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sábado, 30 de junho de 2007

Do escuro

É do escuro que escrevo estas linhas. Bem de cá. Do escuro.
A dor esbraseia-me o peito. Arde. Torna-se difícil segurar e não deixá-las rolar. As lágrimas. É que insistem no limite entre o que há dentro e o que há fora e fazem força para sair. Querem-se ver, como tudo, livres de mim.
Queria também, como as lágrimas, poder livrar-me de mim. Não encontrei meios, que nem a morte me vale. Se morto, já não existo, mas quero livrar-me de mim em vida. Nessa vida em que já nem há unhas para que eu roa.
A dor. Mais como um incômodo. A felicidade dói. É como uma escada grande apoiada em um muro: a qualquer balanço, pode cair para trás e dói: a frustração. Tenho pouca resistência a esses tombos cotidianos.
A qualquer tombo, desisto. Sim, fácil dizer: pegue a escada, escore-a novamente no muro e galgue os degraus em mais uma tentativa. É que o medo de que caia novamente é maior. Não é para mim a felicidade.
Escrevendo, a dor se apacenta e parece nem ter estado por perto. Mas é que as lágrimas já me fugiram, todas as rebelditas que queriam escapar daqui. Há ainda algumas delas, mas prendo-as com força no fundo da garganta. Não é como um nó, assim como dizem, é mais como um pequeno depósito de lágrimas quentes. E as seguro, presas, dentro em mim.
É do escuro que escrevo estas linhas. A luz não vai bem em todos os momentos. E há sempre o dia. O maldito dia. Não há como escapar da luz em dias de escuridão. Da escuridão escrevo, mesmo com as luzes acesas, que a escuridão é de dentro.
Estou em um dia de avesso. Estou num dia em que o dentro está ao avesso. E escrevo sobre ele, que ele se mostra.
Tomo meu pequeno depósito de lágrimas quentes. Engulo-o à força. Sinto o incômodo passar pelo esôfago e bater forte, como fruta caída do pé, no estômago. O suco gástrico jorra e agora queima-me o esôfago, que duramente abrira passagem para o agrupamento de lágrimas engulidas. É ele que sofre agora junto a mim. A queimação.
Que o corpo sente o que é dele e o que a ninguém pertence. Não há mal pior que o corpo, pois dele não podemos nos livrar sem que deixemos de ser nós mesmos, sem que haja um convite para a fuga alucinada daquilo que nós fomos: a morte. Pertenço a meu corpo ou é ele que pertece a mim? Perteço-me a mim ou sou pertencido por mim mesmo? O si-mesmo... Este que não existe. Pura idealização. Prefiro esse platonismo: sou pertencido por mim.

É do escuro que escrevo estas linhas. Bem de cá. Do escuro. De onde nem eu consigo enxergar qualquer sentido.

quinta-feira, 28 de junho de 2007

O contador e a bem-polida

Porque sempre lhe diziam "Vai entender quando for pai", decidiu que deixaria a paternidade como um desejo escondido, como um quadro estranho para o qual a gente não olha.

É que estava cansado mesmo era de entender. As compreensões haviam sido sua vida. E toda a culpa. E todo o medo. O temor já não lhe era bem quisto. Sim, o fora um dia, quando o desejo da paternidade era aceito junto ao medo de que iria entender tudo um dia, por exemplo. Ou como quando pensava nos desejos todos que lhe habitavam e temia-os como teme a criança a espera de seu sorvete em um passeio de domingo: apenas com mais desejo.

Por sorte, escolhera trabalhar com números. Não há o que temer na previsibilidade dos cálculos, apenas que estes estejam errados. Mas assim basta que se pegue a máquina de calcular, sagrada invenção, e se reconte e recalcule tudo novamente. É que não era possível, isso nunca!, viver as coisas mais uma vez para usar a compreensão que tivera delas na tal segunda oportunidade. Viver era de supetão. E ele vivia como se pisasse em ovos.

Mas nem tudo pode-se evitar. Hoje, por exemplo, está aí. Saiu de casa às sete e meia para o trabalho. Pegou o metropolitano lotado como de costume. A camisa, nem notara, ia suja do café da manhã tomado às pressas na bancada da cozinha. Regou antes as plantas que era certo que se não o fizesse, morreriam todas até o final do dia, já que era tempo de calor e a cidade era quente a qualquer tempo.

Foi na saída.

- Desculpe-me, senhorita - disse ele, já ajoelhado recolhendo do chão cada papel que fizera cair ao esbarrar na moça que ia entrando na composição ao passo que ele saía.
- Não há problemas... - respondeu ela, com aquele ar de resignada que só mulheres que carregam papéis têm. "Deve ser a esposa de algum advogado levando os papéis ao escritório a pedido do marido adoentado", pensou ele, mas disse:
- Sim, perdão mais uma vez. Aqui estão seus papéis. Há algo mais que possa fazer para perdoar-me? - "Não, não, não! Diga que não, por favor. Já me atraso para o trabalho!", pensou.
- Poderia esperar comigo a outra composição, então, que assim não me sinto só - respondeu ela com um olhar matreiro. Talvez quisesse que ele fosse um pouco mais atrevido no que dizia. Talvez apenas quisesse confundí-lo como essas mulheres que gostam de apenas seduzir. Talvez nada quisesse, era apenas uma moça educada e de boa família.
- Pois não.

O silêncio era incômodo. Não havia como voltar atrás e simplesmente não esbarrar na senhora. Ou senhorita?

- Qual o nome da senhora? - perguntou.
- Ah, senhorita... - corrigiu-o prontamente. Juliana. E o seu?
- Orácio. Orácio Guerra. Está indo trabalhar, senhorita?
- Não, apenas levando uns papéis para meu pai. Já é um senhor... E hoje não tenho muito o que fazer... O senhor trabalha aqui pelo Centro?
- Ah, sim. Trabalho. Sou contador naquela agência da esquina da Sete de Setembro com a Travessa do Ouvidor.

Outra vez o mesmo silêncio. Pois bem. Não havia como evitar. Agora já compreendia: não se deve sair sem cálculos de nenhuma composição. Há sempre a possibilidade de que tudo se desorganize. E aquelas coxas... Como eram gostosas. Mas há sempre a possibilidade de que tudo se desorganize... E se a convidasse para sair? Para almoçar, talvez. Mas não! Melhor não correr desses riscos, que não é de mais valia compreender uma nova situação, posto que as antigas compreensões nunca lhe serviram de nada, vide hoje: compreendera, repito, qual a melhor maneira de sair do metropolitano, mas já não basta compreender que não pode evitar a situação por que passa agora. E há sempre o risco da paternidade. O desejo apertado em seu peito. O desejo recalcado de viver a paternidade em sua plenitude e não apenas cuidando de plantas pelas manhãs. Melhor não convidá-la que os cálculos se perderiam caso tivesse que ter hora para parar e encontrar com a moça, já que poderia ainda estar no meio de um longo raciocínio aritmético.

- Almoça por aqui por perto?
- A senhora... Senhorita, perdão, está indo longe? Ia pegando a composição... - "Sim, boa saída!", pensou.
- Estou apenas levando os papéis para papai, como disse. Anda com a memória ruim. Esqueceu estas coisas hoje pela manhã quando saía de casa. Mas moro há duas quadras. - olhou-o nos olhos. Sim, sei o que pensa: não é bom morar no Centro. Mas é que lá em casa somos só os dois desde que mamãe morreu e... Bem, fica mais barato morar aqui pela região.
- Compreendo - Não! A maldita compreensão novamente! E de que adianta! A sensação de que estava em perigo se acentuava em seu peito. Queria correr da própria resposta dada. Precisava sim tomar aquelas aulas de etiqueta que se propagavam pelos corredores do escritório. Talvez já tivesse conseguido sair polidamente desta situação caso tivesse tido os ensinamentos corretos para isso.
- Pois então... O senhor almoça por aqui?
- Ah... Sim... Eu... Bem, trabalho por aqui, não é? Não daria tempo de ir em casa.

