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quarta-feira, 18 de junho de 2008

O silêncio e a vida

Houve um tempo em que eu tinha medo do silêncio. Eu escrevia sobre ele. Hoje, não tenho medo. O silêncio, dentro dele, é palavras. É que sei que o silêncio é palavra.
Foi então, depois que perdi o medo, que me amordaçaram. Mas eu sabia que não era preciso a voz para gritar. A vida segue, apesar das mordaças. E a vida fala, apesar das mordaças. Minha vida é meu relato. Hoje, relato que me amordaçam e que da minha vida não posso dizer nada além do que solicitam que diga. Mas para além do limite existe o além-limites e lá é que está minha vida.
Viver é uma forma de falar. A não-vida é que é o profundo silêncio. Quieto, calado, com a fala tolhida e a voz abafada, eu grito que amo. E grito que é a melhor das coisas amar a coisa amada. E esse grito é grito de poros, é grito de corpo todo: é grito de vida que se vive. E sem vergonha de viver.
Não temo o silêncio. Tenho uma vida inteira e estou inteiro nela.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

O que não se define

Ou De uma longa espera interrompida
Ou O que se espera é agora
Ou De quando Olfodor sentiu


Então o amor era isso que não se define. Isso que nunca se define. Pois que sentia amor e sentia medo. E sentia amor e sentia saudade. E sentia amor e sentia pressa. O amor era carregado de sentimentos e sensações. Vinha acompanhado de uma ânsia de futuro que o acorrentava ao presente. Vinha acompanhado de um carrilhão de passado que o abandonava na estação do momento. O amor era o agora.
Sempre pensara que o amor era coisa que vinha com o tempo. Só os velhos amores amavam. Passara a vida à espera de uma velhice amorenta que nunca chegava. Mas era novo e pensava que a velhice amorenta ainda demoraria. O amor era, então, uma longa e certeira espera, posto que sentia em si o passar lento dos anos.
Apesar da esperança certeira de uma velhice que viria e que traria consigo o amor, Olfodor começou a desacreditar em coisas de paixão. Calafrios era o que sentia ao passar da brisa modorrenta de um verão carioca. Palpitações seriam apenas o resultado do medo de andar sozinho pela cidade grande. Para uma mente cartesiana, para cada coisa, sua causa. O amor seria, então, uma série de eventos que nunca viria. Que nunca havia vindo.
Mas o nunca, e o havia, e o vindo, falam, reunidos, de uma coisa que era mas que já não é. Pois que um dia Olfodor encontrou-se com o amor. Então, teve que admitir para si que ele, o amor, era bem mais simples, leve e possível do que ele imaginava. E ainda jovem, Olfodor foi capaz de sentir o amor.
Foi assim que terminou uma longa espera e o amor era isso que não se definia, mas que ele sentia: agora.

terça-feira, 22 de abril de 2008

A felicidade era, sim, minha!

"É quando as emoções viram luz, e sombras e sons, movimentos
E o mundo todo vira nós dois"

É que, sim, eu vi um pássaro verde passando veloz diante de meus olhos numa manhã clara de sábado. Logo entendi o sinal: era a felicidade que eu tanto havia pedido e que viria com tantos adicionais que nem eu mesmo era capaz de imaginar que existiam para incluir no pedido.
Desde então, o céu da cidade, mesmo nublado, me parecia de um azul claro e límpido, como só as águas de um mar calmo que eu ainda não conheço.
Alguma coisa deveria ser feita disso, eu sabia. Era uma felicidade que clamava por ser gritada. Em mim, senti revoluções de sóis e planetas que nem nunca estiveram no meu mapa. E senti um ímpeto de correr até o ponto mais alto da cidade, de onde a felicidade seria gritada e poderia ser ouvida por todos.
Esta felicidade é tão minha e tão estranha a mim que ainda penso se o tal pássaro passou para mim ou se eu é que roubei a felicidade que ele levava para alguém. Mas é que vendo o pássaro, vi o rapaz ao meu lado e... Ah! A felicidade era, sim, minha!

sábado, 19 de abril de 2008

Clarice 5

Escrever sobre Clarice é escrever sobre uma inesperada e dolorida ânsia de felicidade. Escrever sobre Clarice é lidar com o incontrolável de mim, que sou todo controle. Porque ela, sendo eu, me escapa. E eu, sendo eu, me escapo. Clarice é um escapismo. Clarice é uma catarse e escrever sobre ela é como escrever sobre mim, mas ao contrário. Posso olhar a vida de Clarice à quilômetros de distância, ao passo que minha vida olho de dentro. Escrever sobre Clarice é lidar com minha dor nela.

Estou apaixonado por Clarice e Clarice está apaixonada pela vida. A dor que sentira àquela noite depois do cinema acordara Clarice para a vida. Agora a moça vive. Tem algo pulsando em Clarice e este algo é a própria vida. Esta vida agora pulsa em mim, mas queria que não pulsasse. Queria libertar-me de Clarice e a liberdade é logo ali, no ponto final de cada parágrafo. Mas eles recomeçam, os parágrafos. Sempre recomeçam.

Pois que Clarice conhece a solidão e a dor da vida, mas não conhece o que é a beleza. É isso que me faz escrever sobre ela. Tenho ainda a esperança de ofertar a beleza à Clarice. Penso em plantar uma árvore na frente de sua casa e quando ela acordar terá uma surpresa. A beleza da vida cantando nos galhos, os pássaros. Penso em desenhar um sol forte por detrás da árvore e a janela de Clarice será um quadro e será impossível não ver a beleza, mas Clarice é cega. A dor e solidão a cegaram.

Sinto que mesmo que colocasse a beleza diante de Clarice ela não será capaz de reconhecer. O que fazer para salvá-la? Salvar Clarice é minha salvação e salvar é difícil. Trabalho árduo o de salvar personagem decaído. É que não gosto de me intrometer na vida de personagens. Da última vez que fiz isso, Clarice conheceu Cláudio e acabou chorando a dor em sua cama no final de um domingo. Eu mesmo tive que chorar minha dor, que a dor de Clarice é também minha. Tenho medo de sentir novamente a culpa por ofertá-la um caminho, que, como caminho, é caminhada. Só oferecerei agora a Clarice o que for caminho caminhado, caminho sabido, caminho certo, que ao menos terei como lidar com as dores por poder antecipá-las. Quem sabe não possa mesmo acalmar Clarice e fazer-lhe um carinho em algum momento mais pesado que já saberei por antecipação? E quem sabe no caminho Clarice não veja a beleza?


Não posso controlar o mundo que cerca Clarice, tampouco. Nisso é que moram os desacertos do caminho certo. Por mais que eu desenhe e traceje e planeje, algo se coloca no percurso de modo tão forte e intenso que é impossível que eu dê jeito apenas com as palavras. Tenho, então, que aceitar meu papel e apenas escrever. Mas não vou escrever sobre a realidade. Não vou contar os fatos, que eles me cansam. Vou apenas deixar Clarice passar por mim. E ela passa:

Escrevo sobre a noite em que Clarice viu diante de si a beleza. Clarice, que era cega, foi capaz de ver a beleza. Com os olhos viu a beleza e foi capaz de sentir a beleza. E sentindo a beleza, foi capaz de dormir com ela. E acordando, levou-a consigo para sua casa e agora caminha com ela pelas ruas da cidade e tudo o que fala é beleza. E tudo o que faz é beleza. O mundo transmutou-se em belezas várias e Clarice até deu esmola para o mendigo.

A noite em que Clarice viu a beleza e sentiu a beleza foi uma noite de vontade de chorar. Clarice sentira vontade de chorar diversas vezes aquela noite, como quando ele sentou-se diante dela e ela o olhou nos olhos. Sentiu-se tão profundamente tocada naquele momento, a chama da vela tremulando, os olhos dele no dela e as mãos dela nas dele, que sentiu vontade de chorar enquanto pensava que aquela havia sido a coisa mais bonita que já lhe haviam feito na vida. E não pensou em mais nada aquela noite que não fossem bonitezas como aquela que estava vivendo naquele exato instante.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Clarice 4

