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quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

A Descoberta de Ricardo

Saber o que se quer lhe era tão necessário quanto inútil. De nunca lhe adiantaria saber o que queria caso continuasse a lhe faltar a quantidade exata de amor-próprio para levar o desejo adiante, pois mesmo quando descobria suas reais vontades, calava-se e aceitava sujeitar-se ao desejo do outro.

Fora um encontro casual. Algumas linhas trocadas, alguns telefonemas, o almoço cancelado numa tarde de domingo e, então, o encontro em frente ao cinema de um dos shoppings da cidade.

Pela foto as pessoas são sempre diferentes, pensou ele. Não que estivesse desapontado, mas, sim, pelas fotos as pessoas eram mesmo diferentes. O outro, por exemplo, parecia mais alto, maior, pele lisa e perfeita. No entanto, não era tão alto, nem tão grande e tinha uma cicatriz do lado esquerdo do rosto, na parte mais baixa da bochecha.

Isso não o incomodara. Incomodara, contudo, a frase "Pois bem, agora já nos conhecemos. Fique à vontade para fazer o que quiser" dita pelo outro logo no começo da conversa. Então era só isso?, ele pensava, então todas as linhas trocadas, todos os telefonemas e o almoço cancelado transmutaram-se em um breve olhar, alguns passos pelo shopping e uma despedida? Não tinha bem claro o que queria, talvez pelo outro não ser uma foto, talvez pelo foto não ser o outro.

Em verdade, as fotos e as pessoas são sempre a mesma coisa. O que as diferencia é a história que criamos para as fotos, ao passo que as pessoas têm suas próprias histórias. Não tenho acabado ali o encontro, já juntos e conversado por algumas horas, Ricardo, nosso rapaz, já não via no outro a foto e nem buscava vê-la. Via no outro o outro. E o outro passou a ser não uma foto dessemelhante a ele mesmo, mas todo um álbum, todo um livro, toda uma vida que se abria diante dos olhos de Ricardo e entrava por seus ouvidos... Se a vida de alguém fosse matéria gastronômica, diria mesmo que queria comer a vida do rapaz. Se fosse um souvenir, gostaria de trancá-la em um baú para poder olhar sempre que quisesse.

Não podendo comer nem trancafiar a vida diante de si, beijou-a e amou-a de tal modo que saiu do encontro com uma parte dela em si, mas nem se deu conta.

Falaram-se todos os dias até o próximo encontro. E o mesmo até o próximo, em que dormiram juntos. Foi esta a primeira - e única - vez em que Ricardo pode sentir o outro dentro de si. A alienação que a carne do outro em seu corpo lhe causava, apenas contribuía para que Ricardo se perdesse de si, esquecendo-se e distanciando-se de suas reais intenções.

Mas intenções, desejos, vontades, essas coisas do muito querer retornam e sempre com mais e maior intensidade. Se se falavam todos os dias, após o sexo, o outro não mais ligou. Nessas ocasiões, Ricardo passava por estágios bem simples no modo - já que sempre ele parecia triste - e complexos no conteúdo - que era sempre remoído internamente e nunca externalizado em sua completude na conversa com os mais próximos.

Primeiro, era a fase da compreensão - ele deve estar cansado, ele deve estar dormindo, ele não deve ter recebido meu recado. Depois, vinha a fase do sentir-se rejeitado - ele não quer responder, ele não quis ligar, ele não gostou do que houve e não quer fazer contato. Por fim, a fase da raiva, disfarçada em desistência - se ele não quer, não importa, pois não vejo porque agarrar-me a uma possibilidade enquanto outras várias fazem tocar meu telefone.

Até que quem fez tocar o telefone foi o outro: "Está em casa?", ele perguntou. "Sim", Ricardo respondeu imediatamente, o coração exultante, a raiva esvaída em felicidade.

Mais uma vez, dormiram juntos. Nesta ocasião, porém, o inesperado se deu. Das outras vezes em que estivera na casa do outro, houve muita conversa antes do contato, sempre estabelecido por Ricardo: um pequeno beijo, um toque leve nas costas, um abraço tímido na chegada. Desta vez, contudo, Ricardo decidiu não mover-se e esperou que nada acontecesse até que o outro o chamasse para o quarto. Durante a conversa, em geral, cada um sentava-se em uma poltrona e falavam, falavam, falavam, até que o convite para a cama era feito, como uma cerimônia religiosa, cheia de dogmas e passos previstos. Nesse dia, contudo, Ricardo sentou-se no sofá maior e, para sua surpresa, o outro deitou-se no mesmo sofá e pôs os pés em cima do colo de nosso rapaz, que, sem nada entender, começou a acariciar aquela companhia quente, agradável e inesperada.

Pela primeira vez, o convite para a cama não fora feito, mas aconteceu naturalmente, os dois levantando-se e concordo silenciosamente que era hora de deitarem-se um ao lado do outro.

O acaso tem suas artimanhas... E no dia seguinte, mais estranhezas se fizeram presentes, pois que o outro parecia incrivelmente mais próximo, falando coisas suaves. Nada demais, se pensado friamente, mas muitas coisa se compreendido a partir do desejo real e desconhecido que Ricardo alimentava.

Nos dias que se seguiram, pela primeira vez Ricardo ouviu o outro dizer: "Também tenho saudades de você", e sentiu tamanha felicidade que foi incapaz, por dias, de fazer o que mais gostava: escrever. É que para escrever, Ricardo necessitava de um estado tal de espírito que se assemelhava à melancolia, mas esta não lhe fez visita.

