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quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Na farmácia

- Boa tarde!
- Boa tarde - respondeu o atendente. Posso ajudar?
- Sim... É que eu tô com dor....
O atendente já estava acostumado com estas coisas: trabalhar numa farmácia era quase como ser médico. Havia um tipo bem específico de clientes que chegava apenas falando seus sintomas a espera da indicação de um remédio milagroso para seus problemas.
- Você tem alguma receita médica?
- Não... Não fui ao médico ainda... Queria ver se o senhor pode me ajudar...
- Hum, fica difícil assim... Existem vários remédios para dor e...
- E cada remédio é para um tipo de dor específica?
- Você conhece de remédios?
- Não, mas o senhor deve conhecer, sempre trabalha com eles... De mais a mais, é mais velho...
- Quantos anos você tem, menino?
- 10. Mas faço 11 em pouco mais de um mês.
- Sim... E que dor sente?
- Ah, é uma dor assim: às vezes eu tô em casa com minha família toda. Fico na sala vendo tevê de manhã. Minha aula é só na parte da tarde. Aì sai minha mãe para o trabalho, sai meu pai para a empresa, sai vovó para a caminhada com as amigas, saem meus dois irmãos, porque a faculdade é cedo... Aí fico eu... E aí chega a dor.
- E onde é que você sente a dor?
- Hum, não tem bem lugar não. Eu falei com mamãe uma vez e ela disse que era uma dor "onipresente" e riu...
- Entendo. Sua mãe, eu acho, quis dizer que sua dor está em você todo...
- É, foi isso que eu disse pra ela. Que não tem lugar, que é uma dor assim bem completa. Parece que está no meu corpo todo e, se tento chegar nela com o meu pensamento, se tento me concentrar nela e descobrir onde ela está, ela some de onde está.
- Sei. Menino, isso é frescura, não é dor, não.
- O senhor sabe? O senhor sente também?
- Não, mas isso é bobeira. Agora deixa eu atender as outras pessoas... A senhora... Posso lhe ajudar? - disse o atendente olhando para uma senhora que acabara de entrar e olhava o stand de shampoos em promoção.
O menino, não satisfeito, seguiu o atendente com o olhar e, com um breve aceno de mão, chamou a atenção dele novamente.
- Ei! O senhor me desculpa... Mas o senhor ainda não me ajudou.
- Menino, tenho mais o que fazer. Sua dor é frescura. Violta pra casa que ela passa.
- O senhor já sentiu minha dor?
- Talvez já. Quando eu era criança eu tinha muita frescura também. Mas com a vida aprendi que não posso me dar a esses luxos.
- E doía?
- E frescura dói?
- Então a minha dor não é frescura... Porque se não doesse, eu não ia dizer que tenho dor, não é?
- Hum... Sim. Mas então, onde dói?
O menino ergueu os dois braços:
- Dói aqui - pousando a mão na cabeça -, mas dói mais aqui - e a outra mão foi para o peito.
- E pára, essa dor?
- Pára. Quando vou pra escola, passa. E à noite, em casa, também não sinto nada. Só dói de manhã...
- Menino, você tem amigos?
- Amigos?! Claro! Tem o Pedro, a gente joga futebol na rua de casa. Tem o Jonnatan, a gente brinca de carrinho no recreio. Tem a Clara... E o Carlos, e a Ana...
- Ok, ok... Você tem amigos. Mas, então, não entendo...
- O que o senhor não entende?
- É que eu pensei que você sofresse de uma coisa, mas já não sei...
- O senhor acha que sabe da dor que sinto?
- Já se sentiu sozinho?
- Hum, sozinho... Acho que já... Mas se sentir sozinho dói?
- Dói... Veja bem, se tem gente em casa, você não sente nada... Se não tem, você sente. E a dor é bem assim, pelo corpo todo, mas sem ser em lugar nenhum...
- Sim.
- E você tem amigos... E quando está com eles, dói?
- Não, não dói.
- Viu?
- Então, moço, o senhor me dá dois comprimidos para a solidão?

Um comentário:

leafar disse...

Pra bom entendedor, meia palavra basta...