Esta é a verdadeira continuação da história de Clarice. A parte 3 fica como a incapacidade do autor, ansioso, de terminar seu texto, cedendo à necessidade de escrever algo. O texto sobre Clarice, contudo, acho que não terminou e vem uma parte 5 aí... Quero logo acabar com isso, porque, como o autor do texto, eu, Rodolfo, também acho que estou me apaixonando... Tanto por Clarice como pelo autor dela.
A dor de Clarice
Ou Sobre como um autor pode intervir
Ou Da paixão concreta e incompreensível
Ou "Filme triste que me fez chorar"
Ou Ai Clarice, para quê?!
Ser autor é um fardo. Ser autor é minha cruz. E Clarice é minha cruz desde quando fui eleito autor dela. Ou fiz-me autor dela. Sinto-me responsável por Clarice. Sou sua mãe. Sou seu pai. Sou seu único irmão e ela é só no mundo. Decerto que tem Alex, mas isso não lhe basta. As coisas, quando nos bastam, não necessitam de escamoteamentos. Não temos medo do que nos basta, porque o bastar, mesmo amedrontador, é reconfortante. Como autor, temo a falta de controle que tenho sobre Clarice. A vejo quando ela já foi. Quando ela já existiu. É então que a escrevo: quando o leite já for derramado e é tardio qualquer lamento. Alex seria um lamento, mas agora é um fato. Preciso escamotear os fatos de Clarice. Escondo a verdade dele e sobre ela. Deixo-a pensar no ônibus, a caminho da casa de seus pais, deixo-a a pensar em Alex. Clarice não sabe ainda que Alex não existe. Só sabe que ele mora longe e isso não fui eu que inventei. Pudera eu ter inventado isso tudo e Alex, de fato, não existiria e Clarice seria uma moça fadada a amar idéias. Mas, certo, devo admitir que Alex existe, mas não com a proximidade com que permito que Clarice pense nele. Decerto não há muito que fazer. Se sou autor de Clarice e ela é parte da cruz que carrego, isso se deve exatamente aos limites que tenho como autor dela. Não posso chegar para Clarice e dizer-lhe: “Querida, Alex é outro Felipe. Alex é uma idéia. Perco um segundo meu olhar sobre você e você está diante da tela daquele computador sorrindo como boba. Perco um segundo e lá está você apaixonada por outro que vive distante.”. Pois Alex mora longe e a ida de Clarice para encontrá-lo custou-lhe todas as suas economias. Eu tenho economias, mas não emprestarei à Clarice nunca, por mais que alguém reclame e fale de minha avareza. Não se trata de avareza. Trata-se, mais que tudo (e digo mais que tudo, pois que pode haver um tanto de avareza nisso), trata-se de deixar que Clarice quebre a cabeça mais uma vez sozinha. Quero vê-la aprender alguma coisa enquanto a acompanho. “Clarice! Cuidado!”, eu poderia gritar. Mas de quê me valeria se eu não sou ela e se ela segue seu caminho às próprias custas. Ir à Portugal ver Alex custou-lhe um ano e meio de serviço. Inclusive, mas isso ela nunca contaria a ninguém, ela quebrou seu porquinho roxo. Aquele que ficava ao lado de sua cama, no criado mudo. Mesmo o criado, mudo, tentou dizer a Clarice para não cometer o que cometeria com aquele martelo, presente de seu pai. Contudo, era mudo o coitado e ficou afoito. Creio que nunca ficou tão desejoso de falar. Ser autor é meu fardo e vejo Clarice amando, mais uma vez, uma idéia. Tem cruzes que pesam mais que as outras. Já escrevi sobre muitas gentes, sobre mim inclusive, mas Clarice é o maior peso. Nem eu sou um fardo tão grande para mim. Clarice me tira o sono e todas as noites, antes de dormir, perco uma ou duas horas escrevendo sobre ela. Não quero mais falar de Clarice. Quero falar de mim.
Meu nome é... Qual é mesmo meu nome? Ai, que esqueci-me de mim e vejo Clarice sentada em frente ao seu computador novamente. Espera o infante... Que não vem. Espera o infante que não chega, que não chega, que nunca chega. Deus! Como Clarice é doente! Pudera eu, mandaria um médico para a vida de Clarice! Pudera eu e tudo se resolveria deste modo. Pois que agora, aliás, ela anda tendo surtos febris e não sabe do que se trata. Pois eu digo do que se trata mais uma vez, se alguém o esqueceu: Clarice ama, mais uma vez, uma idéia. Se encontro Alex, o destruo com um ‘backspace’, o deleto de meu texto. Isso não seria deletá-lo da vida de Clarice, entretanto. Melhor prender-me aos fatos e, se puder, coloco alguém que ajude Clarice, tão cegueta, a caminhar. Clarice precisa de muletas.
Clarice cansa de sua espera teimosa. Desliga o computador e vai dormir. Acho que farei o mesmo. Tenho vertigens junto com Clarice, que está doente. E nenhum remédio me cura, porque sofre de crise de personagem mal resolvido. Não há remédios para dores de autor. Mesmo que tivessem, talvez não me bastassem. Clarice é um pé no meu saco. Aquela dor que demora e vem lenta e lancinante. Aquela dor que se anuncia aguda e sobe rascante. Nota para um momento posterior: preciso matar Clarice antes que ela me mate. Billie Holliday toca na vitrola. Se Clarice ouvisse jazz, ela seria diferente. A música liberta almas presas. Clarice tem uma alma presa ao destino de apaixonar-se pelos errados, pelos que não existem: pelas idéias. A vida de Clarice carece de som e todo esse texto é monocórdico. Vou adicionar som ao texto. Leiam-no ouvindo um bom jazz e vejam se cabe. Escrevo-o ouvindo um bom jazz. Clarice dorme diante de meus olhos. Veja! Como dorme pesado. Aqueles olhos, que agora olham para dentro, não enxergam. No sonho de Clarice, alguma coisa sobre pássaros aprisionados mas que se sentem livres na gaiola. A vida de Clarice é uma jaula, estando ela presa a paixões irreais. Clarice não vai ao cinema e não ouve música. Pudesse ela ver um Allen e teria as duas coisas: jazz e um despetar. Talvez chorasse mais três horas e quinze minutos ao compreender que, mesmo existindo, lá longe, em Portugal, Alex é mais uma idéia. Se puder, quando ela acordar, coloco música em seus ouvidos. Isso seria mais que acordar: seria despertar Clarice para a vida.
Clarice, desperta, é mais interessante que Clarice dormindo. Esta me dá sono, aquela, medo. Tenho medo de Clarice. Tenho medo de que Clarice.
Vamos, querida! Ande pela cidade e ouça a música! Sim, tive que fazer algo que já há muita dor em tudo. Não vou matar Clarice. Pretendo salvá-la com uma música e um médico. Segue ela pela rua. Todos os dias, segue ela pelas mesmas ruas a caminho do trabalho. Até conhece as pessoas e pensa: “Agora me vem a passar aquele homem de camisa suja de poeira de obra”. Não sabia se era de obra, mas Clarice, minha história, era dada a criar, também, histórias. Melhor: ela cria estórias, eu conto a história de Clarice. Por sorte ela irá notar que naquela loja de velharias há hoje algo de diferente. Clarice tem nojo de velharias e quando sua avó era viva ela detestava os almoços de domingo, porque tinha que encarar aquela pele de papel que sua avó tinha. Não tenham raiva de Clarice. Ela nunca contou isso a ninguém e sempre foi algo que guardou tão bem para si que nem mesmo a avó notava e Clarice era sua neta predileta. A avó de Clarice já quis, por sinal, ser Clarice, até entender que só podia-se ser Clarice através de Clarice-ela-mesma. Ela, que sempre seguia para o trabalho de camisa branca e passava pelo mesmo caminho, chegava a evitar a porta da loja de antiguidades. Temia envelhecer tanto como, dizem as gentes, um pobre diabo teme a cruz. Mas hoje fico na torcida para que seja diferente. Personagens têm vida própria. Nós autores só fazemos torcida e, quando muito, pedimos a algum amigo que entre no caminho de nossos personagens e mude-os a vida. Pois liguei para o dono da loja de antiguidades e pedi que ele tocasse bem alto um disco da Nina Simone no gramofone na manhã do dia seguinte. Torço para que Clarice ouça aquelas notas e aquela voz densa. Clarice só não enxerga... Ou será que também já não ouve?
Pois que ouve! Pois que ouça! Vejo Clarice diminuido o passo. Parece tentar descobrir de onde vem aquela melodia agradável àquela hora da manhã. Espanta-se com o esdrúxulo da situação. Sempre passei por aqui e nunca houve música, pensa ela enquanto nota de onde saem as notas. Foi uma manobra arriscada fazer com que o som saísse justamente da loja que mais desagrada Clarice, mas isso é o que deria todo o tom de destino. Pessoa como Clarice crêem em destino. Pessoas como Clarice crêem apenas e são capazes de apaixonar-se por idéias, como Alex, que é uma idéia. E se Clarice não entrar na loja? Sua roupa branca, seu caminho. Tudo seria maculado. E ela perderia a visão confortante de todos os dias da senhora alimentando os gatos daquele parque no centro da cidade. Todo seu dia podia perder-se. Ela própria poderia ser que se perdesse de si e já não poderia falar de Clarice, esta que devagar conheço, mas sim de outra Clarice, uma que terei que novamente conhecer. Eu mesmo me arrisco agora. Salvar é correr o risco de perde-se. Tento salvar Clarice e corro o risco de perdê-la agora mesmo. Mas Clarice pára e reflete. Talvez devesse entrar para descobrir quem canta aquela música densa que a faz pensar em Alex. Tudo para Clarice é Alex. Decerto. Difícil ser diferente, porque pensa-se com idéias e Alex é idéia de Clarice. A música não a desperta, como pensei. Clarice não é cega por solidão ou pela paixão pela idéia. Clarice perdeu as vistas, os olhos, os nervos oculares e seu cérebro já não reconhece nada que não seja interno. O cérebro de Clarice fechou-se em si. E lá segue ela para descobrir quem canta a música que lhe lembra Alex.
“Senhor, bom dia! Quem...”. “Bom dia!”, interrompe o senhor. O rapaz ao fundo da loja, remexendo os discos, olha a moça que acabou de entrar. Clarice olha o chão poeirento da loja de Antiguidades. O senhor do balcão olha Clarice. Eu olho a todos e vejo Clarice emendar: “Quem canta esta música?”. O senhor do balcão cala-se. O rapaz no fundo da loja fala. Eu extasio-me. Ele não deveria estar lá. De fato, não o coloquei lá. Apenas a música é culpa minha, mas não o médico. Se o antecipei nesta história era apenas porque já sabia. Clarice vive e eu conto, já falei. Apesar de escrever como se tudo se passasse agora, a vida de Clarice já passou e ela tem filhos. Clarice cozinha todos os dias para seu esposo e não é mais sozinha. Tem o mesmo emprego e mesma roupa branca, mas já vai para o trabalho de carro, depois que deixa os filhos na escola. O mais velho quer ser doutor como o tio. Clarice não se casou com o médico que conhecemos, mas pela primeira vez se apaixonou por uma verdade, por uma presença real. O rapaz no fundo da loja, que é médico – já o sabemos -, responde: “Nina Simone. Veja cá o disco.”. Clarice é apenas cega, mas é capaz de ouvir. E é capaz de sentir. Não entendeu porquê, mas sentiu o peito pular. O coração acelerava. Ela continuava olhando o chão. Não tinha coragem, ainda, de encarar o rapaz. Nem o tinha visto ali, sequer. Aquela voz pareceu-lhe um trovão, vindo do céu, de algum lugar desconhecido. Clarice acreditava em espíritos.
Se me fosse permitido, eu juntaria os destinos de ambos. Mas destinos não se unem assim. Impossível unir o inexistente e destinos não existem. Clarice pode agora falar com o médico. Pode não falar com o médico. Pode falar com ele e nunca mais se esbarrarem na vida. Nada depende de mim. Apenas o modo como Clarice agirá é que dirá o que virá a acontecer. Em verdade, se as coisas fossem simples, apenas o modo como Clarice agirá é que dirá o que virá a acontecer. Mas as coisas não são tão simples pois que temos dois envolvidos e o modo como o médico agirá também será determinante, sabemos. Nada posso eu fazer. O encontro nem foi armado por mim, sequer.
Clarice caminha para o fundo da loja e quinze minutos depois de conversar com Cláudio, o médico, Clarice e ele caminham juntos pela rua no sentido contrário ao que ela seguia. “Posso usar seu telefone”, ela pergunta a ele que, minutos depois a ouve dizer: “Alô. Sim, Clarice. Acordei não me sentindo bem. Sim, não vou trabalhar hoje. Ok. Qualquer coisa estarei no telefone. Obrigada, viu?”. “Obrigada”, ela diz a Cláudio com um sorriso no rosto.
Sentam-se Clarice e Cláudio em um café. Vejam vocês que bonito: até o nome começa com as mesma três letras! Há que haver algo aí que Clarice entenda como destino, já que ela crê nessas coisas de destino, espíritos e amor.
Não quero ser estraga-prazeres. Tampouco quero criar expectativas tolas. Poderia continuar falando de Clarice e Cláudio e da paixão que irá surgir ali e das expectativas que Clarice irá criar neste mesmo dia, à tarde, em sua casa, enquanto pensa em Cláudio. Não quero, no entanto, que pensem que assim será tudo. Já o sabem. Clarice e Cláudio não ficarã juntos por muito tempo. Um dia, Cláudio ficará de ligar para Clarice para combinar de irem ao cinema. Ele não irá ligar, ela o sente. Ele não liga. Ele nunca mais liga e some da vida de Clarice. Clarice não tem sorte com estas coisas, é o que ela pensa, mas ainda irá morrer velhinha, após ter visto morrer seu último filho. Seria muito pesado para a Sra. Clarice continuar vivendo sozinha, sem ao menos a companhia de um de seus filhos, ela, que amargou uma existência de solidão. A solidão de Clarice foi a paixão que ela carregou por toda sua vida. Quero não ter que deixar ninguém, nem mesmo eu, a espera desse fim, que pode mesmo nunca vir. Minhas pernas bambeiam ao peso de Clarice e Deus sabe como quero suportar este peso por mais algum tempo, mas tem-me sido difícil. Também não quero abandonar Clarice. Ela está sentada diante de Cláudio em um café agora. É um café agradável próximo à casa de nossa moça. Clarice adora café, apesar de não gostar de café. Especialmente aquele, em meio a um parque cheio de gramíneas verdes, passeios encantadores, patos e seus filhotes no lago e famílias sorridentes. Vejo aquela família e fico aliviado em pensar que Clarice ainda terá a sua um dia, bem como aquelas, e levará seus filhos para brincarem no parquinho desse mesmo jardim. Aí é que vejo Clarice sentada em frente a Cláudio olhando aquelas coisas todas e aquelas famílias e sentindo fundo em si a dor por não saber se um dirá terá tudo aquilo ali, que tanto deseja. Penso que poderia soprar-lhe no ouvido a verdade: “Calma, mocinha, que tudo se arranjará com o tempo”, mas a angústia de Clarice lhe será necessária. Clarice precisa crescer. É como uma menina boboca que chama suas bonecas pelo nome e canta parabéns para elas e trata-as como filhas. Clarice vive neste mundo infantil em que tudo são possibilidades e histórias arranjadas em sua cabeça. Entretanto, diante de Cláudio, nada são estas histórias para Clarice. Esta é a primeira vez que a vejo viver o momento. Apenas vive o momento em qu e olha Cláudio enquanto o ouve falar de como é complicado ter filhos hoje em dia. Apesar de tudo, diz ele querer ter filhos e Clarice fala de como ter uma família já é importante para ela. Ai! Como amo Clarice! Queria poder dá-las todos esses filhos que ela virá a ter um dia. Autor e Clarice, casados. Mas sei que a matéria de que sou feito é diferente da dela. Eu sou de verdade. Clarice é de palavras e irá perder-se em alguma estante de alguma biblioteca, mesmo com sua família já formada e já findada, mesmo com sua vida já vivida e seu corpo enterrado.