Não lhe fez visita até que a ausência do outro novamente o visitou. Nada fazia tocar o telefone de nosso rapaz, nem mesmo as mensagens que ele, em vão, enviava. Nenhuma era respondida. E nenhum contato fora feito.

E outra vez, os três estágios: a compreensão, o sentir-se rejeitado e a raiva disfarçada em desistência, até que o telefone tocou alto e fundo em Ricardo.

O rapaz dormia e acordou de sobressalto. Quem liga a esta hora de uma manhã de final de semana?, perguntou-se. E foi como se cada gota de chuva que caia do céu naquele dia parasse aos poucos de cair e preguiçosamente retornasse para a nuvem de qual se desprendera. E como se cada nuvem decidisse, malandramente retirar-se para que viesse o sol. E como se o sol, espertamente, acordasse os pássaros. E como se os passáros, celeremente, acordassem é saíssem pelo céu azul e cálido em canto belo, ágil e feliz.

- Alô? - disse Ricardo.
- E aí? - respondeu o outro do outro lado, como de costume.
- Oi! Nossa, que bom te ouvir. Que bom ouvir de você. Fico feliz que tenha feito contato!
- Mas eu sempre faço contato...
- Não foi isso que eu quis dizer...

Nessa hora, Ricardo esqueceu-se do que mais gostava: os subtextos, as entrelinhas. De fato, o outro sempre fazia contato: sempre que queria e, por isso, tinha a sensação de que era sempre. E Ricardo contentou-se com o "sempre" do outro, sem pensar no que era "sempre" para ele.

Aquela noite, dormiram abraçados mais uma vez. Não sem antes o outro dizer a Ricardo o que queria de fato.

- Estou em um momento muito tranquilo, ele disse. Busquei muito alguém ano passado, ele disse. Tem sido legal, ele disse - contou Ricardo para si mesmo algumas vezes no dia seguinte, e no seguinte e no outro, quando, sem aguentar a ausência do outro, ligou para dizer: "Aceito o seu tempo, aceito sua tranquilidade e compreendo seus medos. Também tem sido legal para mim."

Todavia, ao falar, Ricardo não ouvira a voz que gritava dentro dele. "Aceita?", ela gritava. "Compreende?", ela dizia insistentemente.

Nos dias que se seguiram, Ricardo tentara contato outras vezes, sem obter êxito. Quem obtivera o êxito esperado fora a tal voz insistente, que fez com que Ricardo entrasse em contato com aquilo que realmente queria e constatasse o quanto aceitara, nas últimas vezes em que conhecera alguém, os limites do outro, sem nunca impor os seus limites e suas vontades.

Não queria deixar de ver o outro, mas também não queria continuar oscilando entre a tristeza e a euforia, entre a solidão solitária e a solidão acompanhada. Não queria solidão. Queria mesmo era companhia. Além do mais, era mais só ficar só acompanhado do que só sozinho.

Até agora, Ricardo não sabe o que fazer. Pensa que talvez o ideal seja falar. Ligar para o outro, marcar um encontro, ter uma conversa sincera. No fundo, deseja que tudo se ajeite entre eles, mas agora sabe o que quer e sabe que o que mais deseja é que tudo se ajeite da melhor maneira para si mesmo.

quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Na farmácia

- Boa tarde!
- Boa tarde - respondeu o atendente. Posso ajudar?
- Sim... É que eu tô com dor....
O atendente já estava acostumado com estas coisas: trabalhar numa farmácia era quase como ser médico. Havia um tipo bem específico de clientes que chegava apenas falando seus sintomas a espera da indicação de um remédio milagroso para seus problemas.
- Você tem alguma receita médica?
- Não... Não fui ao médico ainda... Queria ver se o senhor pode me ajudar...
- Hum, fica difícil assim... Existem vários remédios para dor e...
- E cada remédio é para um tipo de dor específica?
- Você conhece de remédios?
- Não, mas o senhor deve conhecer, sempre trabalha com eles... De mais a mais, é mais velho...
- Quantos anos você tem, menino?
- 10. Mas faço 11 em pouco mais de um mês.
- Sim... E que dor sente?
- Ah, é uma dor assim: às vezes eu tô em casa com minha família toda. Fico na sala vendo tevê de manhã. Minha aula é só na parte da tarde. Aì sai minha mãe para o trabalho, sai meu pai para a empresa, sai vovó para a caminhada com as amigas, saem meus dois irmãos, porque a faculdade é cedo... Aí fico eu... E aí chega a dor.
- E onde é que você sente a dor?
- Hum, não tem bem lugar não. Eu falei com mamãe uma vez e ela disse que era uma dor "onipresente" e riu...
- Entendo. Sua mãe, eu acho, quis dizer que sua dor está em você todo...
- É, foi isso que eu disse pra ela. Que não tem lugar, que é uma dor assim bem completa. Parece que está no meu corpo todo e, se tento chegar nela com o meu pensamento, se tento me concentrar nela e descobrir onde ela está, ela some de onde está.
- Sei. Menino, isso é frescura, não é dor, não.
- O senhor sabe? O senhor sente também?
- Não, mas isso é bobeira. Agora deixa eu atender as outras pessoas... A senhora... Posso lhe ajudar? - disse o atendente olhando para uma senhora que acabara de entrar e olhava o stand de shampoos em promoção.
O menino, não satisfeito, seguiu o atendente com o olhar e, com um breve aceno de mão, chamou a atenção dele novamente.
- Ei! O senhor me desculpa... Mas o senhor ainda não me ajudou.
- Menino, tenho mais o que fazer. Sua dor é frescura. Violta pra casa que ela passa.
- O senhor já sentiu minha dor?
- Talvez já. Quando eu era criança eu tinha muita frescura também. Mas com a vida aprendi que não posso me dar a esses luxos.
- E doía?
- E frescura dói?
- Então a minha dor não é frescura... Porque se não doesse, eu não ia dizer que tenho dor, não é?
- Hum... Sim. Mas então, onde dói?
O menino ergueu os dois braços:
- Dói aqui - pousando a mão na cabeça -, mas dói mais aqui - e a outra mão foi para o peito.
- E pára, essa dor?
- Pára. Quando vou pra escola, passa. E à noite, em casa, também não sinto nada. Só dói de manhã...
- Menino, você tem amigos?
- Amigos?! Claro! Tem o Pedro, a gente joga futebol na rua de casa. Tem o Jonnatan, a gente brinca de carrinho no recreio. Tem a Clara... E o Carlos, e a Ana...
- Ok, ok... Você tem amigos. Mas, então, não entendo...
- O que o senhor não entende?
- É que eu pensei que você sofresse de uma coisa, mas já não sei...
- O senhor acha que sabe da dor que sinto?
- Já se sentiu sozinho?
- Hum, sozinho... Acho que já... Mas se sentir sozinho dói?
- Dói... Veja bem, se tem gente em casa, você não sente nada... Se não tem, você sente. E a dor é bem assim, pelo corpo todo, mas sem ser em lugar nenhum...
- Sim.
- E você tem amigos... E quando está com eles, dói?
- Não, não dói.
- Viu?
- Então, moço, o senhor me dá dois comprimidos para a solidão?

