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sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Con-versa

As palavras hifenizadas vieram infernizar o dia de hoje. Depois do primeito post não consigo para de falar e ver hífens em cada palavra. Não consigo parar de tentar descobrir um sentido camuflado no sentido corriqueiro de algo.
 
É aquela velha história da mariposa da cidade britânica enegrecida pela fumaça das indústrias no pós-revolução (qual era o nome da cidade mesmo?). As mariposas negras sobreviveram uma vez que o tronco da árvores, também enegrecidos pela fumaça, já não serviam de "esconderijo" para as mariposas mais claras, que eram devoradas pelos pássaros e outros possíveis predadores. Penso que seja mais ou menos isso o que acontece com alguns sentidos de algumas palavras.
 
A palavra conversa, por exemplo. Conversa remete a fala entre duas pessoas. Nos dias de hoje, tantas conversas. Conversa com o estranho do metrô. Conversa com o vizinho, aquele com quem nunca falamos apesar de já termos ouvido os orgasmos mais tresloucados vindo da parede ao lado, no elevador. Conversa com o colega de trabalho numa copa casual. Conversa com o guarda parado na esquina para descobrirmos para que lado fica a Constante Ramos.
 
Desse modo, parece que o sentido de conversa como algo casual, em que palavras são atiradas, permanece. Mas e o outro sentido? (Digo "outro", no singular, porque aqui pretendo apenas falar de um dos sentidos. Se outros houver, comentem, por favor).
 
Con-versa: versar com. Vamos ao step-by-step do outro texto. Versar remete a fazer versos, correto? Con- é prefixo que indica "conjugalidade" (digamos assim, porque nenhuma palavra melhor para isso me vem em mente às 23h depois de um dia de trabalho e ônibus quebrado na beira da estrada no caminho para a cidade em que meus pais moram). Con-versa deve nos falar algo mais do que a simples troca de informações.
 
Versar com parece indicar para um processo em que algo é construído em conjunto: o verso (podemos compreender verso aqui como tema, assunto). O assunto se desenrola em conjunto e vai sendo acrescentado, modificado, comentado, à medida em que as partes vão se intercalando, vão versando conjuntamente.
 
Como já falei, depois de um dia de trabalho, de uma noite mal-dormida (esta eu ainda não havia mencionado) e de uma viagem de duas horas e meia de ônibus do Rio à Sapucaia em que o ônibus quebrou (como sempre) e em que o motorista correu como louco para recuperar o tempo perdido, cheguei na casa dos meus pais e uma das primeiras conversas (dessas do sentido casual mesmo) que tenho é com minha mãe:
 
Mãe: Seu pai está chateado comigo hoje.
Filho (comendo e fingindo que ouve): É?
Mãe (com voz de "tenha-dó"): É porque já não aguento mais o jeito dele de não me ouvir. Eu falo, falo, falo e no final ele diz "desculpa, o que você disse? (Obs.: Não tive coragem de indicar aqui que talvez fosse exatamente pelo "falo" repetido três vezes que ele não a ouça)
Filho (ainda fingindo que ouve enquanto mastiga o jantar): Entendo...
Mãe (com cara de "que bom que alguém me ouve nesta casa!"): E no Carnaval ele ainda saiu fantasiado com um chifre na cabeça e agora todos devem pensar que ele já foi traído. Me senti ultrajada.
Filho (com olhar distante imaginando o pai vestindo um chifre na cabeça. Antes de começar a falar, suprime um riso): Felizes aqueles que se divertem sem medo do que dirão depois.
Mãe (continuando a tentativa de convencer o filho de que o pai errou): Mas o que mais me chateia é que quando a gente conversa, ele não dá atenção.
 
Congela!
 
Pronto! Era nessa parte da cena que precisávamos chegar. O erro, amigos leitores, é conceitual e é claro. Vejam de novo em câmera lenta:
 
MAS O QUE MAIS ME CHATEIA É QUE QUANDO A GENTE conversa ELE NÃO DÁ ATENÇÃO.
 
Nós, que já sabemos que há a conversa e que há a con-versa, poderíamos dizer que ali havia apenas uma conversa, em que isso é plenamente aceitável.
 
Parando com o ensaio de humor sarcástico (Rodolfo, tome nota: não adianta... Você não sabe ser sarcástico), vamos ao que interessa para encerrar esse post, que já é o segundo do dia e começar um blog muito animadamente é sinal de que não vai durar muito tempo, segundo dizem por aí.
 
A questão aqui é que, na atualidade, as pessoas acabaram se anestesiando com as tais conversas. Seus ouvidos já não estão mais aptos a ouvir uma con-versa. Mais: uma con-versa não requer apenas ouvido. Ouvido meu pai tinha ofertado a minha mãe. O que faltava era atenção e retorno. Con-versa é processo de construção. Tem começo e continuação, que se dá pela intervenção do outro. E não! Intervenção não é coisa de psicólogo ou psicanalista!
 
Enquanto intervir, con-versar, contruir diálogos, for coisa de consultório, o mundo continuará sob a insígnia de espaço de solidão. Sozinho sempre somos, mas podemos ao menos falsear mais direitinho a solidão. A con-versa ajuda. A conversa é um falseamento falso e solitário demais.

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