Google

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Sobre pessoas e pessoas

As coisas são várias. É como dizem: há filmes e filmes. Eu assistiria a trilogia do Iñarritu novamente, mas não veria a trilogia das cores do Kieslowski. Mas eu veria "Inferno", legado deste último, que até do mesmo idealizador há filmes e filmes.


Assim como vejo "The Wall", do Alan Parker, a cada vez que me convidem, mas evito ver "Evita" e nem tenho nada contra a Madonna.


Há músicas e músicas. Músicos e músicos. Pintores e pintores. Livros e livros, bem como autores e autores. Sendo assim, certo é que há pessoas e pessoas e todo o texto até aqui parece clichê.





Era uma vez uma terra muito, mas muito distante mesmo, em um lugar em que nem se imaginava possível ainda haver vida. Lá, nesse lugar, havia vida. Havia essa pequena família de agricultores. Conheciam tudo muito bem. As estações do ano; as horas de acordo com a posição do sol; o ciclo de migrações dos pássaros canoros; a data exata da queda das folhas da Gertrudes, a mangueira do jardim; o momento exato em que o filho mais novo da família se apaixonava pela chuva a cada vez que a via cair do céu com aqueles olhos reluzentes e com o nariz fungando o cheiro de terra molhada; a hora em que o avô ia falar à mesa, que era a hora de todos calarem-se; o momento em que o pato assado de domingo estava pronto, que era o mesmo tempo em que a gata Dinorá saltava do alto do galinheiro, onde vigiava atentamente o movimento das galináceas, e ia dar miando debaixo da cadeira do pai. Sabiam quando Dora menstruava, que a menina, muito faceira, trazia sempre nessas datas um olhar trigueiro e culposo no rosto, como se houvesse cometido o crime mais delicioso que fosse possível a uma mulher. E sabiam o que era possível a uma mulher: cozinhar, limpar a casa, lavar a roupa e as louças, enfim, tudo que dissesse respeito ao cuidado familiar, tudo aquilo que fazia-as ter orgulho de serem mulheres e poderem, como que por graça divina, cuidar daqueles que chamavam, ao cair da tarde, de "meu homem".


Sabiam da vida. Como viram os dali partir. Sebastião, a esposa e os cinco filhos; Quinzinho da venda e sua bicicleta Nara; D. Maria das Dores, já idosa, levada para o asilo pela filha mais velha que morava na cidade grande desde bem mocinha; Ângela e suas meninas do "centro de lazer"; Sêo Geraldo, os filhos, netos, bisnetos e noras... Todos idos para a cidade grande. É que lá poderiam ver o mundo. Não só ver, mas experimentar aquilo de que só ouviam falar no rádio.


Os pássaros canoros foram e voltaram e as folhas de Gertrudes, já amareladas, caíam pelo terreiro. Ginho filho, o menino - já moço - que anos passados se emocionava com a chuva, limpava o quintal com o ancinho todo final de tarde.


- Já falei pra painho que um dia me vou embora - resmungava ele, mas sentia-se culpado só de pensar em deixar os pais ali, esquecidos naquela terra.


Nesse tempo, já não se sabia muita coisa por ali. O avô falecera e não havia o silêncio sepulcral na hora das refeições. A gata Dinorá, já velha, nem queria saber de vigiar as galinhas ou de miar debaixo da cadeira do pai que, idoso, urinava pelos cantos da parede por ter desaprendido a utilizar o urinol. O pato assado nem era suculento que a mãe errava no tempero, as vistas cansadas tentando medir o sal e o alho. E a menina... Mãe de dois, casada com Elvécio, ida para a cidade aos 16. Nem ao menos a natureza se conhecia que a Gertrudes já dava mangas fora de época e o sol nem parecia seguir o mesmo ritmo, delongando-se por minutos a mais no horizonte a cada dia. Os pássaros, até mesmo eles, escassearam por ali e agora formavam nada mais que uma pequena revoada.


Ginho filho, anos depois, conseguira nos Correios da cidade vizinha, telegrafar uma carta para Dora, que veio com o marido e as crianças no Fusca buscá-lo para a cidade grande. Iria tentar a vida ali. "Ao menos, experimentá-la", pensava crendo ser o único a ter esta grande idéia. Disse ele:


"Irmã pt Todos partiram pt Estou so na casa pt Papai mandou dizer que te ama antes de partir pt Mamãe também pt Não escrevi antes que o correio é caro pt Enterrei no cemitério atrás da casa junto de vovô pe Quero ao menos experimentar a vida na cidade pt Sds"


Os filhos de Dora já eram crescidos. Joana e Ginho neto. E Ginho filho já se adaptara ao novo ritmo. Cidade grande, muito movimento. Assustava-se às vezes, logo no começo, com tanto corre-corre. Mais susto ainda tomava quando olhava para o céu em noites escuras, noites de "sem-lua", e não via as estrelas, apenas o clarão das luzes avermelhadas refletidas nas esparsas nuvens. Mais ainda, porém, surpreendia-se com como a chuva perdera o sentido: não molhava a terra e o cheiro de poeira, que era o que mais lhe tocava quando novo, tornara-se o cheiro vaporoso do asfalto da rua no final do dia.