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

I heard love is blind (Amy Winehouse)

I couldn't resist him
His eyes were like yours
His hair was exactly the shade of brown
He's just not as tall, but I couldn't tell
It was dark and I was lying down

You are everything - he means nothing to me
I can't even remember his name
Why're you so upset?
Baby, you weren't there and I was thinking of you when I came

What do you expect?
You left me here alone;
I drank so much and needed to touch
Don't overreact - I pretended he was you
You wouldn't want me to be lonely

How can I put it so you understand?
I didn't let him hold my hand
But he looked like you;
I guess he looked like you
No he wasn't you

But you can still trust me, this ain't infidelity
It's not cheating; you were on my mind
Yes he looked like you
But I heard love is blind...
(Amy Winehouse - I heard love is blind)

domingo, 20 de janeiro de 2008

Da Velhinha que se foi

Ela já ganhou placa de homenagem da Prefeitura da cidade.
Ela andava devargarzinho por conta da idade.
Estava em todos os almoços que minha avó fazia em comemoração de qualquer coisa. E nessas ocasiões eu sempre desconfiava que, apesar do carinho que ela me devotava, ela não sabia meu nome.
As filhas se revezavam para dormir na casa dela, que velhinha precisa de companhia.
Os filhos já brigaram com ela por conta de herança.
AH! Ela já morou na roça, numa época em que banheiro e luz eram luxos a que ela não podia se permitir.
Ia a todos os comícios da cidade e era toda politizada.
Amava o prefeito atual.
Tinha um rostinho velhinho e enrugado, bem enrugado, e aquela pele que parece papel. E cabelo grisalho e os olhinhos caídos.
Quando meu bisavô morreu, ela se mudou de casa. Nessa época, me lembro, eu era pequeno ainda e minha avó me abraçou chorando e dizia no meu ouvido: "Meu filho, eu não tenho mais pai".
Não estou triste, mas tenho medo de que amanhã minha avó me abrace e diga de novo no meu ouvido: "Meu filho, eu não tenho mais mãe".

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

O Eterno Filme

Tem horas que dá vontade de cortar.
- Não, Cláudio, não vi a porra do filme!
Acho que ele não ia entender, a princípio. Talvez fique chateado. Detesto causar chateação. Mas, sabe? Odeio essas pessoas que a gente conversa uma vez na vida e a pessoa passa o resto dos dias retomando aquele mesmo velho assunto para puxar uma conversa diferente! Erro a gente comete, né? Então...
Uma vez falei para Lídia: "Amiga, tem gente que é melhor nem começar...".
Era papo de café, sabe? Papo de corredor do trabalho. Estavam ele e mais duas pessoas. E eu adoro cinema. Não resisto a um papo sobre filme. E entrei na conversa...
E agora fica ele com esse ar de cachorro pidão sempre perguntando: "E aí, já assistiu?".
Não assisti e nem vou assistir! Imagina! E ter papo com ele?
Fico pensando... Se eu assistisse, como seria?
- Ah sim, vi...
- E aí?
- Uma bosta!
Será que o papo ia acabar? Eu acho mesmo que ele ia passar a perguntar: "Mas então você não gostou mesmo do filme?" e eu ia sempre responder com um sorriso e um aceno negativo com a cabeça.
Meu pai dizia sempre: "Filha, não fale com gente do trabalho nada além de coisas sobre trabalho", mas é difícil a gente entender o que dizem os mais velhos até que a gente vive o que eles dizem.
O pior é que até parece gente boa o Cláudio, sabe? Eu até que gostaria de me aproximar. Acho que foi por isso que tentei aquele dia, mas agora não dá. Entre nós tem o tal filme nunca assistido e sempre comentado. É como uma grande barreira o filme.
Foi o mesmo com o Ernesto. Se bem que com ele ainda rolaram outros papos e uma saídas no final de semana. Ah! Valeu a pena, sim... Por sorte ele foi transferido de setor.
Além do Cláudio tem outros também, né? Empresa grande é mesmo um problema. Tem a tal da Márcia, que fica passando sempre e sorrindo falso e fazendo comentários elogiosos sobre minha roupa. Mas isso eu já aprendi com a Lídia: apenas sorrio de volta com o mesmo sorriso falso e deixo ela falar. Por vezes, respondo aqui e ali algum elogio com outro, mais falso ainda.
Queria saber por um basta nessas coisas... Um dia eu digo:
- Porra, Cláudio! Mas que caralho! Não reparou que eu não quero ver a porra do tal filme?!