As palavras podem ser ditas sempre e de qualquer maneira. Estas foram ditas rudemente e tomaram um certo ar de repúdio que a jovem senhorita logo compreendera. Nervoso, Orácio ajeitou a gravata, afrouxando-a um pouco, e enxugou a testa com um lenço. É que nesses momentos de convívio não havia como voltar atrás com a máquina de calcular e ressomar tudo, recalcular e aparar as possíveis arestas, acertando os resultados.

- Desculpe-me por ter soado rude - disse ele ao ver a cara de espanto da jovem senhorita.
- Qual nada! Imagino que estejas atrasado... Pode partir se te aprazes a idéia - respondeu serenamente. Sim, devia sim ser moça de boa família. Ao menos, boa educação, que moças capazes de compreender o medo de um homem e respeitá-lo apesar de tudo devem ser bem educadas.
- Pois que tens razão. Se não há problemas, parto agora.
- Sim. Um bom dia, senhor. E obrigada pela ajuda.
- Um bom dia, senhorinha.

Aliviado, partiu para o trabalho. Havia alguns cálculos do dia anterior para refazer.

terça-feira, 26 de junho de 2007

O grande espelho (pequena autobiografia)

Entre experiências e teorias,
Observações e alegorias,
Mais dia menos dia
Perceber-se-ia preso.

Estava preso a tudo aquilo que lhe diziam
Apesar de, a tudo que fazia,
Dizer: Só faço o que eu quero
E não me importo com a opinião alheia.

Até que veio o dia em que se olhou no espelho.
E o que o grande espelho o mostrou?
Viu a si mesmo.
Que bom! Gostou do que viu.

Porém, olhando mais profundamente,
Percebeu que as teorias não lhe eram suficientes,
Que as experiências não refletiam o mundo,
Que, a suas alegorias, faltavam cores
E que as suas observações careciam de vida.

Percebeu que estava preso,
Assim como já dissemos antes.
Disse: Faço o que quero
Mas o que quero é muito do que os outros desejam.

Pensou: Como fazer apenas o que quero?
Morreu pensando.
Em sua outra vida,
Vivera as oportunidades que lhe foram dadas.

sábado, 23 de junho de 2007

Da compreensão

Interessante notar como os temas, mesmo soltos, tratam de algo em comum. Os últimos textos falam de culpa e da dupla mal e bem. Como diria Lucas, não sei se "dupla" (aliás, ele nem diria não sei e afirmaria: não são dois, não são opostos!).
Quando tudo não parece fazer sentido em nossa história, aí vem algo e nos coloca em contato direto com o escrito e somos capazes de entender o que saiu de nós mesmos e que até então era apenas texto.
Me lembro de uma técnica de Gestalt (não sei se se chama técnica, mas por técnica aqui quero dizer uma espécia de dinâmica a ser utilizada em terapia, mesmo que - e principalmente, penso eu - individual), uma técnica que a Sá falou uma vez, tão logo aprendera. Pede-se para que o cliente feche os olhos e que tente recordar-se de algo bem remoto, que tente "puxar" em sua memória a lembrança mais antiga que guarda.
Feito isso, pergunta-se: e como essa lembrança afeta o seu momento presente?
É como isso essa questão dos textos. É como se agora, relendo, tudo fizesse sentido no meu momento presente.
Os clássicos soam clichês. Para que não soem clichês tem que se saber usá-los, mas esse não é o caso. De qualquer modo, corro o risco dos clichês e peço-lhes que se recordem do livro de Robert Louis Stevenson, "The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde", ou apenas "O Médico e o Monstro", em que Dr. Jekyyl, buscando uma substância capaz de separar o bem e o mal em uma pessoa, acaba por tranformar-se no terrível Mr. Hyde (e aqui o clichê também do jogo de palavras entre "Hyde" o "hide", esconder).
É que hoje sinto-me como o Médico. Sinto-me Monstro. Sinto-me mal.
É que dentro em mim há o mal. "Mas há o bem", diria o policial Nelson, de um de meus textos pretéritos. Mas é que algo deve ficar mais forte em algum momento.
As pequenas... Não consegui. Lucas disse que provavelmente, ao fazer o que fiz, que provavelmente eu ficaria com uma imagem de que desisto das coisas facilmente. E ele tem razão.
Retrospectivamente, desisti de muitas coisas por dificuldades. E como ele disse, os limites ficam mais estreitos com o tempo.
Na tevê um professor da UFRJ. "Resiliência", explica ele, "é um conceito da física que fala da capcidade de que uma energia aplicada seja retornada ao meio pelo objeto que a recebeu". Melhor dizendo, é como quando comprimimos uma borracha. A resiliência diz respeito à capacidade da borracha de devolver parte da energia que fora aplicada sobre ela, retomando sua posição inicial. Mas nem toda a energia é retornada.
Como diria Reich (Lili, estou usando os conceitos corretamente?), é como se com o tempo perdêssemos a capacidade de pulsação. Há resiliência, mas ela não é infinitamente resiliente e com o tempo acabamos ficando na posição em que nos colocaram ou em que nos colocamos ao longo dos tempos.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Da essência da verdade

É verdade. Não há porque entristecer-me. Os relacionamento que não tive sempre me parecem mais interessantes. Não há como escapar.

Mas uma coisa é fato: as relações estabelecidas é que realmente me importam! E como são coesas e como são reais! E como há sentimento e veracidade.

Verdade... Verdade é verossimilhança.

quinta-feira, 21 de junho de 2007

Da culpa

A fila era interminável. Dora, com os olhos ainda vermelhos por carpir-se, ao lado do corpo do pai falecido. Infarto do miocárdio, algumas veias entupidas. E o fumo. O maldito cigarro que ele não conseguira largar por toda a vida. A fila era interminável:

- Meus pêsames!
- Meus pêsames, querida!
- Oh! Coitada! Tão nova e sem pai! Me dê cá um abraço - disse a tia do interior.
- Meus pêsames...
- (levantando o rosto para ver quem lhe falava) Você?... O que você faz aqui? - disse Dora.
- Vim cumpriment...
- Tirem esse homem daqui! Por favor, alguém - gritava a filha do falecido.
- Calma minha querida. Ele cuidou de seu pai. - falou de modo tranquilo a vizinha da família, que acompanhara todo o caso.
- Pois como queira, senhorita. Retiro-me.
- Não! Pare! Melhor assim! Venha ver o que fez! (Aponta para o caixão aberto) Vês? Esse homem, meu pai! Você tirara-lhe a vida!
- Senhorita, compreendo sua dor. Também perdi meu pai um dia... Irei retirar-me para que se tranquilize...
- Pois foge agora, não? Não consegue encarar os frutos de sua incompetência?!
- Está nervosa, cara. Está alterada. É melhor que eu me retire. Sabe onde atendo. Apareça lá para conversarmos, caso queira.
- Eu?! Aparecer?! (risos nervosos) Pois só pode estar brincando! Não quero nunca pisar naquela sala novamente! Me faria mal só de ver-te. Aliás, (chamando a atenção de todos ao redor e falando alto e pausadamente) este homem, senhores, foi ele quem matou meu pai. Sim, ele. Médico. Cardiologista, que médicos adoram títulos. Não procurem nunca este homem, se querem o bem.
- Senhorita, (falando baixo) está me difamando. Mas compreendo sua reação...
- De que adianta compreender?!! DE QUE ADIANTA, MERDA?!!! Doutor, como seu pai morreu?
- Meu pai morreu de câncer no esôfago quando eu tinha 23 anos.
- O meu morreu de infarto! E sabe porque? Por sua incompetência! Diga, doutor, na frente de todos: quantas vezes lhe disse que meu pai deveria sair do hospital? Que aquele ambiente só o faria mal, que estava piorando mais a cada dia?
- Algumas vezes, senhorita.
- Fale mais alto! - grita Dora - Quero que todos ouçam!
- (fazendo força para ser ouvido) Algumas vezes, senhorita.
- E quantas vezes lhe disse que papai não gostava daqueles remédios?
- É que remédios não são de gostar ou não gostar. São apenas de tomar e...
- Pois é assim que pensa, doutor? É assim que vê as pessoas? Como puras coisas a quem o senhor pode mandar e desmandar? Pois não são assim! Eu, assim como você, tenho vontades!
- Sim, mas a vontade maior deve ser a de que se viva e seu pai sabia dos riscos.
- SIm, meu pai sabia dos riscos. Eu sabia dos riscos. Aliás, o que o senhor faz muito bem é repetir quais são os riscos! E a operação! Sim, o senhor opera bem, mas não pensa nas consequências para cada um depois de tudo.
- Como?
- Vê? Nem ao menos sabe do que se trata!
- É que está nervosa. O que diz não está fazendo muito sentido para mim... Quer mesmo conversar sobre isso agora?
- Antes tarde do que nunca! E já é tarde que o corpo do meu pai se vai daqui a quinze minutos! Papai chegou para você apenas com dores no peito e se vai. Ai, que desmaio! Acudam!

