Google

sexta-feira, 25 de abril de 2008

O que não se define

Ou De uma longa espera interrompida
Ou O que se espera é agora
Ou De quando Olfodor sentiu


Então o amor era isso que não se define. Isso que nunca se define. Pois que sentia amor e sentia medo. E sentia amor e sentia saudade. E sentia amor e sentia pressa. O amor era carregado de sentimentos e sensações. Vinha acompanhado de uma ânsia de futuro que o acorrentava ao presente. Vinha acompanhado de um carrilhão de passado que o abandonava na estação do momento. O amor era o agora.
Sempre pensara que o amor era coisa que vinha com o tempo. Só os velhos amores amavam. Passara a vida à espera de uma velhice amorenta que nunca chegava. Mas era novo e pensava que a velhice amorenta ainda demoraria. O amor era, então, uma longa e certeira espera, posto que sentia em si o passar lento dos anos.
Apesar da esperança certeira de uma velhice que viria e que traria consigo o amor, Olfodor começou a desacreditar em coisas de paixão. Calafrios era o que sentia ao passar da brisa modorrenta de um verão carioca. Palpitações seriam apenas o resultado do medo de andar sozinho pela cidade grande. Para uma mente cartesiana, para cada coisa, sua causa. O amor seria, então, uma série de eventos que nunca viria. Que nunca havia vindo.
Mas o nunca, e o havia, e o vindo, falam, reunidos, de uma coisa que era mas que já não é. Pois que um dia Olfodor encontrou-se com o amor. Então, teve que admitir para si que ele, o amor, era bem mais simples, leve e possível do que ele imaginava. E ainda jovem, Olfodor foi capaz de sentir o amor.
Foi assim que terminou uma longa espera e o amor era isso que não se definia, mas que ele sentia: agora.

terça-feira, 22 de abril de 2008

A felicidade era, sim, minha!

"É quando as emoções viram luz, e sombras e sons, movimentos
E o mundo todo vira nós dois"

É que, sim, eu vi um pássaro verde passando veloz diante de meus olhos numa manhã clara de sábado. Logo entendi o sinal: era a felicidade que eu tanto havia pedido e que viria com tantos adicionais que nem eu mesmo era capaz de imaginar que existiam para incluir no pedido.
Desde então, o céu da cidade, mesmo nublado, me parecia de um azul claro e límpido, como só as águas de um mar calmo que eu ainda não conheço.
Alguma coisa deveria ser feita disso, eu sabia. Era uma felicidade que clamava por ser gritada. Em mim, senti revoluções de sóis e planetas que nem nunca estiveram no meu mapa. E senti um ímpeto de correr até o ponto mais alto da cidade, de onde a felicidade seria gritada e poderia ser ouvida por todos.
Esta felicidade é tão minha e tão estranha a mim que ainda penso se o tal pássaro passou para mim ou se eu é que roubei a felicidade que ele levava para alguém. Mas é que vendo o pássaro, vi o rapaz ao meu lado e... Ah! A felicidade era, sim, minha!

sábado, 19 de abril de 2008

Clarice 5

Escrever sobre Clarice é escrever sobre uma inesperada e dolorida ânsia de felicidade. Escrever sobre Clarice é lidar com o incontrolável de mim, que sou todo controle. Porque ela, sendo eu, me escapa. E eu, sendo eu, me escapo. Clarice é um escapismo. Clarice é uma catarse e escrever sobre ela é como escrever sobre mim, mas ao contrário. Posso olhar a vida de Clarice à quilômetros de distância, ao passo que minha vida olho de dentro. Escrever sobre Clarice é lidar com minha dor nela.

Estou apaixonado por Clarice e Clarice está apaixonada pela vida. A dor que sentira àquela noite depois do cinema acordara Clarice para a vida. Agora a moça vive. Tem algo pulsando em Clarice e este algo é a própria vida. Esta vida agora pulsa em mim, mas queria que não pulsasse. Queria libertar-me de Clarice e a liberdade é logo ali, no ponto final de cada parágrafo. Mas eles recomeçam, os parágrafos. Sempre recomeçam.

Pois que Clarice conhece a solidão e a dor da vida, mas não conhece o que é a beleza. É isso que me faz escrever sobre ela. Tenho ainda a esperança de ofertar a beleza à Clarice. Penso em plantar uma árvore na frente de sua casa e quando ela acordar terá uma surpresa. A beleza da vida cantando nos galhos, os pássaros. Penso em desenhar um sol forte por detrás da árvore e a janela de Clarice será um quadro e será impossível não ver a beleza, mas Clarice é cega. A dor e solidão a cegaram.

Sinto que mesmo que colocasse a beleza diante de Clarice ela não será capaz de reconhecer. O que fazer para salvá-la? Salvar Clarice é minha salvação e salvar é difícil. Trabalho árduo o de salvar personagem decaído. É que não gosto de me intrometer na vida de personagens. Da última vez que fiz isso, Clarice conheceu Cláudio e acabou chorando a dor em sua cama no final de um domingo. Eu mesmo tive que chorar minha dor, que a dor de Clarice é também minha. Tenho medo de sentir novamente a culpa por ofertá-la um caminho, que, como caminho, é caminhada. Só oferecerei agora a Clarice o que for caminho caminhado, caminho sabido, caminho certo, que ao menos terei como lidar com as dores por poder antecipá-las. Quem sabe não possa mesmo acalmar Clarice e fazer-lhe um carinho em algum momento mais pesado que já saberei por antecipação? E quem sabe no caminho Clarice não veja a beleza?