O encontro de Rebeca - parte 2

Queridos, o conto "O encontro de Rebeca" é um só... enfim, só estou postando em partes porque está ficando grande e demorado... Ela resiste em morrer... rs
Ah sim. Esta não é a versão final... A parte 1 já sofreu alguns acréscimos. Acho que nenhum corte... Mas acréscimos que ajudam a compreender os fatos. Ao final do conto, posto de uma vez só ele todo.

O Encontro de Rebeca (continuação)

Por mais dois anos, as portas e as janelas da residência dos Palhares permaneceriam fechadas, até o dia em que seriam abertas para que Rebeca encontrasse a morte e a coroação como Santa. O corpo de Rebeca, enclausurado, embranquecia dia após dias e ganhava um tom mais solitário ainda do que tinha quando mais moça: era azulado pelas veias aparentes. Sorte tinha ela, contudo, pois que muito havia para que tivesse enlouquecido, contudo a ausência de contato com a brisa marítima lhe evitava tal mal. Além do mais, não podemos dizer se loucura seria um mal que Rebeca pudesse pegar. Desde que Dr. Parmênides lhe anunciara a doença mortal que nunca mais adoecera de outros males. Quando viva, sua mãe costumava mesmo brincar: "Minha filha, minha vida, que doenã estranha essa: não gosta de dia e nem de companhia! Que doença é coisa ruim: quando vem, vem sempre em conjunto!", e esse não era o caso.

Se pudessem escolher, dentre tudo o que há no vilarejo, aquilo que mais pesa sobre suas vidas, certamente os habitantes escolheriam o mar. O mar ruidoso. O mar gelado. O mar bravio. O mar robusto. Ele era a vida daquele lugar e o único faixo de luz na mente escurecida de todos os moradores. Falar no mar era falar do que lhes mantinha vivos e por isso sentiam-se iluminados neste momento. Clarões de lucidez podiam ser vistos emanando de cada pessoa ao falar daquela entidade tão querida, o Sr. Mar. Tão querida e tão temida, como tudo o que é verdadeiramente amado. O amor, coisa tão mais complexa que o mar, traz sempre consigo pesos vários que, a princípio não lhe competem. Quanto mais amavam o mar, mais o temiam e mais o respeitavam: raras eram as vezes em que se via algum corpo mergulhando entre as ondas e a espuma salina, raros eram os pescadores que aventuravam-se com seus barcos nas águas revoltas, raras eram as pessoas que, como Florinda Palhares, se arremessavam contra as rochas, pois que era desreipeito ao mar fazê-lo um assassino.

Havia um acordo tácito entre habitantes e o grande rei: ele lhes fornecia tudo quanto precisassem, contanto mantivessem o respeito. Ninguém sofria: nem o mar, nem eles. Os peixes eram ofertados em abundância, assim como as danças à beira do praia todas as quintas-feiras dos meses de agosto, quando o mar dali fazia bodas. As conchas eram poucas na praia, mas todas as que haviam eram tão belas que permaneciam ali, intocadas, incapazes que eram os homens de recolhê-las diante de tão estonteante beleza. Ostras, camarões, lagostas, pérolas, corais, estrelas-do-mar, cavalos-marinhos: tudo isso o mar lhes oferecia em troca do respeito observado.

Nunca houve, como acreditavam os homens, nada no oceano além de peixes, e plantas e vidas marinhas comuns e conhecidas. Talvez uma ou outra espécie de peixe desconhecida, um novo tipo de alga, mas nunca coisas como monstros, sereias, lulas e polvos gigantes, deuses das fossas abissais. Além do comum e esperado, só havia no mar água. E era tão do mar a água como o eram as outras coisas, quiça mesmo mais, que não haveria mar sem ela. A água e o mar eram dois amigos tão próximos, que os habitantes da vila os confundiam em casamento dizendo: "Trouxe um pouco de água do mar". Mas a água não era de ninguém. Era apenas água e, se muito, poderiamos emendar: amiga do mar. Portanto não lhe cabia de modo algum um respeito cego ao acordo dos homens com o mar. Nada ela ofertava aos homens, apenas exigia deles o mesmo respeito que devotavam ao amigo, como se esta fosse uma obrigação de todos para com ela, que lhes permitia - e disso os homens sabiam - viver.

