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terça-feira, 1 de setembro de 2009

Norberto

Ainda muito criança pensava em ser astronauta, mas lhe diziam que não haveria capacete que lhe coubesse na cabeça de tão grande que ela era. Que não era grande, ele dizia, e se é grande é pelo muito pensar, completava. Riam-se todos os meninos. Fato é que a cabeça de Norberto era grande sim e que não caberia em capacete nenhum. É então que digo que, por sorte, desistiu do sonho de ser astronauta e decidiu ser copeiro.
Mas copeiro é coisa de gente que não tem estudo, menino!, dizia-lhe sua mãe, aflita com a idéia do filho de não ser doutor para ser descascador de batatas. Descascasar batata da casca, mamãe, é tarefa de descobrimento! Ou será que é sempre sabido como vai ser a batata debaixo da casca?, respondia.
A mãe chegou a levá-lo ao doutor Pareto para ver o que estava acontecendo. Esse menino sofre de imaginância, dona Coisinha!, sentenciou o médico. E isso é grave, perguntou a mãe, novamente aflita. Teve como resposta um não categórico do doutor Pareto e uma receita: teria que ler para o menino algumas estórias todos os dias antes dele dormir.
Assim se fez, até que Norberto decidiu: eu vou ser gente grande!, anunciou num almoço de domingo. Gente grande todo mundo vai ser, meu filho, disse-lhe o pai.
Por fim Norberto cedeu às demandas e, já crescido, entrou para a faculdade de Economia, que terminou com louvor e mais rápido do que o previsto. Finda a graduação, Norberto pós-graduou-se em Micro-economia dos Países em Desenvolvimento nas Américas do Sul e Central, tendo defendido a tese de que quanto maior o volume de produção dos países em desenvolvimento pior o IDH (índice de desenvolvimento humano).
Coroando sua trajetória profissional, Norberto conseguiu, após ter trabalhado em diversos cargos menores em empresas de médio-porte, uma posição de Diretor de Estratégias de Longo Prazo em uma gigante global ainda em franca expansão.
Seus ganhos eram excelentes! Não se contabilizavam em pirulitos ou balas, nem em nuvens de "algodozão" doce (que é como ele chamava sua guloseima predileta), mas sim em uma sequência quase infinda de zeros à direita de sua conta bancária.
O foco de Norberto deixou de ser o IDH para ser o EBITDA. Cobrava de seus funcionários o estudo de estratégias cada vez mais precisas para que a companhia atingisse no fim do ano o posto de maior empresa global em seu ramo, quiçá a maior de todas! A pressão era tanta que os empregados da equipe de Norberto inclusive começaram a procurar trabalho em outras empresas, até mesmo menores. Entretanto, não era difícil conseguir novos talentos para trabalhar com ele, porque nosso menino agora já era considerado um monstro da economia e muitos homens dariam suas vidas para passar uma tarde sentado diante de Norberto ouvindo o que ele tinha para lhes dizer.
Em casa, a esposa de Norberto é que não gostava nada disso. Casaram-se ainda jovens. Norberto nem bem terminara a faculdade quando se apaixonaram e se casaram. Coisa de jovens, já já se divorciam, dizia Dona Coisinha. Qual nada! Milena podia ser nova, Mas não sou louca e se eu me casei é pra fazer dar certo por toda a vida!, ela gritou com Norberto numa noite em casa. E lançou sua decisão certeira no peito dele: Quero ter um filho!
Se ter um filho acalmaria os ânimos em casa, que assim fosse.
Catorze meses depois nascia Norberto Jr. Uma graça o menino! Foi matriculado na melhor escola da cidade, aos cinco anos já sabia falar espanhol, inglês, francês e arranhava o italiano. Apesar de ainda só arranhar o idioma, foi mesmo em italiano que proclamou numa manhã de sábado quando ele, o pai e a mãe viajavam para Nova York (Norberto iria participar de uma conferência no domingo a tarde e, por insistência de Milena, levara toda a família).
- Voglio essere quando crescere astronauta - que era um jeito errado de dizer que queria ser astronauta quando crescesse.
Norberto, que tomava a primeira dose de seu uísque naquele dia, cuspiu todo o gole que sorvera sobre o vestido de Milena. Nervosa, a mulher disse: Calma, Norberto, que Norbertinho é criança ainda! Isso muda, não é, filho? Quando você crescer você vai querer ser como o papai.
O vôo foi tenso a partir daquele momento.
Naquela noite, Norberto sonhou com uma planilha gigantesca de excel. Em todas as 65.536 linhas que tinha a tal planilha lia-se: Eu quero ser astronauta, mamãe! Eu quero ser copeiro, mamãe! Eu quero ser gente grande!
Sobressaltado, Norberto acordou e quando conseguiu se recordar do sonho, chorou! Tentou segurar as lágrimas já que tinha que ir à conferência àquela tarde, contudo teve que cancelar o compromisso e voltou com a família na manhã do dia seguinte para o Brasil com Norbertinho no colo. Súbito tinha sido tomado por um orgulho e uma gratidão imensos em relação ao moleque!
E na terça, quando chegou ao trabalho dando bom dia e sorrindo para seus empregados todos ali sabiam que algo havia mudado nele. Nem Norberto, nem Milene, nem Norbertinho, nem Dona Coisinha e nem os tais empregados sabiam bem o que era e se iria durar mais tempo do que só aquela semana, mas Norberto sabia bem no fundo que Naquele fim de semana fui a Nova York reencontrar-me a mim mesmo, ele me contou aos 97 anos com seus bisnetos no colo. Eu... Eu era o que estava no joelho esquerdo.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Indignação

A seleção dos escravos era feita nos entrepostos pelos próprios interessados pela
compra do escravo. O exame mais importante e rigoroso era o realizado nos dentes,
e uma ligeira inspeção para apontar eventuais manifestações de algum tipo de doença.
(SOUTO, Saúde no trabalho: uma revolução em andamento. Senac Nacional, 2004. Rio de Janeiro)


Nada muito longo para escrever, nem muito poético. Aliás, não consigo ser poético diante de algo como o que relato:
Pois que o diretor de onde trabalho conheceu duas novas empregadas.
Ambas são jovens e humanas. Cada uma a seu estilo é séria, estuda. Agora buscam entrar no mercado de trabalho através de uma empresa dita "dos sonhos".
Tendo sido apresentado à ambas num final de dia, às oito da noite, quando não era para nenhuma das duas estar na empresa, eis que ele diz:
"Hum, essa aqui tem porte, é séria, parece que vai dar uma profissional. Mas essa aqui, não sei não!"
Perdoem, queridos, se esperavam um texto bonito, mas a proposta aqui é só mesmso desabafar! Ele disse isso diante das duas! E elas estão só começando, meu Deus!
Ai, meu Deus! O que eu faço? Se eu estivesse presente eu SEI o que eu faria, mas e agora que o tempo já passou e eu nem estava lá para intervir.
E, o que mais espanta: ninguém fez absolutamente nada.
As duas saíram e foram beber juntas para relaxar, ambas chocadas com o tratamento recebido e vieram me contar no dia seguinte.
Escrevo a partir da dor de saber da notícia, do pasmo, da perplexidade e da revolta.
Meu Deus, olhai por nós!

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Poema anti-natural da inocência

Pois que sendo dotado de uma natureza diversa daquela de parir
Fui dadivado com o fazedor de pipis proeminente
Característico da virilitude macha.

Eis que então narro-lhes um fato:

Homnimais! recriamos a fazedura dos atos divinos
E inventamos as prisões até mesmo para um ato natural e contínuo:
A água que entra em mim, sai: jato de mijo quente
Descendo pelo meu pau e subindo pela minha espinha em arrepios tais
que me causam prazeres subreptícios e/ou explícitos.
Com as involu-revolu-evolu-ções do eu-homem
Acabei por ter meu pau, meu mijo e o eu de mim
preso à amplitude limitada do... banheiro!

Mas o banheiro não é aprisionamento e sim condicionamento!
replicam os polidos, os educados, os conservadores.
Mas que, educada-polida-conservadora-mente, fodam-se!
que o banheiro é, sim, controle de minha natureza primeira!
é ordenar que volte para dentro o rebento que arrebenta o corpo de sua mãe
e vem conhecer o mundo!
é subjugar o produto de minhas entranhas humanimais
e mandar que volte para dentro o mijo que me desce
que me enregela,
que me aperta.

E, sendo ou não prisão, fato é que por não ter ido ao banheiro
quase que fui preso ontem no finalzinho da tarde:
- Meliante, mãos ao alto! Solte esse pau e recolha esse jato!
Ao que respondi:
- Senhor policial, mas que desacato! Se o senhor morasse na roça
mijar não seria a questão. Duvido mesmo é que o senhor não cagaria no mato!



Ps.: Queridísssimos, o poema é ingênuo, mais mesmo uma forma diferente de contar esse fato inusitado: ontem quase fui mesmo preso porque estava mt apertado da viagem de volta da casa dos meus pais e pedi à minha irmã para parar o carro pra eu fazer um rápido pipi. Obviamente o policial queria que eu desse dinheiro a ele, o que resisti a fazer e esperer até que a patrulha chegasse para rir da cara do policial que me "prendeu" e me liberar.
Ah! e dando o crédito a quem devo, a expressão "homnimal" e "humanimal" é criação do teatrólogo francês Novarina em seu "Discurso aos animais", duas peças escritas por ele e reunidas sobre esse nome e belamente representadas por Ana Kfouri.

terça-feira, 14 de julho de 2009

Arraiá do Sórrindo


"O alcance de um trocadilho, de uma boa inversão frasal
ou de um bom uso de regionalismo é incalculável"
(Empregados da empresa X, organizadores do Arraiá Sórrindo)

Fernanda é uma gestora em uma grande corporação. Rogério, seu subordinado. Trabalham na área de Recursos Inanimados e Anti-Idéias Criativas da empresa que, há anos, é responsável pela maior fatia no mercado de devastação ambiental da América Latina (este nicho, considerado ilegal nos idos anos 00, agora era abertamente considerado altamente rentável pelo gorverno que, por sua vez, conseguiu convencer a ambientalistas e humanistas que o ideal seria acelerar o processo irreversível de destruição do planeta).
Quando chegou no setor a notícia de que uma área da companhia iria fazer um Arraiá Julino, Fernanda colocou Rogério no encalço da idéia.

- Pois os empregados podem perceber como uma festa é agradável! Impeça! - disse ela.

Rogério esboçou uma cara de insatisfação. Há tempos não concordava com as mudanças ocorridas no seu setor, outrora conhecido como "Setor de Recursos Humanos e Idéias Provocadoras", e, infeliz, apertou mais uma vez o botão vermelho ao lado de seu laptop, sobre o qual lia-se "Botão das Anti-Idéias".
Imediatamente, gases obnubiladores de consciência vazaram pela tubulação até atingir todos os empregados do setor festeiro e o arraiá desfez-se.
Rogério não conseguiu dormir aquela noite... Ficou pensando em todas as transformações que aconteceram em seu setor, na postura de Fernanda naquele dia. E foi então que teve uma idéia anti-anti-idéia: iria propor à Fernanda um arraiá, garantindo-a que isso serviria como anti-arraiá para todos os demais setores, pois tudo que o setor de Recursos Inanimados e Anti-Idéias Criativas fazia tornava-se imediatamente idéia abominada por toda a empresa.
E assim foi feito. No dia seguinte apresentou sua idéia à Fernanda que, apesar da resistência inicial, abraçou a proposta.
Foi assim que aconteceu o Arraiá do Sórrindo, nome que fez todos os empregados da empresa rirem desesperadamente. Apenas Fernanda e os demais executivos acreditaram que eles riam de medo da comemoração e que a lição estava ensinada. Mas Rogério e todos os outros sabiam que "O alcance de um trocadilho, de uma boa inversão frasal ou de um bom uso de regionalismo é incalculável". E sorriram desesperados: pela primeira vez em anos debocharam de seus executivos, exorcizando bons velhos fantasmas.
Depois daquela data, todos os empregados da empresa X passaram a referir-se ao Arraiá do Sórrindo como "o dia em que fomos felizes novamente" e Rogério e os demais não ficaram por muito tempo na empresa X, pois pensavam diferente.
Devagar, a empresa X saiu do mercado: não encontrava sequer um profissional disposto a trabalhar com eles: era a semente de Rogério e dos demais dando frutos.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

O Nome da Cidade (Caetano Veloso)

Onde será que isso começa
A correnteza sem paragem
O viajar de uma viagem
A outra viagem que não cessa
Cheguei ao nome da cidade
Não a cidade mesma espessa
Rio que não é Rio: imagens
Essa cidade me atravessa
Ôôôô êh boi êh bus
Será que tudo me interessa
Cada coisa é demais e tantas
Quais eram minhas esperanças
O que é ameaça e o que é promessa
Ruas voando sobre ruas
Letras demais, tudo mentindo
O Redentor que horror, que lindo
Meninos maus, mulheres nuas
Ôôôô êh boi êh bus
A gente chega sem chegar
Não há meada, é só o fio
Será que pra meu próprio Rio
Este Rio é mais mar que mar
Ôôôô êh boi êh bus
Sertão ê mar

terça-feira, 23 de junho de 2009

Pequeno Acontecimento Anti-Cotidiano

Quando acordei do sono profundo em que estava, ouvi o barulho. Ou talvez tenha sido acordado pelo barulho e o sono não era tão profundo assim. Era a realidade do mundo me convocando: "volte! volte!".
O prédio era alto, quase um arranha-céu carioca, e eu estava no sétimo andar. Meu computador brilhava diante de meus olhos. Uma planilha me olhava e, sedutora, pedia: "Me preencha! Me preencha!". Inebriado por aquele pedido sedutor, eu inseria números, nomes, combinações alfa-numéricas y otras cositas más. Estávamos, eu a planilha, quase no momento de gozo quando então, com a vista cansada, eu me levantaria e tomaria mais um café com água gelada.
A empresa andava calma por estes dias. Sim, era um prédio corporativo e eu... Eu estava no trabalho.
Que não me venham com absurdidade ético-morais. Nada de questionamentos sobre meu papel nem ao menos sobre o que eu deveria ou não fazer. Acho que já deu para ficar claro que, em verdade, nunca dormi no trabalho. Não consigo. Por mais que eu tente, sentado na privada de uma das cabines do banheiro, relaxar e tirar um cochilo, nunca consegui sequer deixar meus olhos fechados por mais que um minuto.
Bem, mas voltando a mim e à planilha, estávamos quase no gozo. Foi quando ouvi o barulho. O suave ruflar de asas canoras. E um pio tímido. Tímido. Tímido. Que foi crescendo, crescendo, crescendo, crescendo, cres-cen-do, c-r-e-s-c-e-n-d-o! E mais, e mais, e mais! Todos do andar escutaram. Era um pássaro. Preso no gesso do teto rebaixado. Preso naquela escuridão.
Eu e os outros, nós estávamos à luz do dia e da luz branca corporativa. Estávamos sob o júdice das câmeras de segurança. Ele estava na escuridão daquele espaço entre o teto e o gesso. Ele cantava. Eu preenchia minha planilha. Eu e os outros, todos preenchíamos planilhas. Alguns falavam ao telefone.
Ao piar do pássaro e ao ruflar de suas asas, tudo parou. O mundo suspendeu-se de si. Ouvimos uma voz vinda do mesmo espaço entre o teto e o gesso. Alguns diziam que era apenas o cantar daquele pássaro, mas eu e outros dizíamos: "É ele! É o mundo! E ele nos chama: 'voltem! voltem!".
E sem pegar nossos objetos pessoais, sem desligar computadores, sem avisar aos familiares, descemos em disparada pela escada, ultrapassamos as catracas do prédio, perfuramos as ruas apinhadas de carros e atingimos certeiramente o mar, onde nadamos até perder nossas forças e morrermos em liberdade.

segunda-feira, 22 de junho de 2009

No caminho, com Maiakóvski

(Eduardo Alves da Costa)

Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.