Não posso controlar o mundo que cerca Clarice, tampouco. Nisso é que moram os desacertos do caminho certo. Por mais que eu desenhe e traceje e planeje, algo se coloca no percurso de modo tão forte e intenso que é impossível que eu dê jeito apenas com as palavras. Tenho, então, que aceitar meu papel e apenas escrever. Mas não vou escrever sobre a realidade. Não vou contar os fatos, que eles me cansam. Vou apenas deixar Clarice passar por mim. E ela passa:

Escrevo sobre a noite em que Clarice viu diante de si a beleza. Clarice, que era cega, foi capaz de ver a beleza. Com os olhos viu a beleza e foi capaz de sentir a beleza. E sentindo a beleza, foi capaz de dormir com ela. E acordando, levou-a consigo para sua casa e agora caminha com ela pelas ruas da cidade e tudo o que fala é beleza. E tudo o que faz é beleza. O mundo transmutou-se em belezas várias e Clarice até deu esmola para o mendigo.

A noite em que Clarice viu a beleza e sentiu a beleza foi uma noite de vontade de chorar. Clarice sentira vontade de chorar diversas vezes aquela noite, como quando ele sentou-se diante dela e ela o olhou nos olhos. Sentiu-se tão profundamente tocada naquele momento, a chama da vela tremulando, os olhos dele no dela e as mãos dela nas dele, que sentiu vontade de chorar enquanto pensava que aquela havia sido a coisa mais bonita que já lhe haviam feito na vida. E não pensou em mais nada aquela noite que não fossem bonitezas como aquela que estava vivendo naquele exato instante.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Clarice 4

Esta é a verdadeira continuação da história de Clarice. A parte 3 fica como a incapacidade do autor, ansioso, de terminar seu texto, cedendo à necessidade de escrever algo. O texto sobre Clarice, contudo, acho que não terminou e vem uma parte 5 aí... Quero logo acabar com isso, porque, como o autor do texto, eu, Rodolfo, também acho que estou me apaixonando... Tanto por Clarice como pelo autor dela.
A dor de Clarice
Ou Sobre como um autor pode intervir
Ou Da paixão concreta e incompreensível
Ou "Filme triste que me fez chorar"
Ou Ai Clarice, para quê?!
Ser autor é um fardo. Ser autor é minha cruz. E Clarice é minha cruz desde quando fui eleito autor dela. Ou fiz-me autor dela. Sinto-me responsável por Clarice. Sou sua mãe. Sou seu pai. Sou seu único irmão e ela é só no mundo. Decerto que tem Alex, mas isso não lhe basta. As coisas, quando nos bastam, não necessitam de escamoteamentos. Não temos medo do que nos basta, porque o bastar, mesmo amedrontador, é reconfortante. Como autor, temo a falta de controle que tenho sobre Clarice. A vejo quando ela já foi. Quando ela já existiu. É então que a escrevo: quando o leite já for derramado e é tardio qualquer lamento. Alex seria um lamento, mas agora é um fato. Preciso escamotear os fatos de Clarice. Escondo a verdade dele e sobre ela. Deixo-a pensar no ônibus, a caminho da casa de seus pais, deixo-a a pensar em Alex. Clarice não sabe ainda que Alex não existe. Só sabe que ele mora longe e isso não fui eu que inventei. Pudera eu ter inventado isso tudo e Alex, de fato, não existiria e Clarice seria uma moça fadada a amar idéias. Mas, certo, devo admitir que Alex existe, mas não com a proximidade com que permito que Clarice pense nele. Decerto não há muito que fazer. Se sou autor de Clarice e ela é parte da cruz que carrego, isso se deve exatamente aos limites que tenho como autor dela. Não posso chegar para Clarice e dizer-lhe: “Querida, Alex é outro Felipe. Alex é uma idéia. Perco um segundo meu olhar sobre você e você está diante da tela daquele computador sorrindo como boba. Perco um segundo e lá está você apaixonada por outro que vive distante.”. Pois Alex mora longe e a ida de Clarice para encontrá-lo custou-lhe todas as suas economias. Eu tenho economias, mas não emprestarei à Clarice nunca, por mais que alguém reclame e fale de minha avareza. Não se trata de avareza. Trata-se, mais que tudo (e digo mais que tudo, pois que pode haver um tanto de avareza nisso), trata-se de deixar que Clarice quebre a cabeça mais uma vez sozinha. Quero vê-la aprender alguma coisa enquanto a acompanho. “Clarice! Cuidado!”, eu poderia gritar. Mas de quê me valeria se eu não sou ela e se ela segue seu caminho às próprias custas. Ir à Portugal ver Alex custou-lhe um ano e meio de serviço. Inclusive, mas isso ela nunca contaria a ninguém, ela quebrou seu porquinho roxo. Aquele que ficava ao lado de sua cama, no criado mudo. Mesmo o criado, mudo, tentou dizer a Clarice para não cometer o que cometeria com aquele martelo, presente de seu pai. Contudo, era mudo o coitado e ficou afoito. Creio que nunca ficou tão desejoso de falar. Ser autor é meu fardo e vejo Clarice amando, mais uma vez, uma idéia. Tem cruzes que pesam mais que as outras. Já escrevi sobre muitas gentes, sobre mim inclusive, mas Clarice é o maior peso. Nem eu sou um fardo tão grande para mim. Clarice me tira o sono e todas as noites, antes de dormir, perco uma ou duas horas escrevendo sobre ela. Não quero mais falar de Clarice. Quero falar de mim.
Meu nome é... Qual é mesmo meu nome? Ai, que esqueci-me de mim e vejo Clarice sentada em frente ao seu computador novamente. Espera o infante... Que não vem. Espera o infante que não chega, que não chega, que nunca chega. Deus! Como Clarice é doente! Pudera eu, mandaria um médico para a vida de Clarice! Pudera eu e tudo se resolveria deste modo. Pois que agora, aliás, ela anda tendo surtos febris e não sabe do que se trata. Pois eu digo do que se trata mais uma vez, se alguém o esqueceu: Clarice ama, mais uma vez, uma idéia. Se encontro Alex, o destruo com um ‘backspace’, o deleto de meu texto. Isso não seria deletá-lo da vida de Clarice, entretanto. Melhor prender-me aos fatos e, se puder, coloco alguém que ajude Clarice, tão cegueta, a caminhar. Clarice precisa de muletas.
Clarice cansa de sua espera teimosa. Desliga o computador e vai dormir. Acho que farei o mesmo. Tenho vertigens junto com Clarice, que está doente. E nenhum remédio me cura, porque sofre de crise de personagem mal resolvido. Não há remédios para dores de autor. Mesmo que tivessem, talvez não me bastassem. Clarice é um pé no meu saco. Aquela dor que demora e vem lenta e lancinante. Aquela dor que se anuncia aguda e sobe rascante. Nota para um momento posterior: preciso matar Clarice antes que ela me mate. Billie Holliday toca na vitrola. Se Clarice ouvisse jazz, ela seria diferente. A música liberta almas presas. Clarice tem uma alma presa ao destino de apaixonar-se pelos errados, pelos que não existem: pelas idéias. A vida de Clarice carece de som e todo esse texto é monocórdico. Vou adicionar som ao texto. Leiam-no ouvindo um bom jazz e vejam se cabe. Escrevo-o ouvindo um bom jazz. Clarice dorme diante de meus olhos. Veja! Como dorme pesado. Aqueles olhos, que agora olham para dentro, não enxergam. No sonho de Clarice, alguma coisa sobre pássaros aprisionados mas que se sentem livres na gaiola. A vida de Clarice é uma jaula, estando ela presa a paixões irreais. Clarice não vai ao cinema e não ouve música. Pudesse ela ver um Allen e teria as duas coisas: jazz e um despetar. Talvez chorasse mais três horas e quinze minutos ao compreender que, mesmo existindo, lá longe, em Portugal, Alex é mais uma idéia. Se puder, quando ela acordar, coloco música em seus ouvidos. Isso seria mais que acordar: seria despertar Clarice para a vida.
Clarice, desperta, é mais interessante que Clarice dormindo. Esta me dá sono, aquela, medo. Tenho medo de Clarice. Tenho medo de que Clarice.
