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sábado, 19 de abril de 2008

Clarice 5

Escrever sobre Clarice é escrever sobre uma inesperada e dolorida ânsia de felicidade. Escrever sobre Clarice é lidar com o incontrolável de mim, que sou todo controle. Porque ela, sendo eu, me escapa. E eu, sendo eu, me escapo. Clarice é um escapismo. Clarice é uma catarse e escrever sobre ela é como escrever sobre mim, mas ao contrário. Posso olhar a vida de Clarice à quilômetros de distância, ao passo que minha vida olho de dentro. Escrever sobre Clarice é lidar com minha dor nela.

Estou apaixonado por Clarice e Clarice está apaixonada pela vida. A dor que sentira àquela noite depois do cinema acordara Clarice para a vida. Agora a moça vive. Tem algo pulsando em Clarice e este algo é a própria vida. Esta vida agora pulsa em mim, mas queria que não pulsasse. Queria libertar-me de Clarice e a liberdade é logo ali, no ponto final de cada parágrafo. Mas eles recomeçam, os parágrafos. Sempre recomeçam.

Pois que Clarice conhece a solidão e a dor da vida, mas não conhece o que é a beleza. É isso que me faz escrever sobre ela. Tenho ainda a esperança de ofertar a beleza à Clarice. Penso em plantar uma árvore na frente de sua casa e quando ela acordar terá uma surpresa. A beleza da vida cantando nos galhos, os pássaros. Penso em desenhar um sol forte por detrás da árvore e a janela de Clarice será um quadro e será impossível não ver a beleza, mas Clarice é cega. A dor e solidão a cegaram.

Sinto que mesmo que colocasse a beleza diante de Clarice ela não será capaz de reconhecer. O que fazer para salvá-la? Salvar Clarice é minha salvação e salvar é difícil. Trabalho árduo o de salvar personagem decaído. É que não gosto de me intrometer na vida de personagens. Da última vez que fiz isso, Clarice conheceu Cláudio e acabou chorando a dor em sua cama no final de um domingo. Eu mesmo tive que chorar minha dor, que a dor de Clarice é também minha. Tenho medo de sentir novamente a culpa por ofertá-la um caminho, que, como caminho, é caminhada. Só oferecerei agora a Clarice o que for caminho caminhado, caminho sabido, caminho certo, que ao menos terei como lidar com as dores por poder antecipá-las. Quem sabe não possa mesmo acalmar Clarice e fazer-lhe um carinho em algum momento mais pesado que já saberei por antecipação? E quem sabe no caminho Clarice não veja a beleza?


Não posso controlar o mundo que cerca Clarice, tampouco. Nisso é que moram os desacertos do caminho certo. Por mais que eu desenhe e traceje e planeje, algo se coloca no percurso de modo tão forte e intenso que é impossível que eu dê jeito apenas com as palavras. Tenho, então, que aceitar meu papel e apenas escrever. Mas não vou escrever sobre a realidade. Não vou contar os fatos, que eles me cansam. Vou apenas deixar Clarice passar por mim. E ela passa:

Escrevo sobre a noite em que Clarice viu diante de si a beleza. Clarice, que era cega, foi capaz de ver a beleza. Com os olhos viu a beleza e foi capaz de sentir a beleza. E sentindo a beleza, foi capaz de dormir com ela. E acordando, levou-a consigo para sua casa e agora caminha com ela pelas ruas da cidade e tudo o que fala é beleza. E tudo o que faz é beleza. O mundo transmutou-se em belezas várias e Clarice até deu esmola para o mendigo.

A noite em que Clarice viu a beleza e sentiu a beleza foi uma noite de vontade de chorar. Clarice sentira vontade de chorar diversas vezes aquela noite, como quando ele sentou-se diante dela e ela o olhou nos olhos. Sentiu-se tão profundamente tocada naquele momento, a chama da vela tremulando, os olhos dele no dela e as mãos dela nas dele, que sentiu vontade de chorar enquanto pensava que aquela havia sido a coisa mais bonita que já lhe haviam feito na vida. E não pensou em mais nada aquela noite que não fossem bonitezas como aquela que estava vivendo naquele exato instante.

2 comentários:

Eduardo Chacon disse...

Blanco - Octávio Paz

Me vejo no que vejo
Como entrar por meus olhos
Em um olho mais limpido

Me olha o que eu olho
É minha criação
Isto que vejo

Perceber é conceber
Águas de pensamentos
Sou a criatura
Do que vejo

Eduardo Chacon disse...

A Clarice é linda, mas o seu autor é digno de pena... Ele repete tanta vezes "coitadinha, coitadinha", mas coitadinho é mesmo ele.. Mas sua perdição é interessante como um rato visto através do vidro de um laboratório. Enquanto pensa controlar/não controlar Clarice, ele é todo descontrole e bonito de se ver/ler/examinar... Um bom experimento, principalmente na forma agonizada como tenta escapar do tempo, sem conseguir de fato, mas ainda assim distorcendo um pouco a espiral de Cronos...
Um beijo...