Para mim, é um labor imenso compreender tal amizade. Pois qual das gentes seria amiga de uma pessoa que só lhe faz empurrar contra os rochedos? O mar não hesitava em lançar a água contra os rochedos, fazendo-a voar pelos ares em forma de pequenas gotículas e retornar para sí e para a onda seguinte, e a seguinte, e a seguinte... E nesse vai e vem, parte da água se ia, subia, talvez, como já dito, por vontade própria das gotículas ou por força da evoparação - que é o que preferem crer os homens do vilarejo, tão fechados à magia da vida por terem mentes obtusas e escurecidas – virava a umidade incômoda que tomava as ruas do vilarejo todas as noites e que era barrada à porta das casas.

Labor imenso também é compreender porque os homens da vila tanto evitavam a mágica da vida e preferiam interpretações simples dos fatos cotidianos. A evaporação é um processo tão mais cor pastel do que a crença na cor da vida das gotículas e na vontade própria delas. E é difícil de compreender esta opção pois à vida, é a mágica que dá cor. A mágica e os sentimentos e se esta história se deu é justamente porque houve um dia uma noite com a cor da solidão: o azul pálido, a mesma cor de Rebeca e das gotas reunidas no grande mar, e das estrelas brilhando no negro céu, e da lua em certas noites de frio quando os homens cruzam as ruas e cortam o vento cortante. Se há esta história, é porque um dia houve mágica apesar das mentes obscuras não terem querido vê-la. Mas depois de toda a cor e do ruído que houve aquela noite, as mentes se abriram e viram e Rebeca, como sabemos, virou Santa.

Talvez pela mente estreita dos homens, com o tempo a água do mar começou a sentir-se desacredita deles. Não era agradável vê-los falando dela sempre em relação ao mar. Além do mais, não haveria mar sem ela! Pensou em isolar-se da humanidade, mas isso significaria muitas perdas. Foi quando decidiu, num ímpeto, a adentrar as ruas da cidade todas as noites misturada ao vento frio, fazendo-se notar pelos transeuntes.

No começo, obteve o êxito esperado. Todos aqueles que saíam as ruas à noite falavam dela. Dela tão unicamente. Não misturada ao mar, vinha nas conversas: “Mas que neblina enjoada”, ouvir uma vez um jovem rapaz falando. Era Pedro Villasboas. E tanto fez persegui-lo que o rapaz, tão logo pode, mudou-se para o interior, onde a brisa enregelante não o pode perseguir. Sem saber, a água estragou os sonhos de uma jovem menina de doze anos, bastante adoentada, que era apaixonada pelo rapaz mesmo sem nunca ter sido notada por ele. Menos ainda sabia a água que esta menina seria, no futuro, o seu destino.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