Como autor de Clarice, declaro que tudo está perto do fim. Perdi o gosto por ela. Não faço aquilo que não gosto. Tenho medo de perder-me de mim e, como Clarice, viver pelas idéias. Hoje acordei pensando em Clarice e quero pensar em mim e em meu dia quando acordo. Meu peito aperta e é estreito. Tenho vontade de chorar à constatação de que, aos poucos, me desapaixono de Clarice. Perdi o interesse por ela. Escrevo pelo compromisso que tenho com o final desta escrita, mas chegada ao fim, como tudo que chega ao fim, estará terminada a saga de Clarice. Nada há que a torne especial. Sua solidão me parece tão banal. Que dor é acreditar que a solidão é banal. Nunca pensei que chegaria a este dia. Sinto sabor amargo da amargura em minha boca. Será que me apaixonei tanto por Clarice que tenho ciúmes dela, que agora olha Cláudio sem nunca ter me visto? Preciso de um espelho. Preciso gostar do que vejo no espelho quando o olho mais do que gosto de Clarice, que nunca me olho. E se olhasse, de nada adiantaria, pois Clarice não enxerga com os olhos. Clarice é cega das vistas e já as perdeu há muito tempo, pois que só enxerga com o coração. Quem vê com o coração, perde os olhos por desuso. O coração de Clarice é burro, ai coitadinha! Tão coitadinho que tenho pena de olhá-la assim, tão encantada e já me arrependo de ter posto aquela música em seu caminho. A paixão de Clarice pelas idéias era menos perigosa que a concretude. O concreto, por ser concreto, é duro demais para Clarice. Agora ela terá que lidar com medos reais e não fantasiá-los que os vive. Agora ela terá que viver com a angustia das possibilidades de que tudo dê certo, de que tudo fracasse, de que tudo dê certo, e fracasse... Como em uma roda gigante, como as ondas do mar. E o mar é Clarice. Ou Clarice é como o mar e como as ondas do mar. Foi olhando o mar que Clarice se deu conta de que poderia amar sem ser amada, mas será diante de Cláudio que ela irá correr o risco real. O risco real existe apenas no concreto. Não há riscos nas idéias e é por isso que escrevo: controlo os riscos. Um falso controle, como todos os controles. Indeterminada é a vida daqueles sobre quem escrevo. Tão indeterminada quanto a minha. Escrever é lidar com o indeterminado a cada nova frase. A cada novo paragrafo há um novo começo. Tenho medo de terminar esse parágrafo, pois não sei o que virá no seguinte. Se eu ao menos soubesse... Sei como sera a vida de Clarice por inteiro e até como ela morre. Não sei é como sera o próximo parágrafo. Um dia, se eu conseguir, desenvolvo um método. Sim, um método para controlar minha escrita e ter tudo bem planejado. Quantas linhas são necessárias para dez minutos de vida?
Dez minutos foi o tempo que durou a conversa de Clarice e Cláudio naquele café do parque. Dez minutos é o tempo que levou para Carlitos chegar ao ponto de ônibus e ver que tinha perdido a hora. Dez minutos é o tempo que leva para ler um capítulo curto de Machado de Assis. Dez minutos é o tempo que leva dez minutos. Eu mesmo fiquei dez minutos pensando no que se pode fazer em dez minutos, mas minuto é uma matéria muito ingrata, porque não se define. O minuto é como as moléculas. O minuto é como aquilo que se sabe e não se sabe e se sabe. O minuto é o tempo em que se vive e em que já se viveu. E dez minutos, para Clarice, foi o tempo que levou para que ela não pensasse em Alex por mais vários dias. Só veio a lembrar-se do rapaz quando Cláudio lhe contou muitos dias depois desse dia no café da viagem que tinha feito a Portugal. Clarice tinha ido a Portugal, mas precisou de alguns minutos para lembrar-se o porquê da viagem que custou-lhe as economias. Conhecer Alex custou a Clarice todas as suas economias. Ter conhecido Cláudio irá lhe custar o medo e o tempo de uma espera. O concreto é uma espera infinda. Só termina no fim, quando já não esperamos nada e nem por nada somos esperados. Nesse tempo, no fim, somos apenas uma lembrança na memória dos que ficam e que, como outrora nós, esperam. Clarice irá passar os dias com a cabeça na guilhotina e os minutos irão passar a conta-gotas. Agora seria possível ter alguém de verdade. Seria possível, também, perder alguém de verdade. Temo por Clarice! Temo que ela seja fraca, que não seja capaz dessa espera. Fosse Clarice mais teimosa e eu não precisaria temer, mas Clarice muda de paixões assim como as folhas caem num outono rigoroso, quando o vento é forte e balança as árvores. Mesmo sabendo que a espera, para Clarice, será uma grande dor, que será difícil para ela, ansiosa como só, quero que ela seja capaz de esperar. Talvez Cláudio não valha a pena. Talvez valha. Isso são questões que irão passar pela cabeça de Clarice e cada vez que ela esperar por uma ligação de Cláudio sem que o telefone toque. São questões várias que passarão pela cabeça de Clarice a cada e-mail enviado sem resposta imedita. Será que isso, algum dia, que essa relação com Cláudio irá dar em algo, ela pensará. Muito complicado para essas idéias submersas no medo e no tempo infindo de uma espera perceber que em algo tudo sempre dá.
O tempo da espera de Clarice foi o mesmo tempo em que eu, ansioso, aguardei por continuar o texto. Não consigo ficar muito tempo sem a escrita. Sou mais apaixonado pela escrita do que por Clarice. Sou mais apaixonado por essa cois que, de concreta, só tem a folha impressa em um livro. Clarice é minha idéia, mas em algum lugar existe e eu espero com ela um novo encontro com Cláudio. Decerto, que ao longo de sua espera Clarice esbarrou em outra concretudes, mas sempre com a raiva esperançosa de uma felicidade. Sempre pensando em Cláudio e em como queria que fosse ele o que estivesse ao seu lado aquela noite e não o outro, quem quer que o outro fosse.
Mas a espera terminou e mesmo depois de não ter aguentado e sucumbido a interromper o relato de Clarice para falar de um casal de velhinhos que eu vi no restaurante numa tarde de sábado, Cláudio ligou e volto a falar da vida da moça esperançosa.
Quero chorar Clarice. Quero chorar Clarice como se chora um cálica de vinho tomado em dores de amor. Quero chorar Clarice como quem chora silente a perda de um ente querido, entre a vergonha da saudade e a necessidade da expressão da própria dor. Clarice nunca será minha e nem sequer posso dividir com ela a dor que ela sente. Quero pegar a dor de Clarice com minha duas mãos fechadas em concha e tomá-la como uma água refrescante de um rio em uma tarde quente. E deixar a dor dela doer em mim, que sou mais forte. E deixar a dor dela me roer, que sou mais roído. Quero gritar a dor e a raiva de Clarice por ela, ela, que agora pensa em descer e abraçar o primeiro ser que lhe passar pela rua. Agora Clarice pensa em como teria sido bom não ter dado seus gatos para o vizinho do antigo apartamento. Ela já teve gatos, mas não contei essa parte. Não contei quase parte alguma. Contando para Clarice seu futuro, quem sabe sua dor não diminui? mas a dor é de agora e não do futuro que a aguarda. É preciso deixar a dor de Clarice doar. Que ela doa sozinha com a moça. A dor de Clarice é de raiva de carinho não dado. É de raiva de abraçado retesado e de beijo guardado numa boca louca por um desses beijos. A raiva de Clarice é a raiva do toque sem sentido e bem sentido numa sessão escura de cinema, quando os personagens na tela se beijavam e ela pensava “quero beijar este Cláudio que agora segura minha mão”. Mas não passou disso, de um segurar de mãos. E de um abraço rápido em meio ao trânsito caótico da cidade numa tarde de domingo quando todos retornam da praia. Ai! Clarice, sinto sua dor doer em mim e sinto necessidade de gritar a dor que me dói. Ai! Querida, como você consegue guardar tanta dor em si?! que eu, eu que sou mais forte e vivido e viado, eu que já sofri de tudo nessa vida, não aguento e deixo minhas lágrimas descerem enquanto escrevo sobre ti. Se eu te dissesse para esquecê-lo, isso bastaria? como basta um aceno pruma mãe na soleira da porta a ver o filho ir embora para que ela saiba que ele segue feliz seu caminho. Não, sei que não e essa, além da sua, é outra dor que sinto. Minha lágrima corre quente pelo meu rosto enquanto vejo você segurar a sua bem firme. Quero alfinetar Clarice bem forte para que ela chore ao menos pela dor da alfinetada. Cláudio é nada mais que uma forte alfinetada e Clarice segura o choro raivoso do abraço não dado e do beijo reprimido. E me perco, confuso, nos sentimentos de Clarice, mas já me explico: é que a dor é de agora e o que houve é de antes do agora. O que houve já passou e Clarice não chora a dor que sente agora. O não choro dela me incomoda! Há tanto dor em Clarice...
Cláudio não ligaria mais, ela havia se certificado. Fazia dias que ele não lhe dirigia a palavra e nenhum e-mail da moça era respondido. Clarice já havia se certificado de muitas coisas em sua vida e essa era mais uma que, como as outras, lhe saia errado. Hoje vi uma família noutro restaurante e o pai ensinava a filha como ler corretamente “plenário”, não é “plenârio”, dizia ele, “se tem acentinho é ‘plenário’”. Se a certeza de Clarice fosse tão certa como a certeza de um acento numa palavra medíocre, lhe ensinaria a ler, mas a certeza de Clarice é o que há de mais incerto. A certeza de Clarice é como um pêndulo pesado construído com uma linha podre. Se balança, cai e a certeza dela caiu. Pudesse eu, tomaria a certeza dela nas mãos e a restituiria dessa certeza de que Cláudio nunca mais ligará, mas não posso, sei que não posso e que não devo me intrometer. A certeza de Clarice oscilava como o bêbado na rua. A certeza de Clarice era tão incerta que ela mesma se pegava olhando para o telefone à espera de um contato de Cláudio. Que nunca vinha. Que nunca vinha. Que veio: “Clarice? Sou eu, Cláudio... Sim, bem... E você? Bem, não estou trabalhando. Na verdade, estava pensando em ir ao cinema. Você também?! Que ótimo. Então, às sete e cinquenta... Pode ser?”. Ela disse que sim. Disse ansiosamente que sim. Era como se não fosse ter mais tempo para dizer aquele sim nunca mais. Cuspiu o sim, escarrou o sim, pensou o sim mesmo depois de tê-lo dito e apressou-se num banho e num arrumar-se para que conseguisse chegar ao cinema a tempo. Cláudio poderia ter ido buscá-la. Ele tinha carro e ela, mulherzinha que era, nunca tivera a coragem de pegar o volante. Pegou mesmo um táxi e deixou seu coração exultante e fraco bater aceleradamente a cada virada do taxímetro. Não se importaria em pagar caro por aquela corrida. Não se importaria com nada, conquanto estivesse bonita. Ao longo do caminho, curto, ajeitou seu cabelo e sua blusa umas tantas vezes, incontáveis vezes.
Quando chegou ao cinema, seus olhos procuravam Cláudio e ela tinha um sorriso estampado no rosto. O mesmo sorriso leve e bobo que vi em seus lábios quando ela conheceu Alex e falou com ele pela primeira vez. Mas, dessa vez, vi o sorriso desfazendo-se rapidamente. Ela, mesmo tendo procurando esmiuçadamente cada canto, cada sofá em que espectadores aguardavam o início de mais uma sessão, cada mesa do café em que as pessoas conversavam sobre o filme que haviam acabado de assistir, mesmo tendo procurado tanto, Clarice não encontrou Cláudio.
“Alô? Cláudio... Onde você está que não te encontro? Certo... Então posso comprar nossos ingressos?”. Ele estava estacionando o carro, ele disse. Clarice entrou na fila e comprou dois ingressos. Cláudio chegou e acompanhou o final da compra ao lado dela e tirou o dinheiro de sua carteira enquanto andavam os dois para a sala em que veriam aquela comédia romântica cheia de drama e dor. Cláudio pagou Clarice pelos ingressos. Melhor seria se a tivesse pago pela esperança criada e frustrada daquela noite. Eu mesmo acho bom olhar Clarice com Cláudio, o problema mesmo é o depois, que é o agora, em que olho Clarice sozinha em sua cama a chorar. Não que tenha havido qualquer problema ao longo da sessão de cinema. O problema é, pelo contrário, não ter havido nada que a chateasse.
O filme era uma bonita história de amor. Cheia de dores. Dores que fizeram Clarice pensar se deveria ou não chorar ao lado de Cláudio. Era a segunda vez que o via o talvez seu choro o assustasse. Clarice pensava muito antes de qualquer ato. Sentiu o corpo de Cláudio próximo ao seu ao longo de toda a sessão e a cada esbarrão dele nela, a cada vez que ele aproximava seu corpo ao dela, ela pensava o que ele poderia querer dizer com tal aproximação. Será que queria que ela se aproximasse? Ou estava apenas se ajeitando na cadeira? Clarice em coragem, contudo. É impossível entender o que tanta dor é capaz de dar aos humanos. A dor de Clarice a dera, ao longo da vida, a coragem de arriscar um carinho. Ela deixou que a ponta de seus dedos tocassem sutil e imperceptivelmente os braços de Cláudio. Ninguem no cinema diria ter visto qualquer coisa além dos braços cruzados de Clarice no meio da sessão, mas a ponta dos dedos dela tocavam o braço de Cláudio, que havia antes encostado a perna direita dele na perna esquerda dela. Aquele toque fez com que o coração de Clarice acelera-se e ela respirou profundamente. Até o final da sessão, ela e Cláudio, então, teriam trocado tantos carinhos que tudo o que Clarice poderia desejar era lhe dar todo o carinho que lhe era possível. O filme terminou, as letras subiram, e Cláudio, por vontade própria, segurava as mãos de Clarice nas suas. Um toque leve na ponta dos dedos um do outro. Clarice sentia seu corpo pulsante. Clarice sentia uma vontade inconfundível em si. Clarice queria abraçar Cláudio e ter seu corpo tão próximo ao dele que não haveria mais Clarice e Cláudio, mas uma só coisa abraçada. Foi então que se levantaram e tomaram um café juntos enquanto falavam do filme. E saíram do cinema e Cláudio oferecera uma carona à Clarice.
Enquanto andava atrás de Cláudio até o carro dele, Clarice pensava no que seria feito daquela noite. Não queria dormir com Cláudio. O que sentia era mais como uma vontade esperançosa de dar a ele aquilo que tinha pulsante em si: todo o carinho de meses represado. Conversaram por todo o caminho até a casa de Clarice. Falaram de profissões, de trabalho, de causualidades, e Clarice pensava no presente que havia comprado para Cláudio. Sim, Clarice havia comprado um presente para Cláudio. Muito ela fizera nesse meio tempo entre um encontro e outro, mas não quero falar do que Clarice fez. Quero logo terminar o relato desta noite para acompanhar novamente o choro dolorido de Clarice em seu quarto. Pois que ela queria dar a Cláudio todo deu carinho, mas ele apenas a deixou na porta da casa dela, fez um carinho em suas pernas e disse que tinha que ir embora. Clarice perguntou se ele realmente não queria subir. Ele disse que precisava acordar cedo. Clarice pensou no que faria de todo aquele carinho que queria dar a ele. Ele olhou para a rua vazia e pensou em quanto tempo levaria para chegar até em casa. Clarice virou-se e o abraçou. Cláudio beijou o rosto de Clarice e disse que iriam se encontrar em breve. Amanhã ele teria um dia cheio, ele disse. Ela abriu a porta do carro, saiu, Cláudio deu a partida e rápido já dobrava a esquina. Clarice subiu as escadas de seu prédio e trancou-se em casa e em si.
Ai, Clarice! Queria te ajudar a compreender isso tudo! Sei que se sente como uma criança que ganhou o melhor presente na noite de natal, mas que viu seu presente tendo sido colocado numa estante alta e inalcançável. Pudesse eu e desceria o presente da estante. Pudesse eu e nunca teria pedido aquele senhor para tocar jazz em sua vitrola e você nunca teria conhecido Cláudio. Sinto-me culpado por sua dor. Queria poder tomar sua dor toda para mim ou te ofertar um abraço, você, que agora chora a vontade de abraçar alguém e de porder ofertar a alguém todo o carinho retesado por meses. Ai! Clarice! Fico aqui ao seu lado até vê-la dormir. Até vê-la dormir...