Vamos, querida! Ande pela cidade e ouça a música! Sim, tive que fazer algo que já há muita dor em tudo. Não vou matar Clarice. Pretendo salvá-la com uma música e um médico. Segue ela pela rua. Todos os dias, segue ela pelas mesmas ruas a caminho do trabalho. Até conhece as pessoas e pensa: “Agora me vem a passar aquele homem de camisa suja de poeira de obra”. Não sabia se era de obra, mas Clarice, minha história, era dada a criar, também, histórias. Melhor: ela cria estórias, eu conto a história de Clarice. Por sorte ela irá notar que naquela loja de velharias há hoje algo de diferente. Clarice tem nojo de velharias e quando sua avó era viva ela detestava os almoços de domingo, porque tinha que encarar aquela pele de papel que sua avó tinha. Não tenham raiva de Clarice. Ela nunca contou isso a ninguém e sempre foi algo que guardou tão bem para si que nem mesmo a avó notava e Clarice era sua neta predileta. A avó de Clarice já quis, por sinal, ser Clarice, até entender que só podia-se ser Clarice através de Clarice-ela-mesma. Ela, que sempre seguia para o trabalho de camisa branca e passava pelo mesmo caminho, chegava a evitar a porta da loja de antiguidades. Temia envelhecer tanto como, dizem as gentes, um pobre diabo teme a cruz. Mas hoje fico na torcida para que seja diferente. Personagens têm vida própria. Nós autores só fazemos torcida e, quando muito, pedimos a algum amigo que entre no caminho de nossos personagens e mude-os a vida. Pois liguei para o dono da loja de antiguidades e pedi que ele tocasse bem alto um disco da Nina Simone no gramofone na manhã do dia seguinte. Torço para que Clarice ouça aquelas notas e aquela voz densa. Clarice só não enxerga... Ou será que também já não ouve?
Pois que ouve! Pois que ouça! Vejo Clarice diminuido o passo. Parece tentar descobrir de onde vem aquela melodia agradável àquela hora da manhã. Espanta-se com o esdrúxulo da situação. Sempre passei por aqui e nunca houve música, pensa ela enquanto nota de onde saem as notas. Foi uma manobra arriscada fazer com que o som saísse justamente da loja que mais desagrada Clarice, mas isso é o que deria todo o tom de destino. Pessoa como Clarice crêem em destino. Pessoas como Clarice crêem apenas e são capazes de apaixonar-se por idéias, como Alex, que é uma idéia. E se Clarice não entrar na loja? Sua roupa branca, seu caminho. Tudo seria maculado. E ela perderia a visão confortante de todos os dias da senhora alimentando os gatos daquele parque no centro da cidade. Todo seu dia podia perder-se. Ela própria poderia ser que se perdesse de si e já não poderia falar de Clarice, esta que devagar conheço, mas sim de outra Clarice, uma que terei que novamente conhecer. Eu mesmo me arrisco agora. Salvar é correr o risco de perde-se. Tento salvar Clarice e corro o risco de perdê-la agora mesmo. Mas Clarice pára e reflete. Talvez devesse entrar para descobrir quem canta aquela música densa que a faz pensar em Alex. Tudo para Clarice é Alex. Decerto. Difícil ser diferente, porque pensa-se com idéias e Alex é idéia de Clarice. A música não a desperta, como pensei. Clarice não é cega por solidão ou pela paixão pela idéia. Clarice perdeu as vistas, os olhos, os nervos oculares e seu cérebro já não reconhece nada que não seja interno. O cérebro de Clarice fechou-se em si. E lá segue ela para descobrir quem canta a música que lhe lembra Alex.
“Senhor, bom dia! Quem...”. “Bom dia!”, interrompe o senhor. O rapaz ao fundo da loja, remexendo os discos, olha a moça que acabou de entrar. Clarice olha o chão poeirento da loja de Antiguidades. O senhor do balcão olha Clarice. Eu olho a todos e vejo Clarice emendar: “Quem canta esta música?”. O senhor do balcão cala-se. O rapaz no fundo da loja fala. Eu extasio-me. Ele não deveria estar lá. De fato, não o coloquei lá. Apenas a música é culpa minha, mas não o médico. Se o antecipei nesta história era apenas porque já sabia. Clarice vive e eu conto, já falei. Apesar de escrever como se tudo se passasse agora, a vida de Clarice já passou e ela tem filhos. Clarice cozinha todos os dias para seu esposo e não é mais sozinha. Tem o mesmo emprego e mesma roupa branca, mas já vai para o trabalho de carro, depois que deixa os filhos na escola. O mais velho quer ser doutor como o tio. Clarice não se casou com o médico que conhecemos, mas pela primeira vez se apaixonou por uma verdade, por uma presença real. O rapaz no fundo da loja, que é médico – já o sabemos -, responde: “Nina Simone. Veja cá o disco.”. Clarice é apenas cega, mas é capaz de ouvir. E é capaz de sentir. Não entendeu porquê, mas sentiu o peito pular. O coração acelerava. Ela continuava olhando o chão. Não tinha coragem, ainda, de encarar o rapaz. Nem o tinha visto ali, sequer. Aquela voz pareceu-lhe um trovão, vindo do céu, de algum lugar desconhecido. Clarice acreditava em espíritos.
Se me fosse permitido, eu juntaria os destinos de ambos. Mas destinos não se unem assim. Impossível unir o inexistente e destinos não existem. Clarice pode agora falar com o médico. Pode não falar com o médico. Pode falar com ele e nunca mais se esbarrarem na vida. Nada depende de mim. Apenas o modo como Clarice agirá é que dirá o que virá a acontecer. Em verdade, se as coisas fossem simples, apenas o modo como Clarice agirá é que dirá o que virá a acontecer. Mas as coisas não são tão simples pois que temos dois envolvidos e o modo como o médico agirá também será determinante, sabemos. Nada posso eu fazer. O encontro nem foi armado por mim, sequer.
Clarice caminha para o fundo da loja e quinze minutos depois de conversar com Cláudio, o médico, Clarice e ele caminham juntos pela rua no sentido contrário ao que ela seguia. “Posso usar seu telefone”, ela pergunta a ele que, minutos depois a ouve dizer: “Alô. Sim, Clarice. Acordei não me sentindo bem. Sim, não vou trabalhar hoje. Ok. Qualquer coisa estarei no telefone. Obrigada, viu?”. “Obrigada”, ela diz a Cláudio com um sorriso no rosto.
Sentam-se Clarice e Cláudio em um café. Vejam vocês que bonito: até o nome começa com as mesma três letras! Há que haver algo aí que Clarice entenda como destino, já que ela crê nessas coisas de destino, espíritos e amor.