Por insistência da irmã, entrara na escola já tardiamente. "Vai ser bom pra você arrumar emprego, Ginho", dizia ela. Em sua sala, conheceu Zefa, com quem criou profundos laços de amizade. Ginho filho e Zefa tornaram-se amigos inseparáveis, o que era incompreensível, posto que já tinham mais idade e poderiam bem casar-se. Mas não era desse amor que sentiam um pelo outro. Ginho filho chegou a dizer à mulher em uma ocasião: "é como se você fosse minha família sem sê-la de fato. Minha família de cidade grande!".


E entrou para a família "não-de-fato" de Zefa, que apresentou-lhe a vida desconhecida por ele. Os bares da cidade. Os recantos. As estações de trem. As escadarias customizadas dos bairros boêmios. As grandes salas de projeção com sons tridimensionais e os filmes antigos com imagens surrealistas que o deixavam maravilhado: "Quando eu era mais novo e via o sol se pôr, eu via essas cenas na minha cabeça tirando um cochilo encostado em Gertrudes no terreiro. Ficava lá até mainha me mandar entrar que o jantar estava posto", dizia ele.


Zefa, já sem saber a que apresentar a Ginho filho, teve a esplêndida idéia de apresentá-lo ao resto da família "não-de-fato" que tinha. Zefa nunca fora afeita à famílias "de-fato".


Nesse dia, combinaram de encontrar-se numa das ruas do Centro, que ela lhe apresentaria outro grande irmão "não-de-fato" e ele estava lá, na hora marcada, a espera do desconhecido. Suas mãos e seu rosto suavam e a cada vez que tentava limpar o suor da testa dava-se conta de que só se lambuzava mais com a água salgada de nervosismo e ansiedade que lhe saía pelos poros.
- Ginho, esse é Tenti, meu amigo - disse ela.
- Sim, Tenti. Prazer - e estendeu a mão que, apesar de já haver tempo que não trabalhava no roçado, ainda era bastante calejada. Onde vamos? Que tal ao "fassfudi"?
- Fast-food - corrigiu o rapaz em inglês impecável.
E partiram os três para a lanchonete mais próxima, onde Ginho pedira um sanduíche duplo com refrigerante grande e batatas pequenas. Já não era novidade para ele aquele tipo de comida, mas por ter passado boa parte de sua vida sem experimentar qualquer daquelas coisas, achava tudo maravilhoso. O tempero incomparável ao sal com alho de sua falecida mãe. Sem falar na agilidade! Sentia-se como que senhor de cada um daqueles atendentes a quem pedia em pensamentos: "Tragam logo meu sanduíche senão reclamo de vocês" ao mesmo tempo em que pedia humildemente: "Boa tarde, senhorita, poderia me dar um sanduíche duplo com refrigerante grande e batatas pequenas, se isso não lhe for muito incômodo?".
Ao ver esse pedido, Tenti riu-se e, percebendo o olhar furioso de Zefa, afastou-se, sentando em uma das mesas para contemplar de lá o show de estranheza que desfilava diante de seus olhos. Como poderia haver no mundo quem fizesse um pedido como aquele rapaz fazia?!
- E de onde se conheceram? Em algum show de peão? - perguntou Tenti ironicamente.
- Não, no supletivo - respondeu Zefa, sem perceber o tom do irmão "não-da-fato".
- É, minha irmã insistiu para que eu estudasse. Dei a sorte de conhecer uma pessoa tão boa quanto Zefa na escola. Quando eu era criança e ouvia no rádio de pilha de meu avô sobre livros e estudos, pensava como eram essas coisas - falou Ginho filho.
- Como assim?! Você não conhecia livros?! Pois deve estar brincando! Todo o mundo conhece livros! De onde você tirou esse cara, Zefa?
- Então, ele vem desse lugar muito, mas muito longe onde hoje acho que nem tem vida, certo? - direcionou ela a pergunta para Ginho.
- Sim... Bem, Gertrudes deve ter morrido já que estava velha e Dinora... Não acho que tenha tido filhotes.
- Gertrudes? É o que? A galinha de estimação da família? - disse Tenti em tom de deboche.
- Não! A árvore! - respondeu Zefa encabulada, já percebendo o tom subjacente nas falas de Tenti.
- Sim - confirmou humildemente Ginho, começando a notar que a conversa não parecia estar seguindo muito bem. Não sentia-se bem com aquele irmão "não-de-fato" que Zefa lhe apresentara. Não mais.
Ginho filho naquele dia compreendera o que seu avô disse uma vez na mesa, quando todos calavam-se: "Meus queridos, na vida há aqueles que conhecem o que é viver e aqueles que só leram sobre".

Nenhum comentário: