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terça-feira, 15 de janeiro de 2008

O encontro de Rebeca - parte 1

Amigos,
Ontem comecei um novo conto. Ele parece ser demorado. Quando tento continuá-lo, acabo tendo mais idéias e a história se prolonga. Mas não quero correr o risco de pará-la, ainda mais porque tem me sido muito cara. É a história de Rebeca e seu encontro. Assim, para ajudarem-me com idéias e opiniões e para que eu me comprometa a terminar o conto, posto aqui o que já tenho escrito.
Espero que gostem.
O Encontro de Rebeca
A solidão dele fez companhia à solidão dela e quando as duas solidões se encontraram foi tão engrandecedor que mesmo a noite ganhou nova cor e novo cheiro. É que duas solidões, quando se encontram, reconhecem-se uma na outra e o que daí pode nascer é incognoscível, mas sempre belo. Seja a amargura ou o carinho, é sempre belo quando dois corações solitários se esbarram numa noite bolorenta e decidem ficar juntos, um ao lado do outro, até que o dia amanheça e a solidão de cada um possa novamente ser travestida em tons mais alegres que o pálido azul. Pois que a solidão é azul, disso não tenho dúvidas.
A rua estava escura naquele momento. Poucos eram os que se atreviam a desafiar o vento frio e cortante. Cortar o vento cortante: eis o verdadeiro heroísmo desta noite. A umidade do inverno na vila era bastante típica. O mar, sempre ruidoso, lançava suas águas pelo ar ao jogar-se robusto contra as rochas e, quer seja por vontade própria das gotas (que é no que creio) ou por motivos menos líricos e mais sérios como a evaporação, este mar transformado umedecia cada ruela, cada beco escuro, cada parede de cada casa.
A luz, dependurada naquele poste bossal e esguio, já estava cansada do esforço. Por mais que tentasse, seria impossível iluminar aquelas mentes oblíquas e enegrecidas. E lutar contra o frio era tarefa árdua inclusive para ela. Em breve, desistiria do labor e arrebentaria-se num lindo clarão avermelhado e a escuridão seria, então, total, até que os homens da administração pública fossem avisados por algum transeunte e colocassem nova lâmpada no lugar, para o mesmo trabalho ingrato.
Ser luz era esforçar-se por iluminar as mentes obscuras dos transeuntes heróicos, dos ousados cortadores do vento enregelante. Apenas mentes oblíquas como estas ousariam sair de casa, onde poderiam esconder-se da umidade do mar. As casas da vila eram bem preparadas para fazer com que a umidade parasse na porta de entrada e na parede da frente. Por mais que batesse, por mais que insistisse,a umidade quedava-se do lado de fora e o interior de cada casa era sempre quente e seco, o ar agradável ao barulho crepitante da lenha na lareira e do borbulhar da sopa na caldeira dependurada. A sopa requentada de ontem, e anteontem, e do dia anterior a todos os dias.
Mas nessa vila escura, de heróis obtusos nas ruas e lâmpadas cansadas de iluminar, nesse lugarejo próximo ao mar rumorejante e em que a umidade era barrada em todas as casas, havia uma única casa em que a umidade fora permitida fazer morada em uma única noite azulada. Depois desse dia, o mar parou de chocar-se contra as rochas, as luzes iluminaram mesmo o dia e as mentes, todas elas, tornaram-se capazes de enxergar e enxergaram. Foi assim o dia em que as solidões se acharam e dormiram abraçadas.
Curvada sobre o próprio corpo, D. Argêntea remexia o caldo groso da sopa na lareira quando ouviu o ruído pela primeira vez. Era um som estranho, como nunca nenhum som havia sido na vila. Era apenas um ruído, mas invadiu-lhe os poros, e o sangue, e as células, e tomou-a de tal modo que deixou cair no chão seu corpo velho e cansado e gargalhou até o amanhecer. Mesmo velho e cansado, o corpo da D. Argêntea, caído no chão não sentiu dores, não fraturou-se. A bem da verdade, remoçou um quarto de século em virtude do tombo que sacudiu-lhe as poeiras.
Sr. Crisântemo já estava dormindo na cama de viúvo. Sonhava novamente com a falecida esposa, D. Perpétua, tão querida. Não foi capaz de ouvir nenhum dos ruídos, mas acordou no dia seguinte sem compreender como o sonho triste, fúnebre e recorrente, através do qual revia todas as noites os últimos momentos ao lado do corpo gelado e endurecido de Perpétua, tornou-se um sonho dionisíaco em que ambos partiam para Galápagos para uma nova lua de mel. Mais espantoso ainda foi notar que seu corpo, já há muito descansado, voltara a dar sinais da antiga virilidade e acordara com a genitália intumescida pelo sonho envolvente e molhado.
Foi entre a casa de Sr. Crisântemo e D. Argêntea que a solidão de Rebeca e do homem se encontraram e dormiram abraçadas e fizeram um ruído que mudou o pequeno mundo da vila. Ao acordar, cada habitante, criança ou idoso, tinha sua história de uma noite inesquecível para contar. Era tão inesquecível a noite que o corpo de Rebeca, desfalecido no chão, só seria encontrado três meses depois, ainda intacto e sem qualquer sinais de putrefação, tendo sido levado para a igrejinha local e velado por sete dias e sete noites, quando foi enterrado com toda a pompa que uma santa merece. Mesmo sem saber o que havia acontecido ao certo, mesmo havendo olvidado o corpo da jovem Rebeca por tanto tempo, as mentes oblíquas dos habitantes agora enxergavam e eles sabiam que tudo o que se sucedