso: será que se eu ligar agora ele me atende? Mas aí tenho medo e não ligo, assim como tem noites em que tenho medo de que ele esteja online no bate-papo, e que nos falemos e tudo seja bom como sempre foi e que me encontrar com quem eu estou se torne de tal maneira insuportável que eu já não seja senhor de meus impulsos e acabe terminando tudo sem nem ao menos refletir ou expor as coisas de modo que haja menos sofrimento.
- Você teme muitas coisas: teme fazer o outro sofrer, teme que o outro seja bom contigo... Não age por temer o outro. Mas para que você teme?
- (Silêncio prolongado) Não sei... Talvez eu tema por... Talvez... Bem, eu acho que eu tenho medo de fazer o que quero. Aí fico pensando nos outros. Mas é o que quero, né? Fazer o que se quer não pode ser tão errado, não é verdade, doutor?
- Mais uma vez você quer que o outro te assegure de suas escolhas: agora você quer que eu te diga se o que você escolhe é certo.
- (Riso solto. Pára de rir) É... Acho que você tem razão. Aliás, eu faço isso sempre. Vivo perguntando às minhas amigas o que fazer. Na verdade, não pergunto o que fazer... Eu apenas conto a história. Sei que elas vão dar opinião em algum momento. Elas acham que eu devo ficar com quem estou mesmo. Ele é uma boa pessoa.
- Mas parece que ser uma boa pessoa não tem bastado pra você.
- É... Nunca bastou. Eu sei que fiquei com ele pra evitar entrar em contato com o fato de que o outro me era impossível naquele momento.
- E agora que o outro está aberto pra você, é impossível fugir e não encarar esta possibilidade: a de que vocês fiquem juntos.
- É. É impossível.
- Pois bem... Impossível é agora continuarmos aqui, nesta sala. Seu tempo terminou. Mas há muito tempo lá fora, onde é possível realizar muitas coisas.
- Verdade... É isso que tanto me assusta.
- E ainda assim é para essa realidade que te assusta que você acorda todos os dias. Nos vemos semana que vem.
(E despedem-se)

A propriedade do amor

(Texto escerito em 30/10/07)
Há um novo modo de amar. Um novo modo e não o compreendo. Não o compreendo, mas o sei bem. Sei como quando faz doer-nos o corpo algo que nos invade e que nos é completamente estranho. Melhor dizendo: sei bem porque faz doer-me o corpo. Porque faz doer-me a alma. Porque faz doer-me.
São muitos os modos de amar, mas este é como pensei que seria o amor entre amigos. A carne entra, a carne sai. O que resta é um profundo carinho que só faz crescer a amizade e o sono de depois do sexo é um leve toque, uma brisa fresca num dia quente, um silêncio gostoso depois do falatório. É um novo modo de amar, que não é amor de amigo, mas talvez seja como se fosse. Com as analogias, tento compreender este novo modo. Penso, por acaso, em minha mãe. Vejo seu sorriso. Diria que nada tem a ver com ela esta nova modalidade do amor e sei que ao dizer isso minto para mim e para todos. Sobretudo, minto para mim, porém, se digo isso.
Creio que seja pela falta de compreensão, por não conseguir lançar luz ao escuro que é esta novidade, eu, que tanto prezo a iluminação do pensamento, creio que seja por essa incapacidade de olhar este amor às claras que não consigo entregar-me a ele como sempre fui capaz de entregar-me. E justo eu, que sempre quis um novo modo, uma forma de não repetir o que sempre tive, agora que eu posso amar-me a mim no outro, sou incapaz de amar.
Buscava nos outros a mim mesmo e agora que posso possuir-me por completo, vejo que o outro, que é como eu, é a mesma minha incompletude. Não posso ter tudo neste novo amor, não posso ter tudo que cri ser possível alcançar desta nova maneira.
Sim, há um novo modo de amar e já não sei, dentre todos os que tentei, qual é o mais apropriado.
(por Alberto)

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Amigos que visitam. Amigos que deixaram de visitar.

O Re-petição não morreu. Só está na rua, vivendo. Depois ele conta tudo... Andava sem assunto, o pobre. Decidi deixá-lo ter mais experiências para contar. E aí, quando ele tiver, vem pra cá e deixa tudo escritinho.

O texto que acabei de postar é meio antigo. Tem muita coisa sendo escrita à moda antiga por agora. Falta tempo no trabalho, que é onde eu costumava postar os contos e criá-los. Enfim, conforme der tempo e conforme for julgando importante postar, aí vou fazendo isso.

Enfim, nem muitos andam visitando o blog. Só achei que devia algo assim para aqueles que persistem rs.

Bjs

A impaciência e o medo

Era estranho pensar sem saber e, por fazê-lo, perdia-se na escuridão de si mesmo. Por vezes, diria ter certeza de que não mais é só. Por outras, diria temar estar só sem sabê-lo. Perdendo-se a si de vista, esquecia, assim, que o homem é, em si, solidão.
Oscilando entre esses pólos, deixava seu pensamento percorrer tanto as diferentes possibilidades que se apresentavam, quanto as diferentes leituras para o momento presente. Decerto, estas últimas vem primeiro, pois uma determinada possibilidade, para ser vislumbrada, depende do modo como se enxerga o agora e não o contrário.
Foi como quando pensou que, indo falar com o ex, o outro lhe deixaria. Não pensou na possibilidade de que, pelo contrário, ao invés de deixá-lo, mais o outro se aproximaria, e acabou por ver diante de si apenas três possibilidades: ignorar este que gosta; manter-se ao lado de quem gosta, mesmo que este voltasse para o ex; e, por fim, deixar-se doer e definhar, passando a desacreditar nos sentimentos.
Tanto pensou nesta ocasião que quase nem se deu conta de que ela havia passado, perdido que estava em seus pensamentos. De que havia passado e de modo bastante conveniente a ele, a despeito da única leitura que fizera do contexto.
Outra vez, tendo ouvido do outro que este havia acabado de sair de um relacionamento e que , por isso, preferia não se colocar imediatamente em outro, deixou de ouvir num momento imediatamente posterior que estava sendo, aos poucos, incluído nos planos e projetos daquele. Não ouvindo, deixou de felicitar-se, apenas podendo sentir a dor de estar só em uma relação a dois.
Era, sim, estranho pensar sem saber. Mais estranho ainda era pensar e pensar tanto, de modo a não se deixava viver o que acontece agora. Vive nosso rapaz apenas as dores que nem sequer existem. Vive apenas a impossibilidade de gozar plenamente as coisas boas que se lhe vem ao encontro.
Se pudesse ter contato direto com este rapaz, este que tapa-se a si os olhos e ouvidos, enxergando e ouvindo apenas aquilo que, ele teima em dizer, não quer, lembrá-lo-ia que, em breve, irá estar junto de quem gosta. Então, falaria de como o outro está animado para este encontro ou de como o outro já ficara chateado por diversas vezes ao vê-lo vacilar, temer e entristecer-se. Diria então novamente as coisas bonitas que o outro lhe disse, dando-lhe a oportunidade de ouví-las mais uma ou pela primeira vez.
Por fim, o convidaria a ter calma, que uma boa história não se faz com tijolos de idéia, mas com tempo.