Não quero ser estraga-prazeres. Tampouco quero criar expectativas tolas. Poderia continuar falando de Clarice e Cláudio e da paixão que irá surgir ali e das expectativas que Clarice irá criar neste mesmo dia, à tarde, em sua casa, enquanto pensa em Cláudio. Não quero, no entanto, que pensem que assim será tudo. Já o sabem. Clarice e Cláudio não ficarã juntos por muito tempo. Um dia, Cláudio ficará de ligar para Clarice para combinar de irem ao cinema. Ele não irá ligar, ela o sente. Ele não liga. Ele nunca mais liga e some da vida de Clarice. Clarice não tem sorte com estas coisas, é o que ela pensa, mas ainda irá morrer velhinha, após ter visto morrer seu último filho. Seria muito pesado para a Sra. Clarice continuar vivendo sozinha, sem ao menos a companhia de um de seus filhos, ela, que amargou uma existência de solidão. A solidão de Clarice foi a paixão que ela carregou por toda sua vida. Quero não ter que deixar ninguém, nem mesmo eu, a espera desse fim, que pode mesmo nunca vir. Minhas pernas bambeiam ao peso de Clarice e Deus sabe como quero suportar este peso por mais algum tempo, mas tem-me sido difícil. Também não quero abandonar Clarice. Ela está sentada diante de Cláudio em um café agora. É um café agradável próximo à casa de nossa moça. Clarice adora café, apesar de não gostar de café. Especialmente aquele, em meio a um parque cheio de gramíneas verdes, passeios encantadores, patos e seus filhotes no lago e famílias sorridentes. Vejo aquela família e fico aliviado em pensar que Clarice ainda terá a sua um dia, bem como aquelas, e levará seus filhos para brincarem no parquinho desse mesmo jardim. Aí é que vejo Clarice sentada em frente a Cláudio olhando aquelas coisas todas e aquelas famílias e sentindo fundo em si a dor por não saber se um dirá terá tudo aquilo ali, que tanto deseja. Penso que poderia soprar-lhe no ouvido a verdade: “Calma, mocinha, que tudo se arranjará com o tempo”, mas a angústia de Clarice lhe será necessária. Clarice precisa crescer. É como uma menina boboca que chama suas bonecas pelo nome e canta parabéns para elas e trata-as como filhas. Clarice vive neste mundo infantil em que tudo são possibilidades e histórias arranjadas em sua cabeça. Entretanto, diante de Cláudio, nada são estas histórias para Clarice. Esta é a primeira vez que a vejo viver o momento. Apenas vive o momento em qu e olha Cláudio enquanto o ouve falar de como é complicado ter filhos hoje em dia. Apesar de tudo, diz ele querer ter filhos e Clarice fala de como ter uma família já é importante para ela. Ai! Como amo Clarice! Queria poder dá-las todos esses filhos que ela virá a ter um dia. Autor e Clarice, casados. Mas sei que a matéria de que sou feito é diferente da dela. Eu sou de verdade. Clarice é de palavras e irá perder-se em alguma estante de alguma biblioteca, mesmo com sua família já formada e já findada, mesmo com sua vida já vivida e seu corpo enterrado.
Como autor de Clarice, declaro que tudo está perto do fim. Perdi o gosto por ela. Não faço aquilo que não gosto. Tenho medo de perder-me de mim e, como Clarice, viver pelas idéias. Hoje acordei pensando em Clarice e quero pensar em mim e em meu dia quando acordo. Meu peito aperta e é estreito. Tenho vontade de chorar à constatação de que, aos poucos, me desapaixono de Clarice. Perdi o interesse por ela. Escrevo pelo compromisso que tenho com o final desta escrita, mas chegada ao fim, como tudo que chega ao fim, estará terminada a saga de Clarice. Nada há que a torne especial. Sua solidão me parece tão banal. Que dor é acreditar que a solidão é banal. Nunca pensei que chegaria a este dia. Sinto sabor amargo da amargura em minha boca. Será que me apaixonei tanto por Clarice que tenho ciúmes dela, que agora olha Cláudio sem nunca ter me visto? Preciso de um espelho. Preciso gostar do que vejo no espelho quando o olho mais do que gosto de Clarice, que nunca me olho. E se olhasse, de nada adiantaria, pois Clarice não enxerga com os olhos. Clarice é cega das vistas e já as perdeu há muito tempo, pois que só enxerga com o coração. Quem vê com o coração, perde os olhos por desuso. O coração de Clarice é burro, ai coitadinha! Tão coitadinho que tenho pena de olhá-la assim, tão encantada e já me arrependo de ter posto aquela música em seu caminho. A paixão de Clarice pelas idéias era menos perigosa que a concretude. O concreto, por ser concreto, é duro demais para Clarice. Agora ela terá que lidar com medos reais e não fantasiá-los que os vive. Agora ela terá que viver com a angustia das possibilidades de que tudo dê certo, de que tudo fracasse, de que tudo dê certo, e fracasse... Como em uma roda gigante, como as ondas do mar. E o mar é Clarice. Ou Clarice é como o mar e como as ondas do mar. Foi olhando o mar que Clarice se deu conta de que poderia amar sem ser amada, mas será diante de Cláudio que ela irá correr o risco real. O risco real existe apenas no concreto. Não há riscos nas idéias e é por isso que escrevo: controlo os riscos. Um falso controle, como todos os controles. Indeterminada é a vida daqueles sobre quem escrevo. Tão indeterminada quanto a minha. Escrever é lidar com o indeterminado a cada nova frase. A cada novo paragrafo há um novo começo. Tenho medo de terminar esse parágrafo, pois não sei o que virá no seguinte. Se eu ao menos soubesse... Sei como sera a vida de Clarice por inteiro e até como ela morre. Não sei é como sera o próximo parágrafo. Um dia, se eu conseguir, desenvolvo um método. Sim, um método para controlar minha escrita e ter tudo bem planejado. Quantas linhas são necessárias para dez minutos de vida?
Dez minutos foi o tempo que durou a conversa de Clarice e Cláudio naquele café do parque. Dez minutos é o tempo que levou para Carlitos chegar ao ponto de ônibus e ver que tinha perdido a hora. Dez minutos é o tempo que leva para ler um capítulo curto de Machado de Assis. Dez minutos é o tempo que leva dez minutos. Eu mesmo fiquei dez minutos pensando no que se pode fazer em dez minutos, mas minuto é uma matéria muito ingrata, porque não se define. O minuto é como as moléculas. O minuto é como aquilo que se sabe e não se sabe e se sabe. O minuto é o tempo em que se vive e em que já se viveu. E dez minutos, para Clarice, foi o tempo que levou para que ela não pensasse em Alex por mais vários dias. Só veio a lembrar-se do rapaz quando Cláudio lhe contou muitos dias depois desse dia no café da viagem que tinha feito a Portugal. Clarice tinha ido a Portugal, mas precisou de alguns minutos para lembrar-se o porquê da viagem que custou-lhe as economias. Conhecer Alex custou a Clarice todas as suas economias. Ter conhecido Cláudio irá lhe custar o medo e o tempo de uma espera. O concreto é uma espera infinda. Só termina no fim, quando já não esperamos nada e nem por nada somos esperados. Nesse tempo, no fim, somos apenas uma lembrança na memória dos que ficam e que, como outrora nós, esperam. Clarice irá passar os dias com a cabeça na guilhotina e os minutos irão passar a conta-gotas. Agora seria possível ter alguém de verdade. Seria possível, também, perder alguém de verdade. Temo por Clarice! Temo que ela seja fraca, que não seja capaz dessa espera. Fosse Clarice mais teimosa e eu não precisaria temer, mas Clarice muda de paixões assim como as folhas caem num outono rigoroso, quando o vento é forte e balança as árvores. Mesmo sabendo que a espera, para Clarice, será uma grande dor, que será difícil para ela, ansiosa como só, quero que ela seja capaz de esperar. Talvez Cláudio não valha a pena. Talvez valha. Isso são questões que irão passar pela cabeça de Clarice e cada vez que ela esperar por uma ligação de Cláudio sem que o telefone toque. São questões várias que passarão pela cabeça de Clarice a cada e-mail enviado sem resposta imedita. Será que isso, algum dia, que essa relação com Cláudio irá dar em algo, ela pensará. Muito complicado para essas idéias submersas no medo e no tempo infindo de uma espera perceber que em algo tudo sempre dá.
O tempo da espera de Clarice foi o mesmo tempo em que eu, ansioso, aguardei por continuar o texto. Não consigo ficar muito tempo sem a escrita. Sou mais apaixonado pela escrita do que por Clarice. Sou mais apaixonado por essa cois que, de concreta, só tem a folha impressa em um livro. Clarice é minha idéia, mas em algum lugar existe e eu espero com ela um novo encontro com Cláudio. Decerto, que ao longo de sua espera Clarice esbarrou em outra concretudes, mas sempre com a raiva esperançosa de uma felicidade. Sempre pensando em Cláudio e em como queria que fosse ele o que estivesse ao seu lado aquela noite e não o outro, quem quer que o outro fosse.
Mas a espera terminou e mesmo depois de não ter aguentado e sucumbido a interromper o relato de Clarice para falar de um casal de velhinhos que eu vi no restaurante numa tarde de sábado, Cláudio ligou e volto a falar da vida da moça esperançosa.
Quero chorar Clarice. Quero chorar Clarice como se chora um cálica de vinho tomado em dores de amor. Quero chorar Clarice como quem chora silente a perda de um ente querido, entre a vergonha da saudade e a necessidade da expressão da própria dor. Clarice nunca será minha e nem sequer posso dividir com ela a dor que ela sente. Quero pegar a dor de Clarice com minha duas mãos fechadas em concha e tomá-la como uma água refrescante de um rio em uma tarde quente. E deixar a dor dela doer em mim, que sou mais forte. E deixar a dor dela me roer, que sou mais roído. Quero gritar a dor e a raiva de Clarice por ela, ela, que agora pensa em descer e abraçar o primeiro ser que lhe passar pela rua. Agora Clarice pensa em como teria sido bom não ter dado seus gatos para o vizinho do antigo apartamento. Ela já teve gatos, mas não contei essa parte. Não contei quase parte alguma. Contando para Clarice seu futuro, quem sabe sua dor não diminui? mas a dor é de agora e não do futuro que a aguarda. É preciso deixar a dor de Clarice doar. Que ela doa sozinha com a moça. A dor de Clarice é de raiva de carinho não dado. É de raiva de abraçado retesado e de beijo guardado numa boca louca por um desses beijos. A raiva de Clarice é a raiva do toque sem sentido e bem sentido numa sessão escura de cinema, quando os personagens na tela se beijavam e ela pensava “quero beijar este Cláudio que agora segura minha mão”. Mas não passou disso, de um segurar de mãos. E de um abraço rápido em meio ao trânsito caótico da cidade numa tarde de domingo quando todos retornam da praia. Ai! Clarice, sinto sua dor doer em mim e sinto necessidade de gritar a dor que me dói. Ai! Querida, como você consegue guardar tanta dor em si?! que eu, eu que sou mais forte e vivido e viado, eu que já sofri de tudo nessa vida, não aguento e deixo minhas lágrimas descerem enquanto escrevo sobre ti. Se eu te dissesse para esquecê-lo, isso bastaria? como basta um aceno pruma mãe na soleira da porta a ver o filho ir embora para que ela saiba que ele segue feliz seu caminho. Não, sei que não e essa, além da sua, é outra dor que sinto. Minha lágrima corre quente pelo meu rosto enquanto vejo você segurar a sua bem firme. Quero alfinetar Clarice bem forte para que ela chore ao menos pela dor da alfinetada. Cláudio é nada mais que uma forte alfinetada e Clarice segura o choro raivoso do abraço não dado e do beijo reprimido. E me perco, confuso, nos sentimentos de Clarice, mas já me explico: é que a dor é de agora e o que houve é de antes do agora. O que houve já passou e Clarice não chora a dor que sente agora. O não choro dela me incomoda! Há tanto dor em Clarice...
Cláudio não ligaria mais, ela havia se certificado. Fazia dias que ele não lhe dirigia a palavra e nenhum e-mail da moça era respondido. Clarice já havia se certificado de muitas coisas em sua vida e essa era mais uma que, como as outras, lhe saia errado. Hoje vi uma família noutro restaurante e o pai ensinava a filha como ler corretamente “plenário”, não é “plenârio”, dizia ele, “se tem acentinho é ‘plenário’”. Se a certeza de Clarice fosse tão certa como a certeza de um acento numa palavra medíocre, lhe ensinaria a ler, mas a certeza de Clarice é o que há de mais incerto. A certeza de Clarice é como um pêndulo pesado construído com uma linha podre. Se balança, cai e a certeza dela caiu. Pudesse eu, tomaria a certeza dela nas mãos e a restituiria dessa certeza de que Cláudio nunca mais ligará, mas não posso, sei que não posso e que não devo me intrometer. A certeza de Clarice oscilava como o bêbado na rua. A certeza de Clarice era tão incerta que ela mesma se pegava olhando para o telefone à espera de um contato de Cláudio. Que nunca vinha. Que nunca vinha. Que veio: “Clarice? Sou eu, Cláudio... Sim, bem... E você? Bem, não estou trabalhando. Na verdade, estava pensando em ir ao cinema. Você também?! Que ótimo. Então, às sete e cinquenta... Pode ser?”. Ela disse que sim. Disse ansiosamente que sim. Era como se não fosse ter mais tempo para dizer aquele sim nunca mais. Cuspiu o sim, escarrou o sim, pensou o sim mesmo depois de tê-lo dito e apressou-se num banho e num arrumar-se para que conseguisse chegar ao cinema a tempo. Cláudio poderia ter ido buscá-la. Ele tinha carro e ela, mulherzinha que era, nunca tivera a coragem de pegar o volante. Pegou mesmo um táxi e deixou seu coração exultante e fraco bater aceleradamente a cada virada do taxímetro. Não se importaria em pagar caro por aquela corrida. Não se importaria com nada, conquanto estivesse bonita. Ao longo do caminho, curto, ajeitou seu cabelo e sua blusa umas tantas vezes, incontáveis vezes.
Quando chegou ao cinema, seus olhos procuravam Cláudio e ela tinha um sorriso estampado no rosto. O mesmo sorriso leve e bobo que vi em seus lábios quando ela conheceu Alex e falou com ele pela primeira vez. Mas, dessa vez, vi o sorriso desfazendo-se rapidamente. Ela, mesmo tendo procurando esmiuçadamente cada canto, cada sofá em que espectadores aguardavam o início de mais uma sessão, cada mesa do café em que as pessoas conversavam sobre o filme que haviam acabado de assistir, mesmo tendo procurado tanto, Clarice não encontrou Cláudio.
“Alô? Cláudio... Onde você está que não te encontro? Certo... Então posso comprar nossos ingressos?”. Ele estava estacionando o carro, ele disse. Clarice entrou na fila e comprou dois ingressos. Cláudio chegou e acompanhou o final da compra ao lado dela e tirou o dinheiro de sua carteira enquanto andavam os dois para a sala em que veriam aquela comédia romântica cheia de drama e dor. Cláudio pagou Clarice pelos ingressos. Melhor seria se a tivesse pago pela esperança criada e frustrada daquela noite. Eu mesmo acho bom olhar Clarice com Cláudio, o problema mesmo é o depois, que é o agora, em que olho Clarice sozinha em sua cama a chorar. Não que tenha havido qualquer problema ao longo da sessão de cinema. O problema é, pelo contrário, não ter havido nada que a chateasse.
O filme era uma bonita história de amor. Cheia de dores. Dores que fizeram Clarice pensar se deveria ou não chorar ao lado de Cláudio. Era a segunda vez que o via o talvez seu choro o assustasse. Clarice pensava muito antes de qualquer ato. Sentiu o corpo de Cláudio próximo ao seu ao longo de toda a sessão e a cada esbarrão dele nela, a cada vez que ele aproximava seu corpo ao dela, ela pensava o que ele poderia querer dizer com tal aproximação. Será que queria que ela se aproximasse? Ou estava apenas se ajeitando na cadeira? Clarice em coragem, contudo. É impossível entender o que tanta dor é capaz de dar aos humanos. A dor de Clarice a dera, ao longo da vida, a coragem de arriscar um carinho. Ela deixou que a ponta de seus dedos tocassem sutil e imperceptivelmente os braços de Cláudio. Ninguem no cinema diria ter visto qualquer coisa além dos braços cruzados de Clarice no meio da sessão, mas a ponta dos dedos dela tocavam o braço de Cláudio, que havia antes encostado a perna direita dele na perna esquerda dela. Aquele toque fez com que o coração de Clarice acelera-se e ela respirou profundamente. Até o final da sessão, ela e Cláudio, então, teriam trocado tantos carinhos que tudo o que Clarice poderia desejar era lhe dar todo o carinho que lhe era possível. O filme terminou, as letras subiram, e Cláudio, por vontade própria, segurava as mãos de Clarice nas suas. Um toque leve na ponta dos dedos um do outro. Clarice sentia seu corpo pulsante. Clarice sentia uma vontade inconfundível em si. Clarice queria abraçar Cláudio e ter seu corpo tão próximo ao dele que não haveria mais Clarice e Cláudio, mas uma só coisa abraçada. Foi então que se levantaram e tomaram um café juntos enquanto falavam do filme. E saíram do cinema e Cláudio oferecera uma carona à Clarice.
Enquanto andava atrás de Cláudio até o carro dele, Clarice pensava no que seria feito daquela noite. Não queria dormir com Cláudio. O que sentia era mais como uma vontade esperançosa de dar a ele aquilo que tinha pulsante em si: todo o carinho de meses represado. Conversaram por todo o caminho até a casa de Clarice. Falaram de profissões, de trabalho, de causualidades, e Clarice pensava no presente que havia comprado para Cláudio. Sim, Clarice havia comprado um presente para Cláudio. Muito ela fizera nesse meio tempo entre um encontro e outro, mas não quero falar do que Clarice fez. Quero logo terminar o relato desta noite para acompanhar novamente o choro dolorido de Clarice em seu quarto. Pois que ela queria dar a Cláudio todo deu carinho, mas ele apenas a deixou na porta da casa dela, fez um carinho em suas pernas e disse que tinha que ir embora. Clarice perguntou se ele realmente não queria subir. Ele disse que precisava acordar cedo. Clarice pensou no que faria de todo aquele carinho que queria dar a ele. Ele olhou para a rua vazia e pensou em quanto tempo levaria para chegar até em casa. Clarice virou-se e o abraçou. Cláudio beijou o rosto de Clarice e disse que iriam se encontrar em breve. Amanhã ele teria um dia cheio, ele disse. Ela abriu a porta do carro, saiu, Cláudio deu a partida e rápido já dobrava a esquina. Clarice subiu as escadas de seu prédio e trancou-se em casa e em si.
Ai, Clarice! Queria te ajudar a compreender isso tudo! Sei que se sente como uma criança que ganhou o melhor presente na noite de natal, mas que viu seu presente tendo sido colocado numa estante alta e inalcançável. Pudesse eu e desceria o presente da estante. Pudesse eu e nunca teria pedido aquele senhor para tocar jazz em sua vitrola e você nunca teria conhecido Cláudio. Sinto-me culpado por sua dor. Queria poder tomar sua dor toda para mim ou te ofertar um abraço, você, que agora chora a vontade de abraçar alguém e de porder ofertar a alguém todo o carinho retesado por meses. Ai! Clarice! Fico aqui ao seu lado até vê-la dormir. Até vê-la dormir...