O encontro de Rebeca - parte 1

Amigos,
Ontem comecei um novo conto. Ele parece ser demorado. Quando tento continuá-lo, acabo tendo mais idéias e a história se prolonga. Mas não quero correr o risco de pará-la, ainda mais porque tem me sido muito cara. É a história de Rebeca e seu encontro. Assim, para ajudarem-me com idéias e opiniões e para que eu me comprometa a terminar o conto, posto aqui o que já tenho escrito.
Espero que gostem.
O Encontro de Rebeca
A solidão dele fez companhia à solidão dela e quando as duas solidões se encontraram foi tão engrandecedor que mesmo a noite ganhou nova cor e novo cheiro. É que duas solidões, quando se encontram, reconhecem-se uma na outra e o que daí pode nascer é incognoscível, mas sempre belo. Seja a amargura ou o carinho, é sempre belo quando dois corações solitários se esbarram numa noite bolorenta e decidem ficar juntos, um ao lado do outro, até que o dia amanheça e a solidão de cada um possa novamente ser travestida em tons mais alegres que o pálido azul. Pois que a solidão é azul, disso não tenho dúvidas.
A rua estava escura naquele momento. Poucos eram os que se atreviam a desafiar o vento frio e cortante. Cortar o vento cortante: eis o verdadeiro heroísmo desta noite. A umidade do inverno na vila era bastante típica. O mar, sempre ruidoso, lançava suas águas pelo ar ao jogar-se robusto contra as rochas e, quer seja por vontade própria das gotas (que é no que creio) ou por motivos menos líricos e mais sérios como a evaporação, este mar transformado umedecia cada ruela, cada beco escuro, cada parede de cada casa.
A luz, dependurada naquele poste bossal e esguio, já estava cansada do esforço. Por mais que tentasse, seria impossível iluminar aquelas mentes oblíquas e enegrecidas. E lutar contra o frio era tarefa árdua inclusive para ela. Em breve, desistiria do labor e arrebentaria-se num lindo clarão avermelhado e a escuridão seria, então, total, até que os homens da administração pública fossem avisados por algum transeunte e colocassem nova lâmpada no lugar, para o mesmo trabalho ingrato.
Ser luz era esforçar-se por iluminar as mentes obscuras dos transeuntes heróicos, dos ousados cortadores do vento enregelante. Apenas mentes oblíquas como estas ousariam sair de casa, onde poderiam esconder-se da umidade do mar. As casas da vila eram bem preparadas para fazer com que a umidade parasse na porta de entrada e na parede da frente. Por mais que batesse, por mais que insistisse,a umidade quedava-se do lado de fora e o interior de cada casa era sempre quente e seco, o ar agradável ao barulho crepitante da lenha na lareira e do borbulhar da sopa na caldeira dependurada. A sopa requentada de ontem, e anteontem, e do dia anterior a todos os dias.
Mas nessa vila escura, de heróis obtusos nas ruas e lâmpadas cansadas de iluminar, nesse lugarejo próximo ao mar rumorejante e em que a umidade era barrada em todas as casas, havia uma única casa em que a umidade fora permitida fazer morada em uma única noite azulada. Depois desse dia, o mar parou de chocar-se contra as rochas, as luzes iluminaram mesmo o dia e as mentes, todas elas, tornaram-se capazes de enxergar e enxergaram. Foi assim o dia em que as solidões se acharam e dormiram abraçadas.
Curvada sobre o próprio corpo, D. Argêntea remexia o caldo groso da sopa na lareira quando ouviu o ruído pela primeira vez. Era um som estranho, como nunca nenhum som havia sido na vila. Era apenas um ruído, mas invadiu-lhe os poros, e o sangue, e as células, e tomou-a de tal modo que deixou cair no chão seu corpo velho e cansado e gargalhou até o amanhecer. Mesmo velho e cansado, o corpo da D. Argêntea, caído no chão não sentiu dores, não fraturou-se. A bem da verdade, remoçou um quarto de século em virtude do tombo que sacudiu-lhe as poeiras.
Sr. Crisântemo já estava dormindo na cama de viúvo. Sonhava novamente com a falecida esposa, D. Perpétua, tão querida. Não foi capaz de ouvir nenhum dos ruídos, mas acordou no dia seguinte sem compreender como o sonho triste, fúnebre e recorrente, através do qual revia todas as noites os últimos momentos ao lado do corpo gelado e endurecido de Perpétua, tornou-se um sonho dionisíaco em que ambos partiam para Galápagos para uma nova lua de mel. Mais espantoso ainda foi notar que seu corpo, já há muito descansado, voltara a dar sinais da antiga virilidade e acordara com a genitália intumescida pelo sonho envolvente e molhado.
Foi entre a casa de Sr. Crisântemo e D. Argêntea que a solidão de Rebeca e do homem se encontraram e dormiram abraçadas e fizeram um ruído que mudou o pequeno mundo da vila. Ao acordar, cada habitante, criança ou idoso, tinha sua história de uma noite inesquecível para contar. Era tão inesquecível a noite que o corpo de Rebeca, desfalecido no chão, só seria encontrado três meses depois, ainda intacto e sem qualquer sinais de putrefação, tendo sido levado para a igrejinha local e velado por sete dias e sete noites, quando foi enterrado com toda a pompa que uma santa merece. Mesmo sem saber o que havia acontecido ao certo, mesmo havendo olvidado o corpo da jovem Rebeca por tanto tempo, as mentes oblíquas dos habitantes agora enxergavam e eles sabiam que tudo o que se sucedera devia-se a algo que aquela jovem havia feito numa noite fria e bolorenta, há três meses atrás.
O corpo do homem nunca fora encontrado. Não que tenha sido também ignorado por meses e sim porque não se tratava de homem. Se bem que, qualquer que o visse diria tratar-se de um rapaz bastante bem apessoado e muito distinto. Rebeca, se viva, diria exatamente estas palavras: "Era ele tudo por que sempre esperei", sem saber que ele nunca esperara por ela e que, se se encontraram aquela noite, não foi por nada mais que o acaso.
A umidade do mar nunca havia se dado a esses luxos de buscar entreter-se com os homens. Mas isso num tempo em que os homens preocupavam-se em agasalhar-se devidamente temerosos de que ela, a umidade, pudesse fazer-lhes algum mal. Assim, era notada, sentia-se presente. No seu contato com os homens, tinha o seu ser de umidade reafirmado a cada novo encontro. Até o dia em que o sol amareleceu e as mentes se enegreceram e os homens da vila começaram a fazer-se heróis da noite e ousavam sair à rua já bem tarde, cortando o vento. A partir desse dia, a umidade começou a não passar de parte de todo aquele cenário, acostumados que estavam os homens a ela.
Rebeca era moça frágil. No dia em que lhe descera pela primeira vez o sangue, sua mãe lhe dissera que não deveria sequer pensar em engravidar de homem. E se quiser ter filhos, pensou Rebeca. Se tiver que engravidar, que seja do espírito santo, respondeu a mãe antes mesmo que a jovem fosse capaz de lhe fazer a pergunta. O corpo esguio, a pele alva. As veias podiam ser notadas em cada canto do corpo. Seu corpo, de onde eu sempre o via, me parecia a solidão, um azul pálido. Este azul conheceu todos os males de pele que a vila já travara conhecimento: acne, angiomas, brotoeja, sarampo, rubéola, catapora, dermatite e até mesmo um pequeno carcinoma que, como todas as outras doenças, desaparecera sem deixar rastro.
Do mesmo modo, sofrera de males do coração, do fígado, pulmão, pâncreas, rins, pernas, braços, cabeça, estômago e de qualquer outra parte do corpo a que um mal possa acometer. Curou-se sempre com a ajuda das ervas de D. Neguinha, a benzedeira da vila, e com as orações de sua mãe, falecida quatro anos antes deste dia memorável em que o mundo da vila mudou.
