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terça-feira, 1 de maio de 2007

Sobre a solidão e as fugas

De todos os lugares, o mais solitário pode ser uma rodoviária. Ou um ponto de ônibus. Ou ainda um aeroporto. Há muito lugar para a solidão nos encontros e reencontros. Nos desencontros. Estive na rodoviária. Havia pessoas, umas pelas outras, ali. Ninguém por mim. Dei-me conta de que sou só. E fico feliz. Consigo lidar com o fato de que sou só, não precisando de pessoas que disfarcem minha solidão.
Pego minhas malas no guardador do ônibus. Gosto do modo como o rapaz verifica cada etiqueta. Seu olhar procura pela confirmação de que sou dona daquela mala. Ao menos poderá dizer: "Ela, essa senhora, é dona daquela mala". Mas que sou? que coisa me define?
Sou Débora. Não há ninguém por mim na rodoviária. Sou aquela que olha para as pessoas e que fica feliz e que fica triste.
Li Clarice. As frases soltas. Perdidas, como que separadas umas das outras. É impossível não seguir o estilo. É como se escrevesse o que desejo falar. É como se falasse apenas. Sem compromisso. Qualquer coisa sem compromisso fica mais fácil. O compromisso é um peso que não consigo carregar. Se tivesse que comprometer-me com a escrita, certamente não escreveria.
A moça do guichê de táxis acena. "Quanto é a corrida até o Leblon?", "Ao Leblon... Com todas essas malas... R$27".
O taxista não me olha a cara. Olhar a cara é importante para o contato. Não gosto de falar com quem não me olha na cara. "Leblon?". Sim, Leblon, eu pensei. Preferi não confirmar. O que será que se passa em sua cabeça? Talvez tenha raiva de mim.
Quando chegar em casa, vou me arrepender de tê-lo deixado com raiva. Talvez ele até prolongue um pouco mais a viagem para descontar em mim aquilo que fiz a ele. Quem perderá? Ele, certamente! Perderá tempo e combustível.
Quando chegar em casa, vou pensar: alguém está com raiva de você hoje, babes. E ele pensará em mim toda a noite, a cada vez que um novo passageiro abrir a porta.
Sônia me liga no meio do caminho. Qualquer coisa sobre como seu marido não lhe ouve. Melhor não lhe alertar sobre como ninguém ouve hoje em dia. A rodoviária é só um falseamento. As filas de banco também e toda aquela conversa sobre "como demoram a atender nessa agência".
Queria falar sobre mim. Mas tenho dificuldades. Falar do mundo é como falar sobre si? será? Penso que eu seja uma mulher com dificuldades de falar sobre si mesma. Mas então como seria falar sobre outra pessoa?
Sônia continua ao telefone. Também não a ouço. Mas digo "sim", "claro" e algumas interjeições no meio do percurso. Já estamos na Lapa. O caminho que ele pegou não é o mais curto. Poderia ter ido pelo Rebouças. Não gosto de túneis, de qualquer modo. Menos ainda gosto de pessoas falando no meu ouvido sem que me olhem na cara: "Não, Sônia, não estou te dando atenção!" e ela desligou.
O retrovisor. E ainda estamos passando pelo Aterro. Tenho bastante tempo.
- Está calor nessa cidade...
- Sim -respondeu-me contrariado. Fato: ficou com raiva.
- O senhor trabalha a noite toda?
- Depende, madama. A senhora mudou de idéia? Quer ir pra outro lugar?
- Não se trata disso, bobinho - e aproximo-me. Nenhum anel em seus dedos.
- Bem, tem dias em que paro mais cedo. Hoje é um dia bom. Acho que fico até o sol raiar sem problemas. É que não gosto de comprimidos, sabe?
- Entendo. Eu também não me dou com remédios...
Silêncio. Momentos assim me incomodam. Ok, rapaz, continue a conversa.
- A senhora está chegando hoje de viagem?
- Sim. Poucos dias fora da cidade.
- Isso é sempre bom, né? A madama chegou aonde?
- Nada demais. Fui apenas encontrar com o marido de uma amiga, essa que acabou de me ligar.
- Entendo...
Como podem ser bobos os homens! Imagina que não percebi seus pensamentos.
- Mas já não é bom com ele. Preciso de mais... Sinto-me só.
Obviamente o rapaz entendeu. Cláudio. Gente finíssima. Conversamos all the way até meu prédio.
- Você pode me ajudar com as malas?
- Claro, madama.
Nesta noite, não importam rodoviárias, aeroportos ou pontos de ônibus para mim. Não mais.

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