Desmaia. Doutor Eduardo corre ao carro. Medidor de pressão. Apenas um pouco acima do normal.

Minutos depois, Dora recobra o sentido, já deitada em uma maca no posto de saúde próximo ao cemitério. Doutor Eduardo a acompanhava. Todos os familiares ficaram no local para o enterro do falecido, que deveria consumar-se.

- Onde estamos?
- No posto de saúde, senhorita. A trouxe para cá depois do desmaio. Sente-se bem?
- Melhor. Ainda um pouco tonta. Mas não me esqueço do que me trouxe aqui... Discutíamos.
- Sim, me falava de minha culpa...
- Certo, doutor. Quero apenas que carregue o fardo que lhe cabe. Não é justo que os pecadores sigam a vida incólumes.
- Ambos sabemos que não havia erros, certo?
- Não. Ambos sabemos quem errou!
- Senhorita, ainda está alterada. Descanse um bocado. Vou buscar algum enfermeiro que possa nos ajudar com algum ansiolítico.
- Não aguenta, não é? Quer que me cale! Pois não me calo!
- Não quero que se cale! Estás louca?! Pois bem! Tenho aguentado e tentado ser compreensivo. Mas então, que conversemos, já que isso é importante para você. Houve um culpado? Sim, certamente.
- Bom que reconheces!
- Senhorita, seu pai chegou para mim com dores no peito. Lembra-se o que recomendei?
- Sim. O senhor receitou dois remédios. Lhe falei como papai destestava remédios. Desde que mamãe falecera que ele mora comigo e com meus filhos. Sabíamos muito bem como era papai e o senhor... O senhor nem queria nos ouvir!
- Há coisas em que a escuta não faz diferença! Não seja infantil! Remédio não é questão de gosto! Há remédios muito gostosos por aí e nem por isso podemos tomá-los sempre. E há os ruins e não podemos evitá-los sempre.
- E não evitamos, mesmo sabendo como era doloroso para papai.
- Mais alguma recomendação fiz naquele dia?
- Aquela dieta... Sem gorduras, muitas verduras, nenhuma bebida e o cigarro.
- Certo. Disso o que fizera?
- Tudo, apesar de papai não gostar.
- Tudo, senhorita? - disse, enérgico.

Dora calou-se. Uma lágrima.

Doutor Eduardo afasta-se lentamente da maca. Vemos apenas o carro saindo do estacionamento. É ele que vai embora. Voltamos a ver Dora na maca. Chora compulsivamente.

Paranóia ou culpa?

Me acompanha essa sensação desde há muito tempo. Sempre me acompanha. Apenas consigo evitá-la às vezes e no esforço de evitá-la, ainda a tenho sempre em mente, não livrando-me totalmente dela.

Estranhamente vem; estranhamente, quase vai embora completamente. Fato é que o estranho é sempre igual. Parafraseando Freud em "O Estranho", o estranho é nosso conhecido desconhecido. A sensação me é estranha, posto que a sei e sei tão bom que sei quando chega.

Uma ligação. Um aviso. Um e-mail.

Elevador:

- Ah! Oi! Você por aqui! - diz o outro.
- Sim! Quanto tempo! - digo eu.
Os andares passam e a conversa segue informal até que um dos dois deve descer e...
- Ah! Sim! Depois preciso falar com você.

Bam! A porta se fecha e sigo eu: o que fiz de errado? E a sensação se apossa de mim. É a estranha sensação de que fiz algo de errado, algo pelo que serei cobrado exatamente agora e de modo atroz. E temo. E tremo.

OU então:

- Bom dia! Preciso te falar - diz a amiga.
- Sim? - respondo em tom preocupado.
- Depois nos falamos que não é papo para agora...

E lá vem a sensação. Só passa quando a conversa acontece e vejo que não era nada demais.
Aconteceu agora.

- Amigo Ruffles, quero falar com você hoje. Será que pode ir na minha casa para conversarmos? - diz o e-mail.

O que fiz de errado? Meu Deus, o que fiz? - penso eu, mesmo sabendo que, ao olhar retrospectivamente, nada irei encontrar.

É paranóia ou é só culpa mesmo?

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Da Amargura

A criança brinca no quintal de terra batida. As roupas da moda, o cabelo com gel, mesmo que pequena fosse. E os cães giram ao seu redor e se divertem com o novo amigo.

Mas é que brincadeira termina e as necessidades fisiológicas fazem-se presentes. Aí um dos cães pára, sai da roda de brincadeira, faz seu côco ali bem perto. Paciente, cheira a bosta recém-saída de si e, muito sorrateiramente, dá uma lambida na merda.

- Écouti! Blrrr! Eca! Aiiiiiiiiiiiii! Que nojo! - diz a criança, passando a manga da camisa na língua que acabara de pôr para fora, como que para certificar-se de que sua língua estava mais limpa que a do cão.

De longe, os tios a observam. Sempre moraram ali naquela região. Joaquina não quis acompanhar a irmã mais nova quando esta foi viver na cidade grande. Hoje, Joana, a irmã, tendo conseguido completar o segundo grau, é auxiliar de escritório numa empresa grande e casada com um desses advogados de casos pequenos; Joaquina, esposa de Cláudio, mora nesse sitiozinho no interior do Rio de Janeiro.

- Criança da cidade é sempre assim: estranha!
- Parece até que nunca viu merda de bicho sair assim. - disse Cláudio, o esposo.
- E cê vê? É 'minino'. Se fosse garota ainda ia de ser mais afrescalhada.
- Mulher, mulher. Olha como cê fala do seu sobrinho.
- Mas é claro que também eu não podia esperar coisa muito diferente de Joana. Mamãe sempre mimou aquela uma.
- Você sabe que eu até acho que ela sofreu bastante?
- E tu sabe de alguma coisa, hômi?
- Ah! Mas que que tu tem com tua irmã que fica nessa implicância?! O minino é saudável, vê! Só não sabe lidar com as coisa aqui da roça.
- E aqui lá é roça?! Tamo a uns quinze minutos da cidade...
- Mas a cidade aqui não é a cidade de lá, Quina. Esse moleque tá acostumado com aquelas coisas de cinema, teatro, video-game e essas coisas que enrolam a língua de falar, tipo aquilo que tua irmã mandou no seu aniversário... Qual o nome daquilo mesmo? "Romi...", "Romã..."
- "Rômititer", Cláudio! Coisa mais inútil! Um bando de caixa de som! Aquilo num serve nem pros bailão no salão da comunidade.
- Pois é, mas foi de bom grado. Tá vendo o que eu digo? Você tem implicância com sua irmã. Sem motivo, que ela gosta de você.
- Gosta! Manda esse moleque pra cá que é pra poder aproveitar o tempo melhor nas férias! Quase nem aparece aqui, só pra buscar e deixar o menino!
- Ora! Mas ela sempre se preocupa, escreve, deixa recado pelo telefone pra gente lá na venda da cidade...
- E faz muito? Faz é pouco! (irritada) Cláudio, você teve irmãos?
- Cê sabe muito bem que não. P... (interrompido)
- Pois é bem por isso que pensa que ela gosta de mim. Não entende. E nem vai mais entender disso nesta vida, que o tempo já passou.
- Aff! Que tinhosa! Além de implicante, é tinhosa!
- (Não dando ouvidos ao que o marido disse)... que o tempo já passou...
- Acorda, Quina!
- Vejo Pedro brincando na areia. Estou acordada... Mas é que...
- É que...?
- É que penso: o tempo já passou pra nós, Cláudio.
- Que passou nada! Ainda temos muito pela frente.
- Mas não temos um Pedro.
- Sim, (com a voz triste) mas você bem sabe que nunca teríamos um Pedro ou qualquer outro nome que seja.
- Pois é. Quando eu e Joana éramos pequenas, brigávamos para ver quem teria filhos primeiro e aí está o moleque. Ela se casou e logo teve Pedro. Já eu... Nós... Bem, há o seu problema...
- Sim, há. Mas veja o menino, que graça! Grande. E com nojo dos cães ainda (risos). Mas com o tempo se acostuma. O tempo aqui na roça é outro!
- Acostuma nada! Moleque bobo...

O Salto

É preciso saltar no absurdo. É preciso saltar no absurdo. Sim, é preciso. Mas é que ainda não sou capaz.

Absurdo:
Adj.
1. Contrário à razão, ao bom senso: 2
2. P. ext. Disparatado, inepto.
3. Filos. Que fere as regras da lógica ou as leis da razão, ou é irredutível a elas: 2
4. Filos. P. ext. Que escapa a regras ou a condições determinadas.

Um salto no absurdo é um salto de vivência. De escolha por viver aquilo que não se sabe o quê nem como.

É preciso saltar no absurdo, mesmo que as pessoas olhem. E mesmo que não gostem do que vêem. Ainda que não gostem, é necessário o salto.

E como todo absurdo, é provável que, de fato, vejam e não compreendam, as pessoas. Mas para o saltador o que importa é que sabe que deve saltar, apesar de qualquer coisa. Apesar mesmo dos obstáculos intrasponíveis (e é aí que reside o absurdo).

O absurdo é o incompreensível, mas que se deve viver mesmo sem que se compreenda. Ele pode até escapar às regras, mas não significa disparate. O dicionário erra também. Eis o absurdo. O dicionário é um absurdo, pois, em seu ser correto, permite-se errar, mesmo que isso signifique que o verão como criatura escusa.

Eia! Que saltemos!

terça-feira, 19 de junho de 2007

Recebi isso agora por correio lá de onde faço especialização.




"Justo a mim me coube ser eu!"

segunda-feira, 18 de junho de 2007

Juízo Final (Nelson Cavaquinho)

Pessoas, assistam "Proibido Proibir". Mas preparem-se para chorar e sair mal do cinema! De qualquer modo, vale a pena. E a música...

Juízo Final (Nelson Cavaquinho)

O sol....há de brilhar mais uma vez
A luz....há de chegar nos corações
O mal....será queimada a semente
O amor...será eterno novamente
É o Juízo Final, a história do bem e do mal
Quero ter olhos pra ver, a maldade desaparecer
O amor...será eterno novamente

domingo, 17 de junho de 2007

Verme não dá culpa. Dá diarréia e desespero!

Pois é minha, gente, tenho que dividir esse momento. Não sirvo para pai. Muito menos para pai solteiro. Muito menos para pai num apartamento micro em que mal eu caibo.

É que as pequenas, Sofia e Shiva, tomaram remédio de verme. Três doses. Três dias seguidos... Uma dose a cada dia.

Não era comprimido e aí não passei pelo sufoco que o Lucas descreve em

http://justabeast.blogspot.com/2007/05/como-dar-um-comprimido-um-gato.html

E saí bastante arranhado. Elas, aparentemente ilesas.

A última dose foi hoje. Eu, feliz! Não ia mais correr o risco de descobrir um novo arranhão quando fosse tomar banho e a água batesse e começasse a arder.

O dia foi ótimo. Aliás, o final de semana. Exceto por tudo o que poderia ter havido de melhor, claro. Até que eu decido estudar, pego o texto que Lucas me deu há quase um ano, sento na cama, começo a ler direitinho com caneta e tudo para fazer anotações (aquele tipo de leitura lento em que você digere as frases e busca de fato entender tudo, sabem?) quando Sofia começa a se arrastar de um jeito muito estranho.

Ela sentou-se no chão, com a bundinha bem encostada no piso e com as patas dianteiras, movia o corpo para a frente, como que para coçar-se.

Fiquei atento. Como bem mandou Husserl, fiz a epochè e pensei: até que o fenômeno se revele, não podemos dizer que há algo errado, é apenas ela se divertindo de um jeito novo.

Mas a pequena vai para a caixa de areia e coloca sangue para fora nas fezes. Mais sangue do que fezes. Mais fezes do que sangue. Não sei. Só sei que sentei na cadeira do computador, olhei para ela e comecei a chorar pedindo: pelamordideus, deixa ela viver, não faz ela sofrer.

Enfim, depois de desfiar o rosário, falei com a Vívian, que falou com uma amiga que é veterenária e que deu umas dicas. Não satisfeito, cacei um veterinário online em algum bate-papo da UOL. Sempre tem alma boa nesse mundo, para quem ousa dizer que não.

Mas ainda não satisfeito, achei na internet uma clínica veterinária que fica aberta 24 horas num bairro perto. Mudei de roupa e fui correndo lá.

Veterinário gente boa. Falou de minhas bichanas como se fossem bebês. Aliás, receitou remédio de criança. Hipoglos e tudo! rs

A questão é a seguinte: verme, minha gente, não dá culpa! Só os médicos sabem disso. Mas se você é pai, você sabe: verme dá diarréia e desespero! E tenho dito!

A Solitária Dá Culpa

- Ôo, Maria! Tô bem não...
- Que foi, hômi?
- É que tô com uns aperto cá dentro - disse apontando pro peito.
- Já te disse, 'Jão'. Tu tem que ir no dotô quando ele tivé lá na cidade. Ói. Nós nem fica tão longe di lá. Tu que é um hômi leso mermo.
- Mas, muié, eu num sei que qui se passa aqui, mas duma coisa te agaranto: não é mal do peito.
- Se não é mal do peito, do que que se trata então?
- Ara! Eu que vô sabê? Só sei que é mais um incômo assim, uma coisa chaaaata.
- E o que que cê pensa? - que Maria não tinha estudo, mas sabia de Psicologia.
- Sei lá, muié. Mas que pergunta! Que é que eu penso! (risos. Um trago no cigarro de palha) Agora vai querer saber que é que eu penso tamém?
- Mas que hômi mais grosso! Até o marido da Joaquina é mais delicado...
- Por isso que é mal falado aí. 'Sas coisa de delicadeza! Vê lá se hômi nasceu pá isso.
- Mal falado?
- Ué, vai dizer que cê num sabe? Andam dizendo por aí pelas redondeza que ele tá de caso com o filho do dono da fazenda.
- Com o Marquim?
- Sei lá de Marquim, muié. Tá me estranhanu?!
- Ah! Acho melhor tu ficá é quieto que com o tempo essa dor passa.
- Que passa que nada... Me faz é lembrar... Lembrar de paim, de mainha, das coisa errada...
- Vixe, mas que dor estranha!
- Lembro das veiz que paim pedia preu ir na venda e eu imbirrava no canto da sala. Aí ele olhava pá mainha e dizia: "ô meu amô, tá vendo que eu te digo? Si menino que eu cuidei com tanto carinho não me gosta!".
- E o que é que cê fazia?
- Ué, levantava, pegava o dinheirimque eu tinha conseguido juntar roçando pasto e ia na venda comprá de tudo que sabia que faltava.
- Mas então não era mal...
- Mas tamém não era bão.
- E é essa dor que...?
- É, desde que ela veio que to tendo essas lembrança. Inhantes eu me arrecordava de nada não... Agora só vejo mainha... Mainha cozinhando seu almoço no fogão de lenha. Aquele fumacêro todo na cozinha. E aí ponhava a comida no meu prato. Ôoo coisa ruinha. Aí tinha dia que eu comia. Aí tinha dia que eu é cuspia aqueles treco tudo de vorta no prato.
- E ela?! (assustada com as revelações do marido)
- Ah! Mainha chorava. Dizia que eu não a amava, que nem o que ela fazia eu queria colocar pá dentro que era pá num tê nem um cadiquim dela comigo. Aí eu reculia tudo de novo e comia.
- Comia os cuspido tamém?
- Os cuspido era o de menos. O pior é quando ela achava que então eu tinha era gostado e enchia o prato de novo e dizia que aquele prato era pra eu mostrar que gostava de paim...
- Cruz, hômi! Tira esses pensamento triste. Por isso que fica aí, assim, no canto...
- É a dor, Maria. E aí que ela me passa pá barriga agora. Meus tistino parece que tá tudo briganu. Tu tem jornal de embrulho aí ainda, muié?
- Toma cá - entrega pedaços de jornal cuidadosamente cortados em retângulos.

- Muié, mas vem vê cá a bicha que saiu de mim!
- (vendo uma Solitária no jornal em meio à um pouco de fezes) Ai, 'Jão', que nojo! Já te disse que tu tem que ir no dotô. Oh! O nome disso aí é suzinha... Suzinha não! Solitária! E eu bem ouvi dizer que ela dá o que tu tem.
- E o que é que eu tenho?
- Culpa! Solitária dá culpa.

A Solitária da Culpa

Brincavam de pique-pega:

- Não, Amor assim não vale!
-Como não vale, Esperança?
- Ué, você tem que contar até três antes de correr atrás da gente.
- OK.Um... Dois... Três.

E encostou rapidamente a mão na Tristeza, que logo apaixonou-se pela Amargura. Como estivesse com o pique, Tristeza correu loucamente atrás da Amargura e, depois de muito tentar, emburrou-se e se pôs num canto a chorar.

Nisso veio a Curiosidade:

- O que se passa, Tristeza?
- É que... É que... É que o pique está com você! - e encostou a mão na Curiosidade que, só então, compreendeu porque ouvia tanto dizer que "de curioso, morreu o gato". E Curiosidade ficou triste, que jogar com sentimentos não é mole: de um modo ou de outro, você se contamina.

A Curiosidade correu atrás de todos os sentimentos que brincavam, pois todos lhe interessavam.

Sozinha, isolada num canto, solitária estava a Culpa. Vendo-a, Curiosidade correu afoita em sua direção e encostando sua mão na outra, disse:

- Tá!
- Sim... Tá comigo agora o pique.

Já muito desanimada, ergueu-se do lugar em que sentava e correu atrás dos sentimentos.

Encostou a mão em todos eles. Era rápida a solitária da Culpa. Mas o pique não ficou com ninguém. É que os sentimentos não ficavam com a Culpa. Eles faziam terapia.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

As pequenas

É bem assim: uma pata passa debaixo da porta e a que está do lado de cá pula afoita em cima da tal pata. A outra do lado de lá tira a pata e é a vez da que está aqui fazer o mesmo: lá vai a ponta dos dedos miúdos e a outra salta em cima. Até que perdem a paciência e se engalfinham perto da lixeira laranja e miam baixinho, como se estivessem rindo.

Daí esbarram na sacola da lixeira. O barulho as atrai. Param, pensam, bolam juntas a estratégia e "vupt", atacam a sacola indefesa.

E tem também quando começam a correr por entre os fios do computador. Passam de um lado para o outro, encontrando sempre novas possibilidades de passar pelos fios sem esbarrarem em nenhum deles. Ou então, esbarrando em todos. Parecem duas desbravadoras da selva dos fios perdidos.

Ou como quando estou lendo o texto e as duas, que antes estavam fazendo qualquer coisa bem interessante, vem correndo para esbofetear o papel: "como ousa desviar a atenção dele de nós duas?!".

São narcisistas.

Mas, mais que tudo, são taradas. Podem estar fazendo o que for, se ouvem um gemido vindo da tevê, param e correm para cama e sentam para assistir. Sabem, de algum modo, que é o tal canal de filmes pornôs. Sexy Hot. Elas adoram e ficam olhando abismadas para tudo aquilo ali.

Shiva é mais retraída. Ela se esconde às vezes e nem sempre quer carinho. Só quer carinho quando quer e quando não quer, simplesmente não aceita. Gosta de ficar na dela.
Já Sofia é uma palhaça. Pula o tempo todo e é toda dada. Se se coloca a mão logo abaixo da orelha dela, então... Nem se fala! Mas é sem limite, "lotionless".

Acho que os nomes, no final das contas, deveriam ser trocados, invertidos e Shiva passa a ser Sofia e Sofia, Shiva, para combinar mais com as personalidades.

E de vez em quando tem um xixizinho fora da caixa de areia. Mas, fazer o quê né? Nem tudo são flores... rs

terça-feira, 12 de junho de 2007

E se... mas...

Como são divertidos os jogos com palavras, os trocadilhos e os mal-entendidos todos, minhas vidas!
Cagaram em minha mochila, mas os pássaros ainda voam e o céu está azul.
E se o mundo fosse lilás? Mas sabemos que não o é.
Quero correr para sair do lugar em que me encontro. Giro. Faço círculos em volta de mim e dos que me rodeiam e não tenho tonturas. Tenho labirintos dentro de mim, o médico me disse. E eles funcionam bem!
Não quero trabalhar, sabiam? O trabalho mata. Mas a vida é a própria morte de alguma maneira escondida e que, por isso, só descobrimos no final, como no pique-esconde que só se sabe o que se esconde quando o que se esconde se revela.
Não quero trabalhar, que a escrita não dá trabalho e dá mais prazer. Quero escrever apenas. Escrever tudo aquilo que me venha em mente, mesmo que não faça sentido algum.
Sentido. Ando sentindo as coisas e os sentidos espocam, pululam de tudo. O ônibus, por exemplo, não faz sentido. Mas andar faz sentido.
As papilas gustativas são um dos meus sentidos, mas queimei-as ontem no arroz quente.
Sabem? Café me angustia... Arroz não. Arroz com gosto de sazon é gostoso. Mas café me dá desespero e aí tomo chá de erva-doce ou de qualquer erva que me acalme. O café dá aperto no peito. Se bobear, faz mal ao coração.
Mas e se café não me angustiasse? Aí... Aí... Aí talvez eu nem nunca tomasse mais café.

segunda-feira, 11 de junho de 2007

O Mal e o Bem

Na delegacia

- Resumindo, doutor, eu acho que devo ser preso. Me prenda. Eu preciso pagar pelo que fiz!
- Mas o senhor não fez nada!
- Como assim?! Doutor, o senhor tem estudo, mas acho que não entendeu... Olha, eu ia assaltar aquelas pessoas e...
- E aí? Assaltou?
- Não, doutor delegado, mas eu ia assaltar.
- E o que há de errado nisso?
- Sou o mal, doutor. Eu ia fazer o mal. Logo, sou mau.
- E fez o mal?
- Não doutor, mas pensei em fazê-lo. Olha, teve vez que perdi uma de minhas esposas porque pensei em traí-la. A gente tava coisando e ela achou que eu tava pensando na Gilvécia, que era nossa vizinha. Paramos por ali. Nos divorciamos. Nem sei por onde ela anda.
- Chato isso rapaz, mas você acha mesmo que a traiu?
- Não. Mas acho que ela tinha razão quando me deixou.
- Oras! O senhor está é doido! Deve é ser preso num hospício! Me diz que não a traiu, mas diz que é mau, como se concordasse...
- Senhor, se o senhor sai de casa com vontade de fazer o mal, não é mau o suficiente? Então o mal é ação?
- Olha, há quem diga que tudo "é", mesmo que só na cabeça da gente. Mas, rapaz, para a lei só vale o feito. O que o senhor fez?
- Já lhe contei, delegado! Tava em casa sem nada para comer. Não tinha nem um biscoito para vender na rua. Bala, chiclete... Enfim, nada para vender. E estas coisas de vender funcionam melhor quando se é criança. Então parti para a ponte Rio-Niterói disposto a assaltar as pessoas no trânsito. Hoje é feriado, doutor. Tá todo mundo voltando pra casa. A ponte a estas horas fica que é um monte de carro parados e buzinando!
- Mas assaltou?
- Não! No caminho vi uma placa: "Paz no trânsito! Paz para você". Acho que é coisa da Prefeitura. E aí deu um estalo na minha cabeça! Percebi o mal que ia fazer. E agora estou aqui. Não percebe? Me prenda, delegado!
- (Risos) Olha, vamos colocar um ponto final nesta palhaçada! A quem o senhor assaltou?
- A ninguém.
- Então não posso lhe prender. Ponto. Agora queira se retirar, por favor, que tenho mais o que fazer.
- Mas...
- Sem "mas"... Ôoo, Nelson, quer fazer o favor aqui?
- O quê, senhor delegado? - disse o Nelson de pronto.
- Retire esse senhor, que ele me importuna.
- (Gritando) Vamos saindo, rapaz!
- Vai me prender?
- Vou prendê-lo? - perguntou o Nelson para o delegado.
- Não. Apenas tire-o daqui.
- Pois veja, seu Nelson. Vim aqui para ser preso e sou escorraçado!
- Anda! Ande! - gritou o Nelson.
- Estou andando.

Já na porta da delegacia.

- Mas o senhor veja, seu Nelson. A gente que é mau de verdade não é punido.
- E o que é que se passou? (simpatizando com o rapaz e, ao mesmo tempo, curioso quanto ao que se passara)
- Pois acontece que eu ia assaltar umas pessoas na ponte Rio-Niterói, mas no meio do caminho me dei conta do mal que ia fazer. E aí decidi vir para a delegacia render-me.
- E fez o mal?
- Não, mas pensei! E o que é o mal para você? Se sou capaz de pensar nesse mal, mesmo não o tendo feito, pode muito bem ser que o faça. Prefiro garantias.
- Garantias?
- É, preso não corro estes riscos...
- Mas o senhor é bom, não vê? Percebeu o mal que ia fazer e veio aqui entregar-se antes que o mal estivesse feito. (silêncio. Emenda em tom desejoso) Ah! Se todos os criminosos fossem assim!
- Então concorda.
- Concorda com o quê?
- Que sou um criminoso!
- Não, é só força de expressão.
- Então o crime não é só no pensamento...?
- Mas mal todo mundo pensa. Ainda mais nos dias de hoje. Veja você que ontem eu estava no ponto de ônibus para vir para a DP e ouvi essa mulher brincando com o moleque no colo da outra "Ai, que eu te levo num sequestro relâmpago"! Pois veja! Desde pequeno e o moleque lidando com estas maldades. Se assim fosse, teria que prender a tal mulher naquele momento, mas sabemos que ela disse por dizer e pensou por pensar.
- Mas e se ela vier a fazer isso um dia, lá na frente?
- Aí a gente prende.
- Seu Nelson, o senhor vai me desculpar minha ignorância, mas não entendo isso, não. O senhor então sabe do mal, mas só pune quando acontece?
- Imagina que tu tem um pequerrucho, imaginou? Pois já sabe que o pequeno vai fazer muita traquinagem pela vida. Nem por isso o espanca logo de cara, para que ele pague pelo que ele nem ainda pensou em fazer mas que você já sabe que ele vai pensar...
- É, pensando assim... Faz sentido... Mas não sou uma criança. Eu ia assaltar mesmo.
- Ai! Que o senhor me cansa com esta retórica! É que fui com tua cara, senão já tinha te escorraçado daqui! O que o senhor quer então?
- Quero garantias de que não vou pensar no mal.
- Então me acompanhe neste pensamento: como haveria o bem se não fosse o mal?
- Ahn?
- Pois bem, explico: como o senhor saberia que pensou o mal se não houvesse o bem na sua cabeça?
- Prossiga.
- Oras, e é preciso? Se o senhor sabe que pensou o mal é porque há também dentro de ti o bem para que julgues. Isso é questão de bom senso. E veja no senso, o bom! Há bondade no senhor.
- Mas há maldade.

domingo, 10 de junho de 2007

Cenas do cotidiano

- ... e esse é meu filho mais novo - diz minha mãe.
- Noooooossa, como ele cresceu! O que você anda dando a ele? Você tá comendo bambu, criança? (Vira-se para minha mãe) Quantos anos ele tem?
- 21.




Charlie Brown joga uma pedra no mar.
Lino: Charlie, essa pedra levou 4 milhões de anos para sair do mar. E agora você a pega e a joga lá novamente!
Charlie Brown: Não há nada que eu faça sem que eu me sinta culpado...

sábado, 9 de junho de 2007

Snapshots V (Final do aniversário)

Minha tia saiu da cozinha. Foi discutir política com meu outro tio que estava na festa. É que ela quer ser candidata e ele não quer que ela seja.

Minutos depois e o marido dela fica terrivelmente incomodado.

- Rodolfo, vê se tua tia tá lá fora.
- (depois de verificar) Sim, por quê?
- Chama ela para dentro.
- Mas ela está conversando...
- Diz que seu avô é que chamou. Aì ela vem.
- Mas ela está conversando...
- Eu sei, mas diz que foi seu avô que chamou.
- Eu não. Eu acho que ela já está bem grandinha para saber sobre que assuntos ela pode ou não, deve ou não conversar. Qualquer coisa, posso dizer que é você que não quer que ela discuta política, pode ser?

Sem resposta.


- Rodolfo, desce sua bisavó nas escadas? - pediu minha avó.
- Certo e depois?
- Depois deixa lá que meu irmão vai dormir na casa dela e a leva até lá. (Só para constar, este irmão da minha vó, que é meu tio-avô, era o tal que estava discutindo com minha tia sobre política na cena anterior. O cara mais arrogante que conheço).
- Ok.

Desço, deixo minha bisavó na calçada. Ela vira para o tal tio-avô:

- Quico, você vai para casa?
- Vou. Pode ir andando. (Gente, ela é muito velhinha. Não consegue ir sozinha). E deixe a porta aberta, vê se não tranca como da outra vez. Vou dormi lá, você sabe. (e virou-se para continuar conversando sobre - pasmem! - vaca!)
- Então, meu filho, você me leva? - me pediu ela toda "cachorro-sem-dono".

Levei-a. Voltei para a casa da minha vó.

- Vem cá, seu irmão existe?
- Por quê? - perguntou ela.
- Simplesmente porque ele cagou para sua mãe. Mandou ela ir sozinha. E o filho-da-puta ainda mandou ela não esquecer de deixar a porta aberta porque ele vai dormir lá. Ah! "Pelamordideus", manda esse cara à merda...

Só reparei que ainda tinha visitas quando todos pararam de conversar e olharam para mim.

Final da festa. Acho que amanhã, no almoço, não volto mais lá...

Snapshots IV (continuação da mesma festa de aniversário)

Fui à cozinha de novo. Ainda as tais vacas.

Desci. Fui ao bar do meu pai e voltei.

Na sala, apenas meu primo. Parei do lado dele na janela, olhando a rua:

- E aí? Tudo bem?
- Tudo bem - respondeu ele.

Silêncio. Eu, ainda em tom de "tudo bem":

- Então, sua tevê nova já chegou?
- Sim, chegou!
- E está no seu quarto?
- Sim, por quê?
- Ué, então imagino que agora você já esteja dormindo no seu quarto sozinho todos os dias, não é? Porque antes sua mãe me disse que você só ainda não estava dormindo lá, mesmo tendo 17 anos, porque estava sem tevê...
- (sem graça) Sim, estou dormindo lá. (Risos amarelos)
- Ufa! Que bom! Fico feliz...

Silêncio sepulcral. Interrompo o silêncio:

- E então... Ouvindo muitos barulhos pela casa?
- Como assim?
- Ué, agora que você está dormindo no seu quarto...
- Ãh?
- Ué, imagino que seu pai e sua mãe...
- Ah! (sem graça) Tá maluco? Não sei não... Não ouço nada... Mas eles devem estar fazendo algo, sei lá! Eu vou saber?!
- Ué, não sabe? Quer? Peraí...
- Peraí o quê, rapaz?
- Ué, vou lá na cozinha perguntar. (vou andando em direção à cozinha)
- Peraí, ô rapaz, cê tá maluco?
- Não, ué, só quero saber se você vai ganhar um irmãozinho...
- AH! Isso eu já pedi!
- E não fizeram?
- Não, minha mãe disse que não quer mais...
- Sei (em tom de "então você já sabe porque não ouve barulhos"). Ao menos você anda fazendo barulhos?
- Como?
- Oras, quer que eu desenhe? Não anda tendo aulas de Biologia não?!

Parei com o papo. Mudei a tática. Contei das últimas vezes em que eu fiz barulhos. É para ver se o garoto se acostuma com a idéia... Quem sabe se da próxima vez ele, ao menos, deixa de falar de vacas... rs

Snapshots III (Continuação do aniversário)

Eu e minha tia na sala. Desisti de insistir no papo da cozinha. Me senti muito ET ali. Mais do que no dia-a-dia.

- Tia, vem cá seu marido e seu filho são gays?
- Como assim?
- Oras, do meu avô eu já desconfiava. Muito machinho... Do meu tio e do visitante também, pelo mesmo motivo... Agora do meu primo e do seu marido, não até hoje.
- Mas o que houve?
- Ué, um bando de homens. Tudo bem que não seria um papo muito mais desenvolvido, mas estou lá há meia hora e ninguém falou de mulher nem de futebol. Ou são gays ou zoófilos (ela claramente não entendeu a palavra)... Gostam de fuder vacas.
(risos).

Emendo como que se tudo fizesse parte de um mesmo assunto

- E aí? Trocou o carro, né?
- É... estamos satisfeitos com a troca. Quem diria. Não esperávamos.
- Ah, é? Pois eu já imaginava.
- Sério? Como?
- Ué, vocês tinham um fusca... Não iam ficar satisfeitos. Além do mais, fazem dívida uma atrás da outra...

Não sei... achei melhor sair da sala.

Snapshots II

Seis homens em volta de uma mesa de aniversário. Nenhuma cerveja ou bebida por perto. Um bolo e salgadinhos por sobre a mesa. E a conversa:

- Mas é uma bezerrinha boa aquela - disse Paulo.
- Poxa, mas aquelas que te mostrei aquela vez... - retrucou o outro.
- Mas daquela ninhada, eu tenho dificuldade de tirar o leite - respondeu o avô - minhas mãos até doem.
- Gente, mas qual o problema?! É só pararem de tirar o leite! - disse eu. (Risos em volta em tom de "vamos ignorar o comentário")
- Mas, seu Antônio (meu avô), mesmo assim daquela vez tu me deu manta! (risos) Pagou muito barato e sei que você anda vendendo bem aquele gado.
- E pra dar leite, Antônio, tem que ter bom pasto - disse o cunhado do meu avô. O clima ficou estranho... Todos entenderam que ele estava querendo dizer que o pasto do meu avô não era bom.
- E a Penha (minha avó) que não chega - comentou meu avô olhando para o relógio, claramente tentando amenizar o clima. - Disse que ia chegar às oito e já são quase nove! Essa missa que não acaba.
- Mas você não sabe viver sem ela? Sirva você os convidados! Além do mais o aniversário é seu - retruquei, na tentativa de falar de alguma coisa sobre a qual sei pouco, mas um pouco mais do que de vacas: relacionamentos.
- Ué (com cara de macho esperto-filho-da-puta), mas me casei para quê, então?
- Olha para o que o senhor se casou, eu não sei. Mas se quiser que eu desenhe ou te explique por que em geral as pessoas se casam eu posso explicar e, quase sempre, não é só para ser servido no aniversário - respondi.
- Amanhã vou tirar leite - interrompeu Paulo em voz alta.
- Ah, é? - meu avô virou a cabeça completamente me ignorando. Realmente tirar leite de vaca é mais interessante.
- E quanto tem conseguido - perguntou o outro.
- Uns dez litros, né, pai? - disse meu primo, o que com 17 ainda dorme na cama dos pais.
- Poxa, mas Pacheco, não quer mesmo meus bezerros? - insistiu meu avô.
- Seu Antônio, não to podendo comprar animal nenhum agora...
- Além do mais, Pacheco - disse eu - bezerro do meu avô não presta. Faz cinco anos que ele me deu esse bezerro. O bicho ainda é bezerro e já mudou de cor umas vinte vezes... Não entendo.
Risos. Acho que todo mundo entendeu que meu avô gosta de tentar me passar a perna.
Ele enrubescera.
- Então quer dizer que o bezerro que teu avô te deu nunca cresce? - perguntou o tal Pacheco.
- Crescer cresce. Mas aí quando volto pra ver, ele já diminuiu e mudou de cor... Tenho a impressão que quando vira vaca, deixa de ser meu, porque passa a valer mais...

Definitivamente, eu não sirvo para os negócios da família.

FIM do primeiro ato.

PS.: Não gosto muito da onda de "atos falhos", mas na frase acima, ao invés de escrever "sirvo", escrevi "servo". Será que quer dizer algo?

quinta-feira, 7 de junho de 2007

Carta aberta (desabafo)

Amigos,

Havia aqui uma carta imensa. Gigantesca. At the proper moment, ela pode voltar para o blog. Mas não creio que este seja o proper moment.
Adoro pensar que alguns de vocês leram. Fico chateado que nem todos tenham lido. Mas, enfim, mantenho abaixo dois trechos que gosto na carta.
As coisas estão clareando. Nuvens negras ainda pairam. Para os que leram, bem, o clima aqui não é dos melhores. Ainda há uma tentativa clara de usar os mesmos "guilty trips", mas sinto que estão desesperados porque não estão vendo resultados... Enfim... Mas passa, se até a uva passa (piada horrível!).

Beijos a todos,
Rodolfo



"Vamos usar uma metáfora? Pensemos então na seguinte situação: você joga na mega-sena acumulada, acerta os seis números sozinhos e... Chora. Chora de medo porque muito provavelmente tem algo errado acontecendo: como assim você ganhou os milhões acumulados e, ainda por cima, sozinho?! Deve haver algum psicopata dentro da Caixa Econômica que quer me matar e por isso fez com que eu ganhasse: quando eu for lá retirar o prêmio ele vai me esquartejar. E aí eu nunca vou buscar o prêmio e fico escondido dentro da minha casa. "



"Não há porque temer. Além do mais, a gente já sabe o que acontece no final: todo mundo morre. "

Diálogos

Pessoas, não sei, mas os diálogos me povoam. Acho que cheguei num ponto da vida em que conversar é fundamental. Os amigos, nem se fala! E aí os textos saem melhor sob a forma de um diálogo... E, sabe, tem sido legal escrever assim... É mais divertido. Tem... não sei... mais ação e o texto é mais direto. Está tudo ali, sem muito frufru e lenga-lenga.
Mas este texto aqui não é diálogo. É só para partilhar uma parada legal.
É que meio que recebi um convite "oficioso" para dar umas aulas de Sartre lá onde faço especialização. E é que eu ainda nem me formei. Poderia ter algo mais legal (e amedrontador) que isso?
Enfim, ainda é oficioso e dizem que não se deve comentar as coisas antes que elas aconteçam, mas é que não consigo guardar essa felicidade. Ou ponho pra fora ou corro o risco de ficar como Pedro, com tudo preso em seu coração e aí a única possibilidade vislumbrada é abrí-lo de modo nem um pouco metafórico.
Enfim, quando tiver mais notícias sobre, mais novidades, posto aqui.
De qualquer modo, oficioso ou não, é legal né? Dessa vez acho até que acabo de ler "Crítica a razão dialética" rs rs

Niño del amor, abre tu corazòn

No hospital, gazes ensagüentadas e pontos. O coração parava de bater. Não havia mais o que fazer. A equipe já havia feito de tudo para reanimar o jovem suicida.
Tudo agora era uma questão de tentar descobrir algum parente mais próximo ou amigo. Alguém teria ido com ele até ali? Não... Chegara trazido por uma ambulância que fora pedida por um transeunte.
Abrira o peito na Praça Quinze. Rasgara a pele do peito e atingira o coração, que fora aberto em dois. Podia-se muito bem ver a cavidade do átrio esquerdo e parte do ventrículo direito. Corte profundo. Difícil de se ver hoje em dia, a não ser nas mesas de cirurgia. Nenhum suicida teria ido tão longe.
Nenhum documento. Talvez venha a ser enterrado como indigente.
O corpo sobre a maca. A equipe já desistira de reanimá-lo há alguns segundo. A enfermeira do turno da noite cobre o corpo. Mãe de duas filhas e um rapaz que talvez tenha a mesma idade daquele ali morto a sua frente, não conseguiu não pensar no que poderia tê-lo feito matar-se. "Tão jovem", pensou. E por mais que pensasse, nunca conseguiria compreender o que houve na porta da boate próxima a praça Quinze aquela noite e que levou o rapaz a abrir o peito minutos depois, bem no meio da mesma praça.
- E eu disse "te amo" - exclamou o rapaz.
- Mas apenas disse...
- E o que queria mais?! Que eu me jogasse na frente do seu carro?
- Não. Não precisava disso!
- Então me diz, porra! O que queria?
As lágrimas já rolavam pelos olhos da menina que, assustada, respondeu:
- Por quê? Por que não consegue dizer e sentir ao mesmo tempo?!!!
- Como?
- É isso: você diz sem sentir. E sente sem dizer e sozinho. Sente, mas só, na imensidão de sua solidão. Não sente na minha frente. Você não é capaz...
- Não me diga do que sou capaz!
- (Gritando em meio ao choro) Você não é capaz de sentir! Você não é capaz de arriscar-se e fazer-se aberto na frente dos outros!
- Mas eu falo sobre tudo com todos. Como pode? Realmente você não me conhece e...
- E, o quê, Pedro? E, o quê? Agora vai dizer que não me ama, que disse só da boca pra fora?! Mas é disso que eu to dizendo e você não enxerga, seu merda! Tudo que diz é da boca pra fora! Ultimamente não há você naquilo que você diz... Só descompromissos, só falas descomprometidas!
- Você não pode estar falando sério. Não, não pode. E aquele dia na casa de sua mãe em que eu chorei quando seu pai contou de quando você nasceu?! Isso não é abrir-me? Não é mostrar o que penso e o que sinto?
- Não, Pedro! Isso não é abrir-se, a não ser quando há sinceridade nesse ato. Você perdeu a capacidade de expor-se! Diz "te amo", mas não está presente em nenhuma dessas cinco letras!
- Então, diz, porra! Diz o que eu faço?
- Não sei! (soluços) Não sei!
- Chegamos ao ponto sem retorno? (aos gritos) É aqui que tudo termina?
- Não quero que seja... Apenas... Menino amado, abra seu coração!
PS.: Brega, mas eu tinha que usar a música do Praga Khan "Picasso's dream" para fazer algo... rs

terça-feira, 5 de junho de 2007

O dívórcio bocal

- ... mas eu acho que ela fez bem! Bem mesmo!
- AH! Pois já eu penso que ela devia ter pensado melhor! Vingança pra mim tem que ser lenta, bem pensada! Se o bombeirão me trair, eu seguro e depois, quando ele esquecer, eu dou o troco. Assim dói mais.
- Mas a Ana Luísa já estava há muito tempo sendo corneada!!! E o marido dela! Aquilo sim é que é pilantra!
- AH! Eu concordo – disse eu, num tom de “entendo de tudo o que estão dizendo” e com cara de “adoro me intrometer na conversa alheia fingindo que sei tudo sobre o que estão dizendo”.
- E não é, Clarice?!
- É! – respondi convicta.
- Pois ontem o bicho pegou fogo! – disse a uma
- Mas eu continuo dizendo: Ana Luísa não teve culpa e fez bem! – disse a outra.
- Mas o que fez Ana Luísa? – disse eu, admitindo nada saber sobre o que estavam dizendo.
- Pois ela ta saindo com um cara mais novo. Mas é que o marido dela trai ela muito. Não é só às vezes não. Ele fica com a outra lá direto. E aí a Ana Luísa arrumou esse garotão e ta saindo com o garotão.
- É então que chega outra pessoa e percebe que falavam da Ana Luísa e diz:
- Pois é menina, o que que foi aquilo ontem?
- Aquilo o quê, gente?! – perguntei eu, impaciente.
- (rindo) Ué, você não viu? O final do capítulo da novela! O marido dela pegou ela com o garotão! Até eu pegava um garotão daqueles! – disse a uma, que não era a outra e nem a que chegou.
- É, mas a Ana Luísa não é santa... – disse a que chegou.
- Lógico! Ana Luísa é uma vaca! Trai o marido com um garotão e ainda no final do capítulo da novela pra fazer todo mundo ficar esperando o dia seguinte! – falei.
- Não! Ela só queria o amor de seu marido, mas ele traía ela. Acontece que ela nem está traindo ele... Eles estão divorciados. Se bem que o divórcio é bocal, mas ta valendo – disse a uma.
- Divórcio bocal?! – exclamei.
- Ué, eles não têm nada confirmado no papel mas já tão separados de boca! – explicou a outra.
Comentário: Lucas tem uma amiga que está assim. É divórcio bocal. Só bocal. Agora tudo faz sentido. Eu pensava que essa amiga do Lucas não podia beijar na boca, mas não... Agora compreendo.
- E agora o marido dela quer matar ela! – disse a uma
- Mas matar de verdade? – perguntei eu.
- Não! Bobo! Parece bobo! De verdade não! Matar só a personagem!
Ufa! E eu pensando que a atriz ia morrer... Mais um caso Daniella Perez, imagina?!