A constituição frágil de Rebeca fora também a culpada pela paixão fulminante por que se vira tomada quando viu Pedro Villasboas pela primeira vez, sem saber que nunca, nem sequer um só dia de sua vida, seria notada pelo rapaz. Nem por ele, nem por qualquer outro, a despeito de seus contornos suaves, seus seios já em crescimento, dos olhos verde-água, dos cabelos castanhos escorrendo-lhe pelos ombros e pelas costas como água de cachoeira. Sobre Rebeca, pendia a solidão como sina única. Não fora notada pelo jovem Villasboas nem quando, menos por descuido do que por vontade própria, deixou-o ver aquilo que tinha de mais precioso, sua mãe lhe dissera: as coxas bem arrematadas de mulher.
Passou por toda a adolescência à espera de seu príncipe encantado, que poderia bem ser Pedro ou qualquer outro. O príncipe esperado lhe chegou às avessas em seu aniversário de quinze anos: num cavalo negro, vestindo branco e trazendo-lhe uma má notícia. Era Dr. Parmênides, o médico da vila. Viera visitá-la, como de costume, em virtude da já sabida fragilidade da moça, e por fim disse-lhe: "Pequenita, me perdoe! Não sou dado a esconder os males dos bons. Conheces bem alguns males. Já os tivera bastante. Mas este de que vou te falar é novo para ti e requer cuidado...". E foi assim que soube que teria que passar o resto dos dias trancada em casa, com todas as janelas e portas bem fechadas, podendo expor-se apenas ao sol do meio dia e por não mais que meia hora, três vezes por semana. A desobediência da regra tinha uma punição bem certeira, clara e súbita: a morte.
Dr. Parmênides nunca mais retornaria àquela casa. A dor da notícia que tivera que dar a uma jovem tão bela e tão encantadora fizera-o definhar com o passar dos dias. Quinze dias depois, Rebeca ouviria da mãe as circunstâncias da morte do doutor e sair de casa vestida de preto para o velório. Nem sequer pensara neste momento que, por ser o médico o único morador do vilarejo que as visitava, não receberia nunca mais visita alguma, até o dia da noite azulada e úmida.
Desde o dia em que fora noticiada a doença de Rebeca, nenhum habitante da vila pode encantar-se com a beleza da menina e a nenhum rapazote fora dada a benção de poder apaixonar-se por ela. Trancada em sua casa, ela passava os dias a ouvir as história lá de fora trazidas pela mãe todos os dias após sua ida ao mercado de peixes e a arrumar casta e lentamente cada canto da casa, esfregando-o, polindo-o, perfumando-o, ainda com esperanças de que, um dia, seu salvador chegaria, bateria à porta da frente e a levaria de súbito, do mesmo modo como à morte ela estava prometida.
O tempo passou e Rebeca fez-se mulher. Aos vinte e cinco anos, ainda saía ao meio-dia, três vezes por semana pela porta da frente, o coração acelerado ao cruzar a soleira, com a expectativa de vislumbrar alguém, quem quer que fosse - homem, mulher ou criança. Mas o que Sr. Parmênides esquecera de falar a menina - ela mesma esquecera de lembrar-se dos costumes locais quando recebeu o peso de diagnóstico - foi que ao meio-dia não havia viv’alma na rua. As mentes obtusas dos habitantes da vila lembravam-nos todos que pontualmente às onze e trinta da manhã, quando o sol não estava a pino mas as sombras já eram minguantes, deveriam entrar para suas casas para refestelarem-se com o banquete que lhes era oferecido: o arroz, a alface e os peixes. E, tendo fartado-se, suas mentes lembravam-lhes ainda que era necessário dormir por alguns instantes, de tal modo que só às duas e quinze da tarde começava a haver novo movimento pelas vielas. Portanto, as idas ansiosas de Rebeca ao sol do meio-dia lhe eram nada mais que uma ânsia de felicidade, frustrada a cada nova tentativa.
Não demorou para que a mãe falecesse. A loucura era muito comum na vila. O mar em sua robustez contra as rochas, acreditava-se, era capaz de endoidecer qualquer ser vivente. Ao completar sessenta e cinco anos, Florinda Palhares quis sentir a robustez do mar em seu corpo e lançou-se do penhasco da região nordeste do vilarejo, aquele de onde podia-se avistar o farol. Imaginava que a luz intermitente do farol iluminaria sua queda gloriosa e a elevaria aos céus tão logo seu corpo senil sentisse a onda batendo contra si ao invés de contra as rochas. O farol não foi, porém, mais do que testemunha da loucura de Florinda, cujo corpo nunca fora encontrado.
Imagina-se a dor de Rebeca ao não conseguir controlar a mãe, que não era de sair à noite. Por mais que tivesse tentado, Florinda insistiu que queria apenas sentir a brisa úmida do mar para sentir-se renovando as energias para mais um ano de idas ao mercado e de notícias contadas à filha. E partiu para não mais voltar, deixando a filha numa espera sem fim.
Os habitantes do vilarejo notaram a ausência de Florinda, mas nunca passaram para perguntar o que havia. Os Palhares nunca foram de muitas amizades. Ao menos, por ser matéria desconhecida de Rebeca, não poderei dizer que a moça se arrependia de não ter amigos. Apesar da ânsia de ver gente, não sabia o que era a amizade.
Mais algum tempo se passou e suas noites e seus dias, e suas saídas breves à rua três vezes por semana, tornaram-se em uma dupla espera frustrada: a de ver quem quer que fosse e a de ver o corpo pequeno e fraco da mãe apontando em algum lugar que os olhos fossem capazes de alcançar.
Foi num dia de sol forte que Rebeca tomara uma decisão que mudaria sua vida medíocre. O esperado meio-dia chegara e, ao abrir a porta, sua vista embaçou-se com tanta claridade. Nenhuma nuvem havia no céu, nenhum pássaro também. O vapor subia das pedras que calçavam a ruela em que ficava o casebre da família Palhares, outrora uma das casas mais visadas do povoado por suas linhas arrojadas e pelas janelas cor de abóbora, desde já uma cor chamativa. Mal sabiam tais janelas que quedariam-se fechadas por bastantes anos, sendo abertas quatorze anos depois de terem sido cerradas em virtude do velório de Santa Rebeca. A partir desse dia, era-se possível ouvir o lamurio das dobradiças por terem que suportar o peso das abas de madeira colorida de laranja: as janelas nunca mais foram fechadas naquela casa findo o velório e iniciado um novo ciclo de glórias para a antiga residência dos Palhares, rebatizada pelos moradores transformados pelo acontecimento da noite azulada de “O Santuário da Solidão”.
Nesse dia de sol forte, Rebeca deixou seu coração extasiar-se com o que via. A claridade era tanta que invadiu-lhe o corpo e a cabeça e adentrou-lhe o ser de supetão. Sentiu-se viva! Viva como há muito não se sentia! Pela primeira vez em doze anos, pois agora ela já contava seus vinte e sete, sentiu a vida pulsar em seu pulso e quase esqueceu-se do que Dr. Parmênides lhe dissera há tempos: queria sair pelas ruas, queria falar com as gentes escondidas nas casas para a ciesta, queria correr pelos campos ao sul e ver o mar ao norte. O grande mar! Há tanto tempo não o via! Queria mergulhar o corpo jovem e enclausurado naquelas águas salgadas e geladas que, sabia ela, enregelavam as ruas da cidade com sua umidade sumarenta todas as noites. E queria poder sentir as noites, ver as noites, ela cuja vida era já uma noite só.
Súbito, ergueu a barra da saia com as duas mãos, uma de cada lado da cintura, recuou alguns passos e deixou o coração selvagem cruzar a soleira da porta. Nesse exato instante, o céu se fechou em nuvens e grossas gotas começaram a cair por sobre os cabelos de Rebeca. Não compreendendo o que se passara, ela olhava para o céu com ar inquisidor. De onde vieram as nuvens? De onde veio a chuva? Era o céu que se fechava para ela. Era o sol que, como todos, não queria vê-la. Foi neste dia de sol e chuva repetina, de um frustrada ânsia por felicidade abandonada e rapidamente readquirida, que tomou uma decisão: mesmo podendo sair a cada três dias por meia hora, mesmo sendo permitido a ela ver o sol e o mundo por alguns instantes, ficaria em casa para sempre. Foi neste dia em que Rebeca encontrou e aceitou - de uma só vez - a solidão como seu único destino.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

