Na delegacia
- Resumindo, doutor, eu acho que devo ser preso. Me prenda. Eu preciso pagar pelo que fiz!
- Mas o senhor não fez nada!
- Como assim?! Doutor, o senhor tem estudo, mas acho que não entendeu... Olha, eu ia assaltar aquelas pessoas e...
- E aí? Assaltou?
- Não, doutor delegado, mas eu ia assaltar.
- E o que há de errado nisso?
- Sou o mal, doutor. Eu ia fazer o mal. Logo, sou mau.
- E fez o mal?
- Não doutor, mas pensei em fazê-lo. Olha, teve vez que perdi uma de minhas esposas porque pensei em traí-la. A gente tava coisando e ela achou que eu tava pensando na Gilvécia, que era nossa vizinha. Paramos por ali. Nos divorciamos. Nem sei por onde ela anda.
- Chato isso rapaz, mas você acha mesmo que a traiu?
- Não. Mas acho que ela tinha razão quando me deixou.
- Oras! O senhor está é doido! Deve é ser preso num hospício! Me diz que não a traiu, mas diz que é mau, como se concordasse...
- Senhor, se o senhor sai de casa com vontade de fazer o mal, não é mau o suficiente? Então o mal é ação?
- Olha, há quem diga que tudo "é", mesmo que só na cabeça da gente. Mas, rapaz, para a lei só vale o feito. O que o senhor fez?
- Já lhe contei, delegado! Tava em casa sem nada para comer. Não tinha nem um biscoito para vender na rua. Bala, chiclete... Enfim, nada para vender. E estas coisas de vender funcionam melhor quando se é criança. Então parti para a ponte Rio-Niterói disposto a assaltar as pessoas no trânsito. Hoje é feriado, doutor. Tá todo mundo voltando pra casa. A ponte a estas horas fica que é um monte de carro parados e buzinando!
- Mas assaltou?
- Não! No caminho vi uma placa: "Paz no trânsito! Paz para você". Acho que é coisa da Prefeitura. E aí deu um estalo na minha cabeça! Percebi o mal que ia fazer. E agora estou aqui. Não percebe? Me prenda, delegado!
- (Risos) Olha, vamos colocar um ponto final nesta palhaçada! A quem o senhor assaltou?
- A ninguém.
- Então não posso lhe prender. Ponto. Agora queira se retirar, por favor, que tenho mais o que fazer.
- Mas...
- Sem "mas"... Ôoo, Nelson, quer fazer o favor aqui?
- O quê, senhor delegado? - disse o Nelson de pronto.
- Retire esse senhor, que ele me importuna.
- (Gritando) Vamos saindo, rapaz!
- Vai me prender?
- Vou prendê-lo? - perguntou o Nelson para o delegado.
- Não. Apenas tire-o daqui.
- Pois veja, seu Nelson. Vim aqui para ser preso e sou escorraçado!
- Anda! Ande! - gritou o Nelson.
- Estou andando.
Já na porta da delegacia.
- Mas o senhor veja, seu Nelson. A gente que é mau de verdade não é punido.
- E o que é que se passou? (simpatizando com o rapaz e, ao mesmo tempo, curioso quanto ao que se passara)
- Pois acontece que eu ia assaltar umas pessoas na ponte Rio-Niterói, mas no meio do caminho me dei conta do mal que ia fazer. E aí decidi vir para a delegacia render-me.
- E fez o mal?
- Não, mas pensei! E o que é o mal para você? Se sou capaz de pensar nesse mal, mesmo não o tendo feito, pode muito bem ser que o faça. Prefiro garantias.
- Garantias?
- É, preso não corro estes riscos...
- Mas o senhor é bom, não vê? Percebeu o mal que ia fazer e veio aqui entregar-se antes que o mal estivesse feito. (silêncio. Emenda em tom desejoso) Ah! Se todos os criminosos fossem assim!
- Então concorda.
- Concorda com o quê?
- Que sou um criminoso!
- Não, é só força de expressão.
- Então o crime não é só no pensamento...?
- Mas mal todo mundo pensa. Ainda mais nos dias de hoje. Veja você que ontem eu estava no ponto de ônibus para vir para a DP e ouvi essa mulher brincando com o moleque no colo da outra "Ai, que eu te levo num sequestro relâmpago"! Pois veja! Desde pequeno e o moleque lidando com estas maldades. Se assim fosse, teria que prender a tal mulher naquele momento, mas sabemos que ela disse por dizer e pensou por pensar.
- Mas e se ela vier a fazer isso um dia, lá na frente?
- Aí a gente prende.
- Seu Nelson, o senhor vai me desculpar minha ignorância, mas não entendo isso, não. O senhor então sabe do mal, mas só pune quando acontece?
- Imagina que tu tem um pequerrucho, imaginou? Pois já sabe que o pequeno vai fazer muita traquinagem pela vida. Nem por isso o espanca logo de cara, para que ele pague pelo que ele nem ainda pensou em fazer mas que você já sabe que ele vai pensar...
- É, pensando assim... Faz sentido... Mas não sou uma criança. Eu ia assaltar mesmo.
- Ai! Que o senhor me cansa com esta retórica! É que fui com tua cara, senão já tinha te escorraçado daqui! O que o senhor quer então?
- Quero garantias de que não vou pensar no mal.
- Então me acompanhe neste pensamento: como haveria o bem se não fosse o mal?
- Ahn?
- Pois bem, explico: como o senhor saberia que pensou o mal se não houvesse o bem na sua cabeça?
- Prossiga.
- Oras, e é preciso? Se o senhor sabe que pensou o mal é porque há também dentro de ti o bem para que julgues. Isso é questão de bom senso. E veja no senso, o bom! Há bondade no senhor.
- Mas há maldade.
Sábado
Há 10 anos
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