domingo, 13 de abril de 2008

Clarice 3

Personagens são como essas coisas que nunca morrem. Deus, santo, diabo. Personagens não morrem e Clarice não morre: ai que dó de mim! ai que dó de todos os que lêem sobre Clarice. Tenho tanta dó de mim, que não sou escritor, mas que sou o autor de Clarice. Não consigo livrar-me dela, livrar-me de mim. Eu e Clarice somos uma amálgama e meus olhos pesam de sono. O melhor é ir dormir a estas horas da noite, mas a vida é uma privada cheia de dejetos à espera de um jatinho refrescante de Pinho Bril limão (e isso seria perfeito). Há sempre a esperança da fuga, da mudança, da virada surpreendente, do descaminho que se caminha feliz. A vida é uma verdadeira ânsia de felicidade. De felicidade. De felicidade. Que nunca chega.
Clarice, meu peso. Clarice, minha vida. Quero livrar-me de ti por um instante que seja, eu, que me deixei apaixonar por tua imagem em mim mesmo. A idéia de Clarice pregou-se em mim como ferro em brasa e marcou-me fundo. Não há um só dia em que acorde sem que pense nela. Clarice é só pensamento.
Mas hoje quero falar do que Clarice não tem.
Saí para almoçar e deixei Clarice perdida em alguma página do meu caderno. NO restaurante, vi o amor. Era o amor e era o amor. Ambos eram o amor. E me deixei encantar por aquele casal de velhinhos sentados a mesa à minha frente. Ela, tão superior, tão jovial. É preciso ser jovial para ser belo e encantador? Ele tão senhor, tão senil, mas tão homem.
Mais que Clarice, ser um autor viado é uma dor para mim, pois que sei que nunca sentarei numa mesa com minha senhora para um almoço de domingo. Nem nunca irei receber cartas e telefonemas dos netos. E quem irá lembrar de mim e das brincadeiras de final de semana?
Ai, Clarice, lembra de mim! Peço... Sendo minha memória, que me deixe, ao menos, entrar na tua.