É que isso me incomoda às vezes... Esse vazio, sabe? Acho que você me entende. Ou talvez não entenda mesmo. Mas o vazio depois é maior que o vazio de antes.

Parece com aquilo de quando a gente tem fome. A gente come, come, come. E tempos depois está lá o mesmo vazio, tomando tudo.

A relação com a comida deveria ser diferente do tipo de relação que estou falando. Mas não é. Por vezes é pior, por vezes me sinto mais como qualquer utensílio, qualquer instrumento.

O homem moderno desaprendeu como se relaciona com pessoas. É diferente de como se relaciona com as coisas. Mas numa sociedade de consumo, em que o que importa não é quanto você tem, e sim o quanto você pode ter, quantas vezes você pode trocar o mesmo produto, o mesmo acabou valendo para as pessoas.

Não importa se se tem 20 celulares. O que importa é: qual a sua capacidade de seguir o ritmo do lançamento de novos modelos? Quantas vezes em um ano você pode descartar seu aparelinho antigo e comprar um novo, que logo será trocado novamente e assim por diante?

Contava, antigamente, o respeito pelo produto em si. Uma tevê durava anos na casa de uma família. Mesmo capenga, ela era mantida, a despeito dos novos modelos. Atualmente, se não se troca a tevê de tempos em tempos, sim, você está fora da lógica.

Esse modo de relação nos é tão comum que, para muitos, acabou virando o único modo de estabelecer uma troca com o mundo que o cerca. Não importa um relacionamento em que se tem "a sorte de um amor tranquilo", mas pequenas relações, tão descartáveis quanto os produtos.

Nessas relações, não cabe o ligar-se compromissado e "definitivo" com quem se está. A regra é a conexão: hoje estamos juntos, amanhã não estamos mais. Conectamos e desconectamos nossos sentimentos (isso apenas se eles conseguiram estar envolvidos na situação, o que muitas vezes nem chega a ocorrer) como se desconectam cabos para ligar o novo aparelho de DVD à tevê recém trocada.

Os encontros passam a ser, então, encarados como episódios de um programa de tevê. NOtaram como os programas de tevê em geral perderam a velha fórmula da continuidade. As relações viram um grande seriado, como Friends: assista o episódio que quiser, quando quiser, sem compromisso com o episódio seguinte. Aliás, pensar que haverá um episódio seguinte já estar funcionando errado dentro da nova lógica.

Enfim, isso às vezes incomoda. Parece que as relações se esvaziaram mais. Num começo, pensei, essa seria a possibilidade para o preenchimento absoluto, uma vez que todos estão disponíveis, assim como você. Mas esse novo modo de relação apenas reafirma o seu vazio... Após cada novo episódio.

O homem moderno, na busca de uma solução para os seus problemas, acabou criando outros... E este outro problema, parece ter saído completamente do controle.