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quinta-feira, 31 de maio de 2007

A Carta ou Sobre os Mecanismos de Libertação

Conto antigo. Tem no mínimo 9 meses que escrevi aqui na empresa mesmo. Mas quase não divulguei então... aí vai.

A Carta ou Sobre os Mecanismos da Libertação

Seus dedos tocavam as teclas rápida e rispidamente. As teclas não mereceriam carinho. Mais que isso: a mensagem deveria ser desprovida de carinho e isso a começar pelas letras. Certamente pensas agora, como eu mesmo pensei, que as letras em uma máquina de escrever nada tem a ver com as letras rabiscadas em um papel. Enquanto estas podem ser leves, doces, meigas ou fortes, biliáticas, enraivecidas, aquelas podem apenas ser de acordo com a marca da máquina comprada.
Ainda assim, batia nas teclas como que com asco. E com força. E com rispidez. Era como se seus dedos clamassem por não tocar aquele lugar e, ao mesmo tempo, tocassem-no brutamente. Era esse o tom que a carta deveria ter exalando de si. O tom das palavras poderia ser ainda pior, mas o tom do impacto das letras aos olhos de quem vê deveria transmitir essa atmosfera hostil de Não, você logicamente não é amado deste lado de cá, do lado de quem lhe escreve.
O texto formava-se em sua mente e conforme ia espremendo as pequenas teclas pretas contra o fundo do teclado em sua frente, o sentimento de que fazia a coisa certa lhe invadia. Era disso mesmo que precisava: palavras. Há vezes em que estas ferem mais que um bofetão, pensou. Palavras cortam e dilaceram por dentro. Por isso escrevia e não ia pessoalmente dar o tapa derradeiro.
O que escrevia? O que colocava naquele papel em que as letras deveriam exalar o sentimento que sentia ao imprimi-las ali?
Seus olhos vidrados sobre a máquina. Suor escorrendo pela face. As mãos ávidas caçando pelo teclado as letras de que precisava. O nariz sorvendo todo o ar que conseguia para que conseguisse seguir o mesmo ritmo que o coração acelerado infligia em todo o corpo. Tum tum. Batia o coração. Tum tum. Os pêlos eriçaram-se ao término de mais uma linha. Tum tum. As pupilas dilataram-se com o fechar-se repentino da cortina: era o vento agitando-a e tranzendo-a mais para perto da janela, deixando que pouco sol entrasse. Tum tum. As costas envergadas, dando ao seu corpo um estranho formato. Tum tum. A adrenalina liberada em boa quantidade no sangue. Tum tum. Os hormônios sexuais intumesciam seu órgão de tanto prazer que sentia em escrever aquelas palavras de ódio. Tum tum. Tum tum. Tum tum. Silêncio se não fosse por essas batidas aceleradamente ritmadas em seu peito. Acabara sua obra. Acabara de colocar para fora tudo aquilo que sentia e que aguardava por ser exprimido.
Abriu a gaveta da escrivaninha. Retirou dali um envelope. De supetão, arrancou a carta do rolo em que estava enrolada na máquina de escrever e, dobrando-a, enfiou-a no envelope e lacrou-o a saliva quase ausente de sua boca, pois ficava sem saliva sempre que nervoso.
Ainda com a boca sedenta, saiu de casa. Andava às pressas pela rua. Faltavam alguns minutos para que os Correios fechassem. Precisava apertar os passos.
A agência já se avistava à distância. O funcionário à porta, à espreita de um provável último cliente. O tempo abafado e úmido fazia com que o tempo de espera, porém, se reduzisse. Ele já pegava o puxador para abaixar as portas, quando entrou nosso personagem esbaforido porta adentro e dirigiu-se ao balcão.
O rapaz da porta retornou à cadeira em que deveria estar. Pois não, senhor, posso lhe ajudar, perguntou, Uma caneta, respondeu o cliente arrogantemente. Rabiscou o endereço de entrega no envelope em letras sem prumo. Pagou os centavos cobrados. Saiu do estabelecimento com a certeza de ter sua vingança garantida.
Dormiu aquela noite sem paz. O que aconteceria quando recebessem a carta? O que fariam?
No dia seguinte, levantou-se empolgado. O grande dia havia chegado. Foi à padaria da esquina e Dois pães franceses, por favor. Aproveitou e pegou um punhado de balas de hortelã no caixa para depois do café.
Passou o café. Tomou-o sem nem sequer gosto sentir. Engoliu os pães. Foi sentar-se à janela.
Às onze e vinte e três da manhã olhou o relógio de pêndulo na parede branca, em cima do sofá de couro preto e surrado. Olhou para a calçada e lá vinha sua redenção. Em uma bolsa azul ela vinha, carregada pelo homem de amarelo.
Carta para o Senhor E. E. D., Pois não, aqui estou.
Voltou para a cozinha. Abriu o envelope. Retirou a carta que ainda ontem escrevera. Abriu-a por sobre a mesa. Pegou a faca com que cortara o pão e cravara-a duas vezes na altura do estômago e ainda uma na altura do peito antes que se deixasse cair ao chão e agonizasse pelos próximos cinco minutos.
Na carta, por sobre a mesa, aberta como que para a vissem tão logo ali entrassem: “Já não posso ficar a seu lado... Já não queria mais ter você comigo.. (...) Estou com outro. Passo bem. As crianças também estão em bom estado. (...) Te amo, mas já não poderia viver ao seu lado. Acho que você é capaz de entender-me. (...)”
O sorriso em seu rosto denunciava: morreu. Morrera. Falecera sem culpa. A culpada? Ela.

Um comentário:

Anônimo disse...
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