domingo, 13 de abril de 2008

Clarice 3

Personagens são como essas coisas que nunca morrem. Deus, santo, diabo. Personagens não morrem e Clarice não morre: ai que dó de mim! ai que dó de todos os que lêem sobre Clarice. Tenho tanta dó de mim, que não sou escritor, mas que sou o autor de Clarice. Não consigo livrar-me dela, livrar-me de mim. Eu e Clarice somos uma amálgama e meus olhos pesam de sono. O melhor é ir dormir a estas horas da noite, mas a vida é uma privada cheia de dejetos à espera de um jatinho refrescante de Pinho Bril limão (e isso seria perfeito). Há sempre a esperança da fuga, da mudança, da virada surpreendente, do descaminho que se caminha feliz. A vida é uma verdadeira ânsia de felicidade. De felicidade. De felicidade. Que nunca chega.
Clarice, meu peso. Clarice, minha vida. Quero livrar-me de ti por um instante que seja, eu, que me deixei apaixonar por tua imagem em mim mesmo. A idéia de Clarice pregou-se em mim como ferro em brasa e marcou-me fundo. Não há um só dia em que acorde sem que pense nela. Clarice é só pensamento.
Mas hoje quero falar do que Clarice não tem.
Saí para almoçar e deixei Clarice perdida em alguma página do meu caderno. NO restaurante, vi o amor. Era o amor e era o amor. Ambos eram o amor. E me deixei encantar por aquele casal de velhinhos sentados a mesa à minha frente. Ela, tão superior, tão jovial. É preciso ser jovial para ser belo e encantador? Ele tão senhor, tão senil, mas tão homem.
Mais que Clarice, ser um autor viado é uma dor para mim, pois que sei que nunca sentarei numa mesa com minha senhora para um almoço de domingo. Nem nunca irei receber cartas e telefonemas dos netos. E quem irá lembrar de mim e das brincadeiras de final de semana?
Ai, Clarice, lembra de mim! Peço... Sendo minha memória, que me deixe, ao menos, entrar na tua.

segunda-feira, 31 de março de 2008

Clarice 2

Da Continuação de Clarice
ou Da pouca vergonha
ou Como assim num ônibus
ou A moça e a senhora que palitava dentes
ou Do gozo com a idéia
ou Torno público ou resguardo a imagem de minha personagem?
Pois que fodi-me todo, isso é verdade. Mas não é nenhum fardo com o qual tenha que lidar a contragosto. Gosto de olhá-la de longe. O sorriso de Clarice me domina. Já não sei quando sou eu que sorrio ou quando o sorriso é o dela. As verdades sobre Clarice ficam como as moscas que me impedem de dormir. Por mais que eu tome banho, asseie a casa, use veneno, as malditas moscas ficam lá, rodeando minhas pernas e meus braços. Meus ouvidos escutam seu zunido e tenho que admitir: já não é possível dormir, apesar do sono. Assim são as verdades de Clarice em minha cabeça. Clarice não deveria estar em mim, não tivesse eu ousado invadir-lhe a vida e falar de um dia em que chorou por três horas e e quize minutos sem pausas. Não deveria estar em mim caso eu não a tivesse deixado entrar. Demorei-me demais olhando a menina e agora é ela que me olha enquanto tento dormir. Não consigo dormir com seu olhar claudicante sobre mim: “Me escreva”, pede ela com aqueles olhos de casta falsidade. Pudera eu tratá-la como ela trata os mendigos da rua e a enxotaria de minha casa. Clarice não está em minha casa, contudo, e sim dentro de mim. Penso Clarice e a vejo, assim como outrora a moça via Felipe. Sempre soube que se me demorasse demais naquele texto, iria acabar apaixonando-me por ela. É que tenho essa tendência infantil a estabelecer relações amalgamantes com tudo aquilo que me vem ao encontro. Especialmente se nada me vem ao encontro e coisa já está dentro de mim. Desta forma, não preciso de amálgamas, apenas preciso aceitar o fato de que, sim, estou apaixonado por mais uma idéia. Clarice é minha idéia. Clarice é, também, uma moça da vida. Não uma mulher da vida, mas uma moça com existência comum e, a título de prova, ela me garante que caga. Todos os dias, diz-me ela, cago, ao menos uma vez por dia. Tenho uma pontada de inveja dessa regularidade com que ela consegue ser normal. A moça das minhas idéia é mais normal que eu: caga e apaixona-se por pessoas de verdade.
Decerto que nem sempre foi assim. Já foi dada a amar idéias, a mocita. E amou uma idéia tão loucamente em si que, em dado momento, era difícil dizer o que era idéia, o que era Clarice e o que era amor. Agora sou eu que me vejo nesta situação ridícula de amar quem não existe. Já Clarice, tendo abandonado o amor pela idéia que tinha de Felipe e tendo, inclusive, escrito uma carta malcriada para o rapaz, sob a insígnia de “apenas mais um conto de fim de noite” que, como os outros, publicara em seu sitezito, já ela ama um rapaz de verdade. Deitada, minutos antes de cair no sono, Clarice pensa se Alex era um nome que ia bem com o dela. “Clarice e Alex” ou “Alex e Clarice”, qual seria mais sonoro? O som é importante para as palavras, bem como o silêncio. No silêncio é que mora o dito, mas no som é que as palavras se falam a si. Queria gritar de modo que Clarice ouvisse o quanto a amo. Nota mental: tenho que parar de falar de mim, que o texto é sobre Clarice. Suas pálpebras, pesadas pelo sono, fecham-se lentamente agora. Aproximo-me de seu ouvido e susssurro “Autor e Clarice. Clarice e Autor”, mas ela acorda de sobressalto. Despertei-a sem querer. Queria mesmo que ela se acostumasse com a idéia de amar-me, mas não controlo Clarice. Apenas escrevo sobre ela.
Desperta, vejo-a sentar-se em frente ao computador. Este seu amigo, o computador, tem muita importância em sua vida desde que outro amigo dela a indicara um site em que poderia conhecer todo o tipo de gentes. Com um sorriso largo no rosto (acredito tê-la ouvido gargalhar de um prazer de gozo), escreve para Alex: “Querido, queria ver-te. Sei que moras longe, mas poderia ir visitar-te qualquer desses dias... Talvez em seu trabalho”. E depois disso, perdi-me da menina e tudo o que sei é o que ela mesma escreveu em seu site. Alguma coisa sobre uma boate em um país distante onde as pessoas são frias e distantes. Alguma coisa sobre corredores infindos e confusos e um closet misterioso do qual preferiu não dizer nada. Ou melhor, do qual não tinha nada para dizer, pois não foi capaz de recordar-se. Recordava-se apenas e com muita clareza, dos olhos de Alex pousados nos dela. Lembrava-se do calor saboroso dos lábios de Alex pousados em seu pescoço e do sabor calorento que os lábios dela sentiram ao beijar a carne macia logo atrás da orelha do rapaz. Memorável fora o momento em que sentira as mãos fortes de Alex em sua virilha. Sentiu seu corpo liquefazer-se e, úmida, pediu que ele a penetrasse. Recordava-se, acima de tudo, de tê-lo sentido dentro de si algumas vezes aquela noite e do macio das plumas penduradas em um cabideiro próximo à parede em que deixou-se ser possuída por aquele que já a possuía antes mesmo daquele primeiro encontro. E trazia consigo, bem fundo e ecoante, o que o rapaz lhe disse ao fim da noite: “Clarice, me perdoe. Eu devia ter dito antes, mas... É que... Bem, sou gay”. Era gay e nem tudo podia ser perfeito. Apesar do sexo ótimo, era gay o Alex. Há infantes gays? Pois que dizem que um dos Joões, da família real portuguesa, era dado à felação. Não que gostasse de fornicar pelo buraco de trás com jovenzitas do reino. Dizem por aí que era “biba, bibíssima, bibérrima”, contou Alex a Clarice numa outra oportunidade. João dava a bunda pelo reino e comia sua esposa no fim da noite. O que haveria de errado, então, em Alex e Clarice terem tido uma noite estupenda de amor entre as quatro paredes do closet?
A questão seria como trepar novamente com um viado. Clarice nunca foi de ter preconceitos, mas é que gostava de sexo. O sexo era para ela uma possibilidade de libertação de si mesma. Eu me livro de mim por Clarice. Ela é minha ferramente. Para ela, o sexo servia como escape e o momento do gozo era o momento em que não tinha sequer contato consigo mesma. Clarice adorava o gozo e isso não seria novidade, pois todas as gentes também gostam. Era assim que eu pensava, até perceber que as gentes gostam do gozo pela sensação de relaxamento, pelo prazer que ele traz, por aquilo que o gozo, em se tratando de gozo, em si mesmo é. Clarice gostava do gozo para esquecer-se de si. Quando gozava, era um nada. Mesmo no sexo, era nada. Como diria Genet, Clarice queria ser apenas o buraco para que o outro depositasse nela seus líquidos, queria alienar-se de tal modo de si que nada seria. Só o gozo isso lhe permitia. E como garantir o gozo diário com um gay ao seu lado? Se algum dia ele viesse a falar e seu desejo pelo mesmo sexo falasse mais alto? Como seria gostar de um viado?
Clarice está no ônibus. Segue para a casa de seus pais. Têm a sensação de que Alex ainda está dentro de seu corpo. Tudo em que consegue pensar é Alex. Até mesmo suas idéias sobre o lugar que mora passam, invariavelmente, por Alex. O ônibus segue trepidante. O sol lá fora deve estar mais quente que o ar condicionado gelado dentro do coletivo. Clarice queria estar lá fora e sentir o sol em seu rosto. O calor do sol em seu pescoço talvez lhe lembrasse de quando os lábios quentes de Alex a tocaram. Olhando Clarice, tenho vontade de gritar para o mundo que ainda há beleza. A paixão nos cega a todos. As dores nos cega a todos. E se há beleza, as gentes perderam a capacidade de vê-la. O coração exultante de Clarice, porém, abriu-se ao mundo e vê a beleza. Clarice deseja gritar, num ímpeto, estridente e altisoante, um longo e súbito “Ah!”, que ela exulta de felicidade. Todo seu corpo responde em felicidade ao mais leve anseio da moça. Seus lábios, por exemplo, por mais que ela tente refreá-los, seus lábios são só sorrisos e seus pensamentos são só Alexes. Vou parar este ônibus e pedir para que esperem que Clarice grite. Me dá angústia ver tanta felicidade contida. A felicidade, quando existe, deve ser posta para fora. Não para que gaste e termine. Mais mesmo para que seja plenamente vivida. A felicidade deve ser gritada! Este é o compromisso humano com a felicidade. Senão, a felicidade vira amargura e o que fizemos dela? Felicidade que não se grita dá tanto câncer quanto tristeza. Imagino como seria se Clarice se ergue-se de sua poltrona e gritasse dentro do ônibus: “Senhores, estou feliz por que amo! Senhores, fui também amada e, ah!, isso é tudo o que alguém pode querer. Há vários de tipo de amor, mas deste é dos que tem volta. Eu mando, ele retorna. Senhores! Ah!”, e falaria sobre como sentiu a carne de Alex invadindo a sua.
Ainda era capaz de lembrar-se, já bem o sabemos, de como foi o encontro e do que Alex lhe dissera. Já deixara de pensar em como seria namorar com um gay. Se era do desejo de Alex, não haveria problemas. O desejo move o homem e como os milagres para as montanhas, é capaz de tudo mudar. Não importa o que Alex tinha vivido até ali, mas sim o que ele desejava viver de ali para adiante. Sem preocupações, então, e plena de felicidade, Clarice esqueceu-se mesmo que estava em um coletivo e que as pessoas a olhavam. Pudera eu esquecer-me que há um olhar que me olha e também faria o mesmo, sem pudores. Clarice lambeu seus dedos. Fechou os olhos e lambeu os dedos em lascívia. Viu diante de si o infante. Alex a aguardava no balcão da chapelaria da boate. Ela diria: “Vim guardar contigo meus tesouros” e pensaria se estava ou não sendo piegas. Não se trataria, no entato, de ser ou não piegas. Imaginaria uma cena de filme B, atores ruins, roteiro barato e sexo animal, bastante sexo animal e ilógico. Alex lhe respondia com um olhar tão lascivo quanto o modo como Clarice lambia seus dedos: “Então passe para o lado de cá deste balcão”. Clarice via-se travada na soleira do portículo do balcão. As pernas lhe bambeavam e o coração ia acelerado. Alex caminhava em sua direção. Encostava suas mãos no pescoço da menina e, num leve giro, já tocava a nuca de Clarice, bem por baixo dos cabelos da moça. Deixava sua mão correr ao largo das costas da moça paralisada e, descendo, enchia-a na bunda de Clarice, que apertava com força, sentindo bem o buraco que havia entre um lado e outro daquela bunda carnuda. No ônibus, ainda de olhos fechados, Clarice deixou seu dedo úmido pousar sobre seus seios. Seus mamilos estavam eriçados por debaixo da blusa e a senhora da polrtona ao lado, que outrora olhava pela janela enquanto palitava os dentes, costume bastante interiorina, agora já olhava inquisidoramente para nossa garota. Os mamilos rijos de Clarice podiam ser vistos por sobre a blusa de linha que ela vestia. Gostava de usar roupas de linha para visitar os pais. Pensava que ganhava um ar mais sério com elas. Utilizando-se do que Deus havia dado apenas aos homens, Clarice unia o dedo opositor ao indicador e pinçava levemente seu mamilo direito. Em sua mente, ainda estava paralisada no portículo do balcão, a mão direita de Alex ainda apertando-lhe a bunda. Sentia agora as mãos do rapaz entrando-lhe no meio da bunda por cima da saia que vestia e sentiu que sua calcinha molhava. Liquefazia-se e calor vaporoso que saía do meio de suas pernas era o gosto que queria ter agora em sua boca. Avançou tropega para o lado de dentro do balcão. Alex subiu suas mãos até os ombros de Clarice e, não sem antes ter posto a placa de “fechado” por sobre o balcão, disse-lhe : “Venha comigo” e olhou-a fundo nos olhos. Guiou-a habilmente por entre corredores e corredores de prateleiras. Muitos deveriam ser os que deixavam seus pertences guardados naquele lugar e o esqueciam depois de uma boa noitada, seja por não lembrar-se nem sequer como ali chegou, seja por ter melhores motivos para logo sair sem antes pensar em buscar o que trouxera consigo. As prateleiras pareciam não ter fim. Caminhavam Alex e Clarice entre toques e olhares: ele deixava, por vezes, suas mãos descerem dos ombros até os seios da moça e os apertava com força, puxando o corpo de Clarice para si; nessa horas, Clarice deixava-se sentir o pau duro do rapaz tocando-lhe a bunda e pensava em como queria ser penetrada por trás. Clarice conhecia aqueles corredores. Caminhara por eles no dia anterior e dentro do ônibus deixava seu pensamento seguir os passos que fizera até o pequeno closet no final da chapelaria. Alex deveria estar em casa a estas horas e talvez dormindo, talvez arrumando-se para mais um dia de trabalho... Clarice, o sabemos, estava no ônibus e agora desistia de pinçar seus seios e enfiava lentamente os olhos ainda fechados, os dedos novamnete umedecidos por debaixo de sua saia e sentiu seu clitóris quente e úmido. Os pêlos de sua buceta sendo tocados no caminho até seu clitóris geraram uma sensação tal em Clarice que ela deitou a poltrona um pouco mais e com a mão esquerda começou a tocar seus seios com força. A volúpia do momento assustava a senhora da poltrona ao lado, mas esta nada fez a não ser olhar tudo com uma pontada de inveja, lembrando-se do tempo em que ela mesma não aguentava de desejos e entregava-se a eles nos lugares menos oportunos. Preferiu não incomodar a moça e ela mesma, a senhora, começou a sentir sua vagina dando sinais de um antigo funcionamento, há muito abandonado. Clarice continuou friccionando seu clitóris por mais algum tempo, até quando, em seus pensamentos, chegou no closet onde ainda ontem, entregara-se a Alex.
No pensamento de Clarice, Alex abria a porta do closet com um sorriso bastante sadado no rosto. Parecia dizer: “Agora te fodo”. À idéia de um Alex desejoso de fodê-la, no ônibus, Clarice deixou seus dedo médio penetrar sua buceta úmida enquanto o polegar fricicionava o clitóris. A mão esquerda ainda apertava seus seios quando Clarice, não aguentando em êxtase e já tendo completamente se esquecido que havia outras pessoas ao seu redor, soltou um gemido. Em olhar, há quem não veja; em que ouvir, há os que não ouvem, mas todos no coletivo ouviram o gemido da menina. Alguns abafaram o riso, outros murmuraram resmungos e ainda houve aqueles que ficaram a pensar se deveriam ou não juntar-se ao movimento da jovem moça da poltrona 9, pois também ficaram estes excitados. Clarice via Alex sorrindo para ela. Entrou no pequeno closet e antes que tivesse tempo de ver direito onde estava, como na noite anterior Alex lhe disse: “Não repare em nada, que este lugar guardo-o em segredo. Agora, ajoelhe-se aos meus pés”. Trêmula, Clarice obedeceu. Mas antes, fez menção de tirar a calcinha, para o que recebeu um olhar aprovador de Alex. E tendo ajoelhado-se, viu o pau duro de Alex diante de seus olhos e começou a tocá-lo levemente com a língua, e depois com os lábios, e depois com o canto da boca, até que então sentiu-o tocar-lhe bem fundo a garganta. Alex, com suas duas mãos, empurrava a cabeça de Clarice para frente e para trás, entre gemidos e uma respiração arfante. Clarice olhou para cima e viu Alex. Excitou-se tanto com a visão do rapaz excitado pelos seus lábios, que mesmo antes de tocar seu clitória, enfiou três dedos na vagina. No ônibus, fizera o o mesmo e gemeu novamente. Foi então que Clarice ergueu-se do chão, sob um olhar desaprovador de Alex, encostou-se inclinada à parede e disse: “Me fode”. Alex logo sorriu e tirou o olhar desaprovador da cara. Segurou a menina pelos quadris e sentiu seu pau na parede úmida da vagina de Clarice. Enfiava e tirava seu pau agilmente de Clarice, cada vez com mais força. Clarice movia, por vezes, levemente o quadril de um lado para o outro. No ônibus, Clarice tirou os três dedos de dentro da vagina e começou a friccionar seu clitória com bastante velocidade.
Alex tirou seu pau de dentro de Clarice, que o olhou com olhos de pedinte a dizer “Por favor, continue”. Mas Alex tinha tudo planejado. No canto esquerdo do closet ele guardava para estas ocasiões uma dessas cadeiras de abrir e fechar. Buscou logo o assento, abriu-o, sentou-se e disse: “Sente-se em mim.”. Clarice excitou-se tanto com esse pedido que sentiu que seu corpo desfalaceria de tesão. No ônibus, Clarice sentiu-se próxima ao gozo, o momento que tanto prezava.
Tirou logo a saia e a blusa e, de costas para Alex, que segurava com sua mão direita o pau ereto, sentou-se. Sentiu aquela carne quente forçando-lhe o anel do ânus. Sentia dor e parecia que alguma coisa em si rasgava, cortava. Mesmo assim, Clarice não hesitou e de uma só vez colocou o que podia de Alex em si. O rapaz lambeu seus dedos e enfiou-os na buceta de Clarice. Aqueles dedos grossos e rudes... Clarice lembraria-se deles por toda uma vida, se memórias duram tanto. Aqueles dedos grossos e rudes tocavam a parede interna da vagina de Clarice ao mesmo tempo em que ela se movia para cima e para baixo velozmente. Alex estava em êxtase. Clarice subia e descia em seu colo, os peitos da menina subiam e desciam com ela, os dedos dele iam cada vez mais fundo numa buceta cada vez mais úmida, Clarice começoua tocar seu clitóris e pediu que Alex colocasse mais um dedo dentro dela, Alex sentiu seu pau latejar dentro de Clarice, Clarice sentiu que ia gozar, Alex sentiu que ia gozar, Clarice gemeu de prazer e Alex gritou de desejo, Alex puxou seus dedos de dentro de Clarice, Clarice tocava mais agilmente seu clitóris, Alex levou as duas mãos para a bunda de Clarice e fazia movimentos para ajudá-la e erguer-se e abaixar-se no colo dele. Clarice gritou de prazer, Alex gozou, Clarice gozou. No ônibus, Clarice abriu seus olhos, o peito arfante, a respiração ofegante, os sentidos sendo recobrados e o pensamento na cena que acabara de fazê-la gozar. Ainda imaginava seu cu cheio dos líquidos de Alex e imaginava Alex suado na cadeira de abrir e fechar. Imaginava-se levantando-se, ficando de frente para o rapaz e sentando-se nele e envolvendo-o em um abraço carinhoso enquanto o beijava a testa e o rosto. Os passageiros do ônius preferiram fingir não ter visto e ouvido nada. Clarice virou seu rosto para a jaela e começou a olhar a paisagem. Estava indo para a casa de seus pais e pensava em Alex. Sim, pensava em Alex.

quinta-feira, 27 de março de 2008

O Amor e a Idéia ou O retorno de Clarice ou Da raiva que veio depois ou Amou sem ser correspondida ou Do sorriso no final ou Dos medos de ser autor

Queridos todos,
Só queria dizer, antes do texto (que é também algo que tenho para dizer) que não sumi.
Sam,
Não me esqueço de você, dear.
Sei que você visita o blog e aproveito para deixar pública (sim, algumas pessoas visitam o blog rs) a saudade que sinto de você. Não me esqueci da promessa de te visitar nos próximos dias. Creio que possa ir até o final de abril ou bem no começo de maio, quando recebo, por fim e por graças (rs) o meu primeiro e suado salário rs.
Te ligo num dia mais tranquilo, quando eu sair tarde da noite, para podermos nos falar direitinho.
Beijão!
Ro
O Amor e a Idéia
ou O retorno de Clarice
ou Da raiva que veio depois
ou Amou sem ser correspondida
ou Do sorriso no final
ou Dos medos de ser autor
ou Do amor que vem no fim
ou Sobre como terminar um parágrafo e um texto
ou Sobre viver como o mar
ou De uma existência infantil
ou Ai, meu Deus, que fazer deste texto?!


Clarice, quando deu-se por si que era possível amar sem que fosse amada, chorou compulsiva e renitentemente por 3 horas seguidas. Bom mesmo seria se sempre houvesse um retorno, pensou ela, mas aí seria como nas lojas: produto, valor, pagamento, recebimento... E acresceu ao choro mais quinze minutos de lágrimas. As relações não podiam ser tão mercantis. Haveria um amor puro? Tal coisa como um amor puro lhe fora vendida desde menina pela mãe. Ela dizia: minha filha, não existe o príncipe encantado, mas para cada pé sujo há um chinelo gasto, o que Clarice entendia como a promessa esperançosa de que no mundo havia alguém para ela, somente para ela, a espera do encontro que, por sorte ou acaso, poderia acontecer ao longo dessa vida ainda. E se não acontecesse, perguntava-se a menina; Se não acontecer será assim bem triste, respondia-se ela, e fechava os olhos tentando imaginar como seria ele, o infante.
Talvez estivesse do outro lado do mundo. E talvez não estivesse nesse mundo e aí seria triste. Clarice não é menina mais e fico pensando porque não consigo escrever sobre Clarice como se não se tratasse de uma criança. Clarice não é criança. Nem eu sou mais criança. Mas é bom pensar que as pessoas ainda sejam crianças, e que falam como crianças, e que agem como crianças. Há pureza nisso. Pureza e um certo deslocamento que torna tudo leve e fácil. Clarice traz muitos pesos consigo. Poderia falar dos pesos e ser pesado. Como é bom poder falar da leveza de Clarice, que chora e diz que pensar que não há amor puro seria "assim bem triste", como diz uma criança que não entende que o "tem" é separado do "que" e diz "você temque ou não temque?". Clarice tem vinte e dois anos e trabalha para se sustentar. Clarice mora só e é sozinha, apesar dos amigos. De fato, Clarice não pensa nisso o tempo todo e apenas segue sua vida pensando que se não houvesse a esperançosa promessa de que há alguém apenas para ela no mundo tudo seria assim bem triste, sem dar-se por conta de que muitas coisas já o são.
O infante de Clarice poderia viver na esquina, na casa ao lado, ou mesmo ser um dos mendigos de rua que ela destratava quando realmente não tinha dinheiro para dá-los. Ela não gostava de dar dinheiro, trabalhara tanto por ele... Quando chegava em casa, sozinha e com o peso da mochila nas costas, pensava que tanto trabalho seria de mais valia se pudesse ter a quem contar: “Querido, - pensava ela em poder dizer e dizia em voz alta às vezes para as paredes de seu apartamento – hoje o dia foi cansativo. Quero um abraço”, e então ela deitava-se, ligava a tevê e esquecia-se de si e do dia que tivera. Por vezes, recebia uma ligação de seu melhor amigos, Lucas, que não lhe falava nada ou lhe contava tudo. Lucas era assim bem engraçado, pensava Clarice. Conheceram-se por conta de uma autora que Clarice gosta e que carregara por toda sua vida o mesmo nome que ela: Clarice. Lucas não era o infante de nossa Clarice. E mesmo que o tal infante morasse na esquina, na casa ao lado ou fosse um dos mendigos de rua, Clarice não o veria. A solidão a cegara.
Todas as noites, antes de dormir, ela ligava seu computador e digitava algumas palavras. Por fim, chamando o que escrevia de “conto”- na verdade relatos do que ela vivia mas de um modo bem escamoteado para que nem ela soubesse que se tratava apenas dela todos aqueles personagens e todas aqueles dores de que ela tanto gostava escrever – ela os publicava num sitezito que havia criado para si por sugestão de Lucas. E lia. Lia um bocado antes de dormir todas as noites.
Uma vez, outro amigo lhe dissera: “Clarice, porque não busca alguém pela internet?”. A idéia lhe parecera, de primeira, um bocado disparatada. Pessoas não são textos, assim como seus textos não eram ela. Como já tinha ouvido falar que as pessoas mentiam nestes sites! Seria impossível – sim, impossível! – conhecer seu galante infante em qualquer lugar que não fosse as ruas da cidade, por onde andava cega de solidão.
A resistência da moça durara tanto quanto as espumas salinas de um mar bravio. Tendo tomado coragem, Clarice criou um perfil para si e entrou para um dos sites de relacionamento que seu amigos lhe havia indicado.
Pela primeira vez em seus vinte e um anos (porque isso se sucedera num tempo diferente desse em que escrevo, um ano antes do choro copioso de Clarice), escrevera sobre si: “Sou uma menina bonita, atraente e sexy”. Isso era tudo. Ela não era sexy e nem se achava bonita e atraente. Questões de boniteza e atratividade, contudo, não se devem aos olhos do escritor, mas aos olhos de quem vê, pensou ela e por isso decidiu deixar o texto medíocre no ar e clicou sobre o botão “enviar” no canto inferior direito da tela. Ela certamente podia ter escrito coisa melhor, mas por vezes tem preguiça. Eu também tenho preguiça e penso em como me pareço com Clarice. Agora mesmo tenho certeza de que deveria falar mais sobre o que Clarice pensa do que sobre o que Clarice fez. Ah! A realidade... Tão maçante escrever sobre ela, que por horas me sinto um jornalista em seu trabalho. Este texto sobre a realidade da vida de Clarice, sobre cada um de seus atos desde o dia em que decidiu aceitar o apelo de seu amigo para que navegasse pela internet em busca de um amor, me parece um erro. Clarice é um erro. Mas nisso não sou Clarice, apenas escrevo sobre ela. Seus atos fogem de mim e tudo o que de interferência tenho neles é o modo como os conto. Sei que poderia fazer melhor, assim como Clarice poderia ter escrito melhor sobre si. Não sei para quem escrevo, entretanto, e deixo o texto como ele me saiu, sem correções, sem adendos. Se algum outro detalhe me vier em mente, dilacero a história de Clarice e saio insertando-os no texto. Não tenho nenhum compromisso com ela, com a moça de quem falo. Meu compromisso é apenas comigo, quero escrever sobre ela do modo como a história dela me vem. Ai! Que Clarice não fuja de mim! Não saberia o que fazer se ela fugisse. É tão ruim quando um personagem nos escapa. Vários já me escaparam e os perdi de vista, mas Clarice ainda está diante de meus olhos e a vejo tensa em frente ao computador aguardando uma resposta ao seu “Sou uma menina bonita, atraente e sexy”.
Seu texto medíocre lhe rendera sua primeira paixão.
Amara o rapaz tão fulminantemente que nem se dera conta de que era possível amar sem ser amada. E continuou amando-o em si, mesmo quando o corpo dele já não estava dentro do dela. E continuou amando-o em si mesmo quando os olhos dele não olhavam o dela e sim o de outra mulher. Clarice fantasiava que o via antes de dormir. Deixara de ler e deixara de escrever seus contos. Perdera o rumo que seguia em sua vida de tanto amor que sentia. Algumas vezes exclamava para si: “Que boba você é! Bobinha!” e ria olhando-se no espelho antes de tomar um banho quente. Amara o rapaz mesmo depois que ele sumira de sua vida e acreditou nunca mais ser capaz de amar outra pessoa. A solidão, que outrora a cegava, fora substituída então pela fantasia da companhia. Clarice vivia com a presença etérea de Felipe, o rapaz, ao seu lado. Conversava com ele longamente sobre a vida e o encaixava em todos os seus sonhos e planos. Felipe era a certeza de que precisava para seguir a vida. Chegara mesmo a deletar seu perfil medíocre do site, já que de nada mais precisava quando já cria ter tudo o que lhe era necessário. Tudo que lhe era necessário era nada. O rapaz existia apenas para si. Nunca para Clarice. Sem perceber, Clarice amaa uma idéia.
Amar uma idéia é diferente de amar uma coisa real. Tenho medo de me apaixonar por Clarice, que é uma idéia. Se me apaixono por ela, como me distanciar se nenhuma relação real se estabelece? Se em minha idéia só vejo e crio perfeição? Felipe era perfeito na idéia de Clarice. Como ter raiva de uma relação perfeita? Como afastar-se daquilo que, de tão nosso, apesar de crermos estar fora da gente, acaba sendo nós mesmos? Quero terminar a história de Clarice por puro medo de amá-la e cegar-me como ela cegou-se. Clarice não é minha companhia. Clarice é meu expurgo.
Quando escrevemos, escrevemos sobre o quê? Escrevo sobre Clarice. Ela sou eu. Eu sou Clarice. E a vejo em frente ao seu computador após ter chorado compulsivamente por três horas e quinze minutos. Ela sorri. Há tempos não a via sorrir daquele modo.
Um ano se passou. A paixão pela idéia de Felipe perseguia Clarice como as ondas do mar. A imagem suave de Felipe ia e vinha em sua mente. Sentia saudade, não sentia saudade, sentia saudade, não sentia saudade, sentia saudade... Clarice era, ela mesma, um grande mar cheio de ondas. Foi ver-se a si na praia. Sentou-se nas pedras do Arpoador, onde estivera com Felipe um dia. Olhava o horizonte e se via. Compreendeu ali que ela era um mar, assim com eu acabei de dizer. O mar era de água. A água não era o mar, pensou ela. O mar é o mar. A água é a água. Não há mar sem água assim como há água sem mar. Eu escrevo e não existe minha escrita sem que exista Clarice, mas existe Clarice sem mim e meu amor por ela seria amar uma idéia, seria nunca ser correspondido, por isso corro e em mais dois parágrafos termino a história de Clarice, a moça que, olhando num final de tarde o mar deu-se conta de que amara Felipe sem ter sido amada por ele. Felipe, seu primeiro amor, nunca lhe amara. Não era, então, amor de verdade e os olhos de Clarice continuaram sem ver. Mas não mais pela fantasia da companhia é que ela era cega e sim novamente pela solidão obscura.
Foi neste dia que chegou em casa e chorou compulsiva e renitentemente por três horas e mais quinze minutos, quando pensou que as relações eram como um mercado. Conseguiu então, distanciando-se da idéia perfeita que fizera de Felipe e com que se relacionara por todo este tempo, ter rava do rapaz. Não do que imaginara e criara apenas para si, mas do de verdade, aquele que a abandonara e que estava, provavelmente, nos braços de outra. Sentou-se em frente ao computador e esboçou um novo perfil de si: “Sou Clarice e não existe amor”. Enviou seu perfil para o site e logo recebeu uma resposta.
Era Alex. Conversaria com ele por toda aquela noite. E por outras que ainda não viveu, mas que eu já sei que irá viver. Clarice, desde esse dia, voltou a sorrir. Um sorriso de canto de boca, um sorriso de lado a lado de face. Um sorriso de dentro. Não mudou o texto que a definia, mas se o fizesse, certamente agora escreveria algo como “Sou Clarice. Já desacreditei do amor. Agora, amo.”, mas ela não faria isso porque já não precisava do site. Do outro lado da tela do computador, falava com o seu infante, aquele que sua mãe lhe falava quando nossa moça ainda era criança e pensava que uma vida sem amor ia ser assim bem triste. E termino o último parágrafo e apago Clarice de mim para que não me cegue com a esperança da companhia dessa moça por mais algum tempo.

sábado, 15 de março de 2008

Da breve continuação do encontro no horário de almoço

Gabriel escrevera então para Guilhermina uma mensagem lhe chamando para ir ao cinema na noite daquele mesmo dia.





Aguardou por uma resposta







que não vinha.



Quando já estava no cinema, a resposta que teimava em não chegar, fora recebida com uma vibração silente de seu celular.
Mesmo na sala escura, em meio à projeção, Gabriel lera a mensagem... Responderia? Talvez... Mas nenhuma mensagem pequena seria capaz de falar do que ele percebia que tinha feito: mais uma vez, por medo diante do que procurava (pois que Guilhermina era o que ele procurava e encontrar o que procuramos, às vezes, nos dá medo), Gabriel agiu imbecilmente e usou a defesa mais comum a si: o humor deslavado e barato.
Mas talvez respondesse educadamente. Talvez fosse no mínimo educado pedir desculpas pelas brincadeiras que fizera com a distância em que a menina morava... Mas queria mesmo era que ela o desculpasse por como agira e que o desse, ao menos outra vez, a possibilidade de sua presença do outro lado da mesa.

Sobre um encontro no horário de almoço

"Está guardado comigo o seu nome"
Ferreira Gullar
O frio se adensava entre ambos como uma multidão e os separava, e os dividia, e os reduzia cada um ao seu único, desfazendo o encontro. Mas eles teimavam - sobretudo Gabriel -, eles insistiam, eles retomavam o encontro de onde este haviaparado, seé que encontro é matérias de "retomar-se". Nem mesmo a chegada de duas amigas de Gabriel impedira que ambos teimassem, insistissem e retomassem a conversa interrompida e dificultada pelo frio e pelos outros. Sairiam do café, uma hora e meia após haverem se sentado naquelas cadeiras vermelhas cheias de um estilinho metido a besta, sem nada terem combinado, sem terem trocado impressões sobre o momento que acabara de findar-se, sem promessas de futuro. Apenas o vazio do fim do encontro os acompanharia até Deus sabe quando, que é quando o vazio do encontro poderá ser substituído por algum outro vazio ou por um falso preenchimento qualquer ou coisa que o valha.
Ela se chamava Guilhermina. Procurava alguma coisa. Por não saber bem o que procurava, perguntava aos outros pelo quê procuravam. Ele se chamava Gabriel. Ele achava procurar algo que sabia bem o que era, mas quando encontrava o que pensava buscar, percebia que havia se enganado e partia em nova busca daquilo que acreditava saber que queria e, por crer saber, não perguntava a ninguém o que eles procuravam.
Guilhermina e Gabriel descobriram-se ao mesmo tempo. Ela, em sua busca cega; ele, em sua busca burra, esbarraram-sena rua,apressados que iam: ele para a empresa, ela para a academia, e trocaram telefones.
Guilhermina não era ansiosa como Gabriel,mas ainda assim ligou para o rapaz dias depois perguntando se não almoçariam juntos aquele dia. Gabriel estava doente. Apenas doente, mas logo, doente E arrependido, pois não aceitara as diversas ofertas da menina preocupada de lhe fazer companhia enquanto esta lhe fosse necessária em virtude da doença. No entanto, Gabriel preferiu deixar o arrependimento de lado e agarrou-se à esperança de ligar para Guilhermina tão logo se recuperasse. Seria então que marcaria um primeiro encontro em que pudessem sentar em algum café da cidade e conversar sobre a vida.
Foi então que, recuperado, Gabriel ligou para Guilhermina e o encontro que sabemos ocorreu e findou-se. Gabriel, agora, podia dizer ter, de fato, a certeza do que procurava; Guilhermina, para mim, contudo, continua uma incógnita após os momentos que os dois passaram juntos naquele café, já que Gabriel sou eu, que os escrevo e que procuro Guilhermina e ela não sou eu.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Parabéns para mim

O chapeleiro pediu atenção. Iria fazer um discurso para o aniversariante que, ágil, posicionara-se atrás do bolo, meticulosamente arrumado no centro da grande mesa comunal. Eram muitos os convidados que ouviriam o discurso, por isso o chapeleiro escrevera tudo em longo pedaço de papel. O papel era tão, mas tão longo que foram precisos três anões para desenrolá-lo e cuidar para que não se rompesse è medida que fosse sendo puxado pelo chapeleiro ao longo de sua leitura.
O silêncio, aos poucos, começou a reinar. As princesas e príncipes, todos presentes, as fadas, os reis e seus serventes, os bobos de três cortes diferentes, alguns súdito mais diletos, todos estavam ali e foram calando-se com o calor do abafante desejo de falar do chapeleiro.
O chapeleiro retirou o chapéu e trouxe-o, então, para junto do peito. O silêncio pesou sobre todos como uma entidade. Foi então que o discursante respirou e deu início e fim ao seu discurso:
- Querido, querido... Ai, ai... Parabéns!
O silêncio expectante continuou pesando sobre todos até que o aniversariante deu uma boa gargalhada e aplaudiu a iniciativa do amigo fazedor de chapéus: "Meu caro, meu caro, assim nem completo os 22 anos, que você me matará de rir antes de completar a hora do meu nascimento!". Todos gargalharam em conjunto e aplaudiram um chapeleiro encantado com a recepção que tivera seu pobre discurso.
Foi então que as três fadas levantaram vôo e sobrevoaram o salão velozmente. Pararam sobre a cabeça do aniversariante e a que estava vestida de verde disse:
- Querido, ah!, querido! Como é bom estar aqui ao seu lado! Por essa dádiva que me permites, te dou uma eterna coleção de amigos, que seguiram contigo por toda a vida.
A segunda, vestida de rosa, então falou:
- Querido, ah!, querido! Como é bom comer ao seu lado! Por essa dádiva que me permites, te dou um eterno suprimento de tudo o que é mais necessário ao corpo do homem: carinho, atenção e amor na medida certa.
Eis que a terceira, vestida de azul, proferiu as palavras finais:
- Querido, ah!, querido! Como é bom te ver feliz! Por essa dádiva que me permites, te dou de tudo o que precisares e que não tenhas ganhado das minhas colegas. De tudo para tua felicidade!
Todos aplaudiram esses gestos efusivamente e lembraram-se que as velas por sobre o bolo já estavam consumindo-se. Tinham que cantar parabéns!
A agitação tomou conta de todos. Os olhares furtivos eram trocados, como que em um sinal combinado para o começo da canção comemorativa.
O aniversariante, então, puxou o canto. Abriu os olhos fechados, encarou a sala vazia de seu apartamento, o bolo de chocolate posto sobre a cadeira do computador jazia a sua frente, os personagens de sua imaginação foram deixados para trás e ele cantarolou baixinho e sozinho em sua casa:
- Parabéns para mim... Parabéns para mim...

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Saudade de você que nem existe

Ei, querida, queria te dizer que sinto sua falta, mas de que adiantaria? E de que adiantaria não dizer, também? Sinto sua falta e isso é tudo. Mas não sei se sinto falta de você. Não é de teu corpo que sinto falta. Há muitos corpos em volta de mim. Para onde olho, um novo corpo. Não é do teu corpo que sinto falta e nem de você. Sei que é complicado, mas me acompanhe que você será capaz de entender. Talvez não hoje. Hoje, nem sempre, é a hora.
O que o outro é para alguém senão uma fantasia? Uma fantasia concreta. A concretude da fantasia-outro não anula a fantasia. A fantasia-outro é um infindo carretel de possibilidades. Somos nós que escolhemos os fios com que iremos tecer o outro-fantasia.
Você-fantasia. É disso que sinto falta. Sinto falta em você de tudo aquilo que você nunca foi e nem nunca poderia ser, a não ser para mim. A não ser em minhas idéias. Ainda assim, gosto de você, mesmo com a certeza de nunca receber o desejado. A reciprocidade é o sentimento que temos de estarmos sendo correspondidos por nós mesmos na fantasia-outro que criamos para o outro. O que tivemos foi recíproco, pois dei ao você-fantasia de você tudo o que eu queria. Recebi tudo em troca naquele tempo em que estivemos juntos.
Você... A pessoa com que sonhei desde pequeno, quando imaginava as luzes vermelhas de uma cidade grande esfumacenta, e suja, e cheia de ruídos e de dinheiro. Me imaginava em uma casa grande, um apartamento cosmopolita de uma cidade cosmopolita e minha esposa cosmopolita. Você-fantasia era essa esposa e dei a você-fantasia tudo o que eu precisava em você e recebi tudo em troca, mesmo sem você ter, de verdade, me dado qualquer coisa. Somos nós que nos damos o que queremos. Isso é tudo. Errados são os que esperam que o mundo e o outro entreguem aquilo que desejam. Errados são aqueles? Talvez eu mesmo é que esteja errado, mas como foi bom acreditar que você me dava tudo, você que não era você-concreto, agora sei. Me relacionei com o você-fantasia de você e é dele que sinto falta.
Qual a vantagem em se relacionar dessa forma? Se nada é concreto... Se mesmo distantes eu ainda pudesse dar ao você-fantasia de você tudo aquilo que eu desejo. O problema é que a fantasia de você, que é sobre o que falo, é criada a partir de você. Necessito de sua corporeidade. Não preciso de nenhum ato seu, de nenhuma entrega. Quero apenas você ao meu lado, mero objeto que eu possa mirar e dotar daquilo que necessito e crer que recebo de volta o que na verdade sou eu quem me dou.
Mas, queride, esqueça toda essa profusão sem fim de palavras. A verdade... A verdade... A verdade é que sinto saudades de você, que nem existe.

Nós

Como nascem os nós? Tem um nó em mim. Tenho nós em mim, eu que sou um só. E não fui eu quem o atou. Para que servem nós? E para que os atamos? Tem um nó em mim e não sei o que fazer dele sem que ele me escape. Os nós são rápidos e fogem de meus dedos. A cada toque, sinto-os mais apertados, como nosso ser que quanto mais o procuramos, menos encontramos e mais nos afundamos neles. A interioridade é complicada. Viver para dentro é nunca saber onde se chega, porque depois do fim há um recomeço. E o recomeço, apesar de "re-", nunca é o mesmo começo. É um começo novo, de outro ponto. Dentro de mim há um ponto que não entendo. Ele está na minha garganta e é um nó. Tenho um nó na garganta. Para que serve o meu nó?
A cada toque, penso: ele não irá atender. A cada toque, meu nó se ata mais. Se me volto para mim, são dois toques: o do telefone - e o nó aperta a cada tom na linha sem resposta do outro lado - e o meu toque, este de quando olho para dentro - e o nó aperta em mim a cada nova tentativa de desatá-lo. E se os toques parassem? Para que servem os nós atados pelos toques? E se os dois toques são ruins, para que os deixo tocarem?
Desligo o telefone. Deito em minha cama. Desisto.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

O Camelô

Senhores, boa noite!
Antes de tudo, eu gostaria de pedir-lhes desculpas por atrapalhar a calmaria de suas viagens, o silêncio deste ônibus... Mas eu poderia estar matando, roubando, assaltando ou qualquer coisa que o valha... Não, senhores! Nunca! Em vez disso, estou aqui e, mais uma vez, humildemente peço-lhes desculpa pelo incômodo.
É que o amigo traz aqui, hoje, para os senhores, uma novidade. Antes de tudo, já vou logo para a parte final: é que estas coisinhas que lhes trago não são vendidas em loja. Quer dizer, em qualquer padaria, mercado, loja de doces, em lugar algum os senhores encontrariam o que o amigo traz aqui hoje.
Por isso, senhores, elas não têm preço. Sim, não tem preço. E isso, então, os senhores já devem ter percebido, não se trata de comércio, que eu tenho meus meios de ganhar a vida honestamente sem precisar incomodá-los.
A bem da verdade, senhores, essas pequenitas bençãos vendem por aí sim. Mas quem as vende, não as têm de fato e tudo não passará, portanto, de malogro nas mãos de outrem que não eu.
Afianço-lhes que o que digo é verdade e os senhores irão concordar comigo ao final, espero. Quem as vende, não as têm e, eu mesmo, por alguns instantes cheguei a crer não tê-las mais. Sim, quase saí pondo-lhes um preço: o preço da atenção que precisava sentir a mim sendo dispendida pelos outros.
Estes outros, todos, me cobraram. Preço alto. Mas as dores passaram - ou passam, ainda.
Pois, senhores, o que lhes trago hoje são apenas coisitas diminutas e muito fora de uso. Peço, contudo, que não se envergonhem em usá-las e em pedí-las, por mais que lhes soe estranho e que os outros passem a olhar para vocês como se vocês fossem parte de um passado muito distante e sombrio, quando estas coisas que lhes trago ainda eram de uso corrente.
O que lhes trago, senhores, são coisas simples e diminutas, sim, e não têm valor algum, por isso é errado vendê-las, afixar nelas preços altos e dores que escondem-se na parte de "efeitos colaterais" da bula que - pasmem! - nunca nos entregam quando compramos tais produtos. Pois é... Temos que descobrir o texto da bula experimentando. E posso dizer-lhes, com a sapiência de quem pagou para ver e viveu: os efeitos são lancinantes.
Pois que o que lhes trago hoje, senhores, esta noite são coisas bobas, tolas e piegas: carinho, atenção, amor e disposição.
Agora, o amigo vai passar pelo corredor e quem quiser...

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Necessidade do Grito

Tudo o que quero é ver-me livre. Livre de tudo e que em tudo esteja, também, eu. Ah! Sinto-me como um bicho perseguido por dezenas de caçadores: cercado, acossado: sou um bicho perseguido. E tudo o que eu queria era ver-me livre de todo o peso, Senhor! Ah Deus meu, para que lado corro? Queria achar-me e perder-me de mim, tudo ao mesmo tempo: isso é a verdadeira liberdade. Ser e não ser eu: eis o meu desejo, que é mais mesmo uma necessidade. Sou bicho de bueiro perseguido por outros bichos de bueiro, raposa perseguida pelos caçadores. Mas tenho carne ruim e, valha-me Deus!, que eles desistam.
Tento bravamente fugir, mas não sou bravo. O que me falta é coragem. Há faltas que são como dores e há aquelas que causam dores. Não tenho coragem e dói-me. Sinto doer por dentro: a dor da culpa e da solidão são as que mais doem. Doem tanto que, por vezes, penso que sucumbo. Mas volto e recomeço a sentí-las sempre e de novo e volto à fuga incessante, infinda, injusta e insana: fujo de todos e de mim. Queria olhar-me e não ver.
Tenho a sensação de que, como bicho, sou visto a cada momento. Tenho olhos pesando sobre mim e trago comigo um peso. Já são dois os pesos que carrego, que trago por sobre mim olhos e expectativas. Muito se espera de um bicho em fuga. Primeiro, espera-se coisa boa e por isso se quer capturá-lo (ou capturar-me, que é o que se dá). Depois, há o que há de ruim e que, para os outros, se confirma com a fuga: se foge, é que tem culpa, pensam eles.
Não tenho culpa. O que tenho nem sei. O que tenho? Talvez o que tenha seja essa necessidade de nada ter. E que no nada inclua-se tudo. Não quero ter que ter tudo. Ah! Como as obrigações são maçantes! Como é chato ter que ser presente quando tudo o que se precisa é de ausência. Retiro-me do mundo e o mundo me caça. Nas distantes cavernas em que eu me escondo de mim, o telefone me acha e toca logo cedo, de manhã, eu ainda na cama, o corpo mole e a cara inchada. Toca e eu atendo: alô, eu digo, não estou nem para mim mas estou para a voz do outro lado da linha, que responde, que responde, que responde, que sempre responde e liga novamente, e desliga e religa e me liga sempre!, sempre me querendo à disposição minha atenção meu olhar minha voz meu alento eu atento mas não estava agora mesmo nem para mim e digo alô pois não do que precisa e dou minha voz amiga e dou minha compreensão mas é sempre pouco: tudo é sempre pouco quando o que querem é você todo, quando o que querem são eles mesmo, eles que não se acham e pensam que vão se achar em outro. Pior é quando o outro é você e hoje, o outro de que precisam sou eu: bicho acossado, bicho foragido, bicho.
Então, tenho de acordar todos os dias e, além da roupa e da vida, tenho de vestir o peso da vida dos outros, tomar-lhes as escolhas como se fossem minhas. Tenho mesmo?, penso eu, e toca o telefone e digo alô pois não do que precisa e dou minha compreensão e ouço o choro soluçante e a cobrança nas entrelinhas "quando você vem vem em casa" perguntam e eu respondo que em breve e "breve é quando" perguntam e eu não tenho o direito de ficar com raiva pois se dizem isso é de saudade e saudade deve ser premiada e não punida que saudade é sentimento bonito. Mas não me censuro, não me controlo e, bicho que sou, respondo que não sei, que pode levar dias, semanas ou meses. É difícil de saber dessas coisas da vida. Eles, contudo, sempre tão indecisos, têm apenas uma certeza: a de que a vida deles é a minha, a de que somos uma amálgama, uma coisa estranha. Por vezes sinto que devo dizer que não sou eles, que eu sou eu, mas quero me ver livre inclusive deste eu que tenho de afirmar diante deles. Por vezes sinto-me sujo pelo incesto não cometido, sujo pelo incesto cometido, pelo não cometido que cometi e deixei de cometer. Sinto-me sujo, bicho de bueiro, bicho acossado e perseguido e sujo.
Ah! Valha-me Deus que me esvaio de mim num grito. Minha voz me liberta, mas menos de mim, que minha voz ainda sou eu. Valha-me Deus que me atiro do alto deste prédio que sou eu mesmo, valha-me que atento contra mim, que tento ser eu e viver sozinho, ah! valha-me senhor que agora corro o arriscado risco de existir.
Sabe? Tem momentos em que a dor muda e vira dor mesmo. Sim, a dor da falta de coragem de que já falei antes, ela vira dor de verdade e agora me aperta o peito. Ai! que sinto dores no peito e penso na morte. Será a morte o caminho?, Decerto, um caminho, mas ainda não me enveredo por ele e me enveredo por ele todos os dias. Desse caminho, sei, não tenho escolha: percorro-o sempre, e que chegue sem demora, que chegue sem demora essa solução. Eu preciso de uma vida. Eles precisam de outra, mas não percebem que vivem a minha como se deles fosse. Quero viver por mim, somente, por mim e quando decido isso toca o telefone mais uma vez e digo alô pois não posso lhe ajudar e sempre solicito ouço do outro lado a voz que me cobra que me ajuiza que me aconselha em tom paternal e me diz para nao gastar com comida para gastar com comida e não gastar com comida para não ir a restaurantes caros e nao ter a vida que tenho que a vida é a que eles tem humilde frugal modesta isso sim é vida e não os restaurantes caros a que os levo sempre que posso. Para os diabos! Sou bicho acossado mas sou bicho do capeta e mando todos para o inferno. Que a vida e minha e deixem-ma viver.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Do Pequeno Príncipe

Coincidências há que não se compreende. Certos acontecimentos devem permanecer calados no canto da parede de tempo em que aconteceram para que, de onde estamos agora, possamos olhá-los em busca de compreensão. Por mais que se olhe, contudo, as percepções sempre mudam e assume-se tarefa impossível essa de dar conta de todo o surpreendente acontecido:
Pois que foi em uma noite suja que se falaram pela primeira vez e na primeira noite suja em que não se falaram vez alguma, metade deles (que é o mesmo que dizer "um inteiro") sentiu falta da palavra do outro, que não vinha, que não vinha.
Lembrou-se então, súbito, da raposa e do príncipe: "venha sempre todos os dias no mesmo horário", ela disse, "pois assim cria-se a expectativa", ela disse, "e com o tempo, virá... a saudade".

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Compreensão (Resposta à Amira)

Quanto mais gostava de alguém, menos era ele mesmo.
Quanto menos gostava, mais se revelava.
Os primeiros, por isso, o abandonavam.
Os segundos, por isso, se encantavam.
Pelos primeiros, morreria.
Dos segundos, sempre fugira.
E agora, você pode encontrá-lo numa esquina ou dentro de seu quarto lamentando todos os amores que amara e deram errado e todos os não-amores que o amaram e que ele rejeitara sumariamente.
Na percepção de que, sendo si mesmo, algum amor lhe é devotado, sente-se bem. Mas sente-se mal pelo medo que tem de ser ele mesmo quando mais lhe é necessário, diante de quem ele gosta. E pensa: "Se sei que sendo eu, conquisto... Se sei que não sendo eu, gero repulsa... Percebo que meu projeto de não ser sozinho no mundo, em verdade, é apenas a máscara do meu projeto de ser fracassado no amor, porque mesmo sabendo o caminho (que é ser eu mesmo diante de quem gosto), insisto em não seguí-lo e há aí, então, uma escolha deliberada pela solidão e pelo sofrimento amoroso".

A Imagem Morta

Tendo metido desperançadamente seu pau na buceta úmida da mulher, pegara a espingarda no velho armário embutido no alto da parede suja do corredor, escurecido pelas sombras de um final de tarde, trancara-se no banheiro e disparara a arma enfurrajada pelo tempo.
Aquela espingarda havia pertencido ao bisavô, conhecido caçador de lebres no interior, de onde a família toda viera. Depois passara para o pai de seu pai, e para seu pai: sem serventia, restou à arma ficar guardada e escondida, como uma lembrança vergonhosa, nos armários das casas porque passara. Agora pertencia a Ernesto e soltava fumaça pela ponta do cano duplo, quente e cheirando a pólvora.
As paredes do corredor, que iam dar no banheiro, ficaram alvoroçadas com o barulho: o que havia acontecido ali ainda não sabiam e nem lhes seria permitido saber.
A moça no quarto ainda dormir e não fora, surpreendentemente, acordada pelo barulho no cômodo ao lado. Havia muito que não se entragava a um homem e o labor fastidioso lhe exaurira. Dormir lhe acenava após sexo infindo como uma possibilidade melhor do que a de conversar com Ernesto.
A companhia do homem lhe era bastante agradável e ainda há uma hora, teria preferido continuar no restaurante a ir para a cama, mas algumas opções não nos são apresentadas quando mais precisamos delas e teve de levantar-se quando Ernesto retornou do caixa com um sorriso leve nos lábios.
- Quer alguma coisa antes de voltarmos para casa? - ele perguntou.
- Não. - respondeu secamente. Teria preferido ficar no restaurante, mas agora já era tarde.
Ernesto, ao chegar em casa, abriu as cortinas da sala para deixar a luz alaranjada do fim de tarde iluminar os cômodos e encaminhou-se para o quarto. Helena seguiu-o, um pouco ansiosa, um pouco sem vontade. Sabia o fim que aqueles passos teriam.
Não passara muito tempo até que sentisse as mãos áridas dele tocando-lhe a bunda e o vão entre as pernas. Ernesto nunca tivera muito jeito para o sexo. Era-lhe difícil respeitar a feminilidade de uma mulher e, por isso, dificilmente conseguia fazer com que suas parceiras gozassem.
Sua sorte é que nascera brasileiro: esse lugar de mulheres sexuadas, mas dissimuladas no jeito. Nunca tivera dificuldade em conseguir levá-las para cama, entretando nunca conseguira delas o que lhe seria útil: uma verdade.
Sentindo a mão pesada de Ernesto em sua buceta, Helena só conseguiu tirar de si um gemido, menos de prazer que de dor. E logo que olhou para baixo, viu que Ernesto se sentava na beirada da cama de casal, seu pau rígido debaixo das calças; aquele pau conhecido de Helena, que mesmo ruim no sexo ela acabava cedendo aos encantos e necessidades do antigo parceiro de bar e ideologia política.
Quando ligara para Helena aquela manhã, Ernesto tinha uma idéia em mente. Ainda jovem prometera a si que, caso não tivesse constituído família até os 47 anos de idade, e constatando então sua inutilidade para o mundo, não apenas pela falta da paternidade ou conjugalidade, mas também por qualquer outro motivo que lhe viesse à lume nesta idade, riscaria-se da vida sumariamente.
No entanto, tinha seus orgulhos. Aos 47, muito eles haviam crescido e, fiel à sua promessa, viu-se, como dizem, entre a cruz e a espada, ou entre o fracasso e a possibilidade de reparação. Muito difícil era para ele extinguir-se do mundo sem haver, mais uma vez, tentado.
Entre as frases trocadas com Helena pelo telefone, perguntas feitas e respondidas, deu-se o convite para o restaurante. Helena entrevira na fala o sexo ao final da tarde. Com Ernesto, ela sabia, as coisas eram mesmo assim: os desejos ficavam subtraçados no discurso; tinha-se que adivinhá-los caso não se quisesse correr o risco de surpresas. Ainda assim, com a promessa pouco convidativa de uma trepada até o começo da noite, aceitou o convite e foi almoçar com o antigo amigo.
Tão logo pode, Ernesto pediu a conta ao garçom. Queria logo terminar com tudo aquilo. Queria logo a consciência de que, ao menos antes do fim, tentara verdadeiramente mais uma vez, ao menso, procriar.
Em casa, já no quarto, foi logo esfregando a mão rude na bunda de Helena e, deixando-a correr pelos quadris largos da mulher, apalpou aquela buceta já conhecida, mesmo por cima da calça, esperando que já estivesse molhada. Não gostava de enrolações. O sexo era algo a ser consumado rapidamente, talvez por culpa cristã, talvez por uma necessidade gritante. Ernesto confiava boa parte de seus atrativos sexuais ao poder de sua mão de homem.
Helena abriu o fecho de sua calça e deixou-se cair na cama. Ernesto despira-a rapidamente. De pé, despiu-se de súbito e deixou seu corpo cair sobre o da mulher. Sentiu seu pau roçando a carne levemente úmida de Helena. Ela, com os olhos fechados, pensava em Fernando, sua paixão de adolescência, quando sentiu a carne abrutalhada dele aferroando-lhe fundo o ventre, e agarrou-se à imagem de Fernando como um moribundo à vida, ao passo que Ernesto, o verdadeiro moribundo, percebeu o ridículo de seu esforçoe decidiu puxar seu pau para fora do corpo de Helena, ao que disse:
- Ah! Helenita, me desculpe... Não posso... - e deixou sua cabeça cair no colo da mulher.
Sem saber o que fazer, Helena agarrou-lhe os cabelos e começou a acaricíá-lo, em parte satisfeita pelo fim, em parte temerosa dos motivos que impediam Ernesto de ter um orgasmo: seria ela? Poderia continuar uma conversa, mas talvez fosse melhor não dizer nada.
Pouco tempo seria necessário para que Helena adormecesse e não acordasse com o barulho alto no banheiro ao lado do quarto, nem como o barulho sussurrante das paredes do corredor, curiosas por saber o que estava acontecendo.
Havendo pegado a espingarda no armário do corredor, Ernesto trancara-se no banheiro. Cinco segundos fora o tempo necessário para que percebesse duas qualidades que não sabia ter: era um grande covarde e um esperançoso, se é que esperança e covardia não são frutos de uma mesma temerosidade.
Levantou os olhos, as mãos trêmulas de medo, a morte sentada na banheira a espiá-lo de longe, mas já entediada e certa de que perdia tempo como quase sempre com os suicidas. Ernesto pode ver, então, sua imagem refletida no espelho por sobre a pia e, segurando firmemente a arma de herança, disparou um tiro contra a imagem de um Ernesto antigo, que acabara de morrer ali, mas sem que a morte pudesse tirar proveito.
Já não havia espelhos para que ele pudesse ver a imagem de um novo Ernesto. Mas havia ouvidos e lábios e ainda um filete de voz, trêmula e fraca por tudo o que ele acabara de viver naquele pequeno cômodo. Com este ouvido e esta voz fraquejante, Ernesto abrira a porta do banheiro, voltara cambaleante para o quarto e, sacudindo Helena para que ela acordasse, disse-lhe:
- Helena, me ensine a amar.
Ela puxou-o para si e começou a acariciá-lo novamente e morrera 15 anos depois sem saber que fora ela quem dera aquele que ainda veio a ser seu marido, Ernesto, uma chance de viver novamente.