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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Necessidade do Grito

Tudo o que quero é ver-me livre. Livre de tudo e que em tudo esteja, também, eu. Ah! Sinto-me como um bicho perseguido por dezenas de caçadores: cercado, acossado: sou um bicho perseguido. E tudo o que eu queria era ver-me livre de todo o peso, Senhor! Ah Deus meu, para que lado corro? Queria achar-me e perder-me de mim, tudo ao mesmo tempo: isso é a verdadeira liberdade. Ser e não ser eu: eis o meu desejo, que é mais mesmo uma necessidade. Sou bicho de bueiro perseguido por outros bichos de bueiro, raposa perseguida pelos caçadores. Mas tenho carne ruim e, valha-me Deus!, que eles desistam.
Tento bravamente fugir, mas não sou bravo. O que me falta é coragem. Há faltas que são como dores e há aquelas que causam dores. Não tenho coragem e dói-me. Sinto doer por dentro: a dor da culpa e da solidão são as que mais doem. Doem tanto que, por vezes, penso que sucumbo. Mas volto e recomeço a sentí-las sempre e de novo e volto à fuga incessante, infinda, injusta e insana: fujo de todos e de mim. Queria olhar-me e não ver.
Tenho a sensação de que, como bicho, sou visto a cada momento. Tenho olhos pesando sobre mim e trago comigo um peso. Já são dois os pesos que carrego, que trago por sobre mim olhos e expectativas. Muito se espera de um bicho em fuga. Primeiro, espera-se coisa boa e por isso se quer capturá-lo (ou capturar-me, que é o que se dá). Depois, há o que há de ruim e que, para os outros, se confirma com a fuga: se foge, é que tem culpa, pensam eles.
Não tenho culpa. O que tenho nem sei. O que tenho? Talvez o que tenha seja essa necessidade de nada ter. E que no nada inclua-se tudo. Não quero ter que ter tudo. Ah! Como as obrigações são maçantes! Como é chato ter que ser presente quando tudo o que se precisa é de ausência. Retiro-me do mundo e o mundo me caça. Nas distantes cavernas em que eu me escondo de mim, o telefone me acha e toca logo cedo, de manhã, eu ainda na cama, o corpo mole e a cara inchada. Toca e eu atendo: alô, eu digo, não estou nem para mim mas estou para a voz do outro lado da linha, que responde, que responde, que responde, que sempre responde e liga novamente, e desliga e religa e me liga sempre!, sempre me querendo à disposição minha atenção meu olhar minha voz meu alento eu atento mas não estava agora mesmo nem para mim e digo alô pois não do que precisa e dou minha voz amiga e dou minha compreensão mas é sempre pouco: tudo é sempre pouco quando o que querem é você todo, quando o que querem são eles mesmo, eles que não se acham e pensam que vão se achar em outro. Pior é quando o outro é você e hoje, o outro de que precisam sou eu: bicho acossado, bicho foragido, bicho.
Então, tenho de acordar todos os dias e, além da roupa e da vida, tenho de vestir o peso da vida dos outros, tomar-lhes as escolhas como se fossem minhas. Tenho mesmo?, penso eu, e toca o telefone e digo alô pois não do que precisa e dou minha compreensão e ouço o choro soluçante e a cobrança nas entrelinhas "quando você vem vem em casa" perguntam e eu respondo que em breve e "breve é quando" perguntam e eu não tenho o direito de ficar com raiva pois se dizem isso é de saudade e saudade deve ser premiada e não punida que saudade é sentimento bonito. Mas não me censuro, não me controlo e, bicho que sou, respondo que não sei, que pode levar dias, semanas ou meses. É difícil de saber dessas coisas da vida. Eles, contudo, sempre tão indecisos, têm apenas uma certeza: a de que a vida deles é a minha, a de que somos uma amálgama, uma coisa estranha. Por vezes sinto que devo dizer que não sou eles, que eu sou eu, mas quero me ver livre inclusive deste eu que tenho de afirmar diante deles. Por vezes sinto-me sujo pelo incesto não cometido, sujo pelo incesto cometido, pelo não cometido que cometi e deixei de cometer. Sinto-me sujo, bicho de bueiro, bicho acossado e perseguido e sujo.
Ah! Valha-me Deus que me esvaio de mim num grito. Minha voz me liberta, mas menos de mim, que minha voz ainda sou eu. Valha-me Deus que me atiro do alto deste prédio que sou eu mesmo, valha-me que atento contra mim, que tento ser eu e viver sozinho, ah! valha-me senhor que agora corro o arriscado risco de existir.
Sabe? Tem momentos em que a dor muda e vira dor mesmo. Sim, a dor da falta de coragem de que já falei antes, ela vira dor de verdade e agora me aperta o peito. Ai! que sinto dores no peito e penso na morte. Será a morte o caminho?, Decerto, um caminho, mas ainda não me enveredo por ele e me enveredo por ele todos os dias. Desse caminho, sei, não tenho escolha: percorro-o sempre, e que chegue sem demora, que chegue sem demora essa solução. Eu preciso de uma vida. Eles precisam de outra, mas não percebem que vivem a minha como se deles fosse. Quero viver por mim, somente, por mim e quando decido isso toca o telefone mais uma vez e digo alô pois não posso lhe ajudar e sempre solicito ouço do outro lado a voz que me cobra que me ajuiza que me aconselha em tom paternal e me diz para nao gastar com comida para gastar com comida e não gastar com comida para não ir a restaurantes caros e nao ter a vida que tenho que a vida é a que eles tem humilde frugal modesta isso sim é vida e não os restaurantes caros a que os levo sempre que posso. Para os diabos! Sou bicho acossado mas sou bicho do capeta e mando todos para o inferno. Que a vida e minha e deixem-ma viver.

Um comentário:

Anônimo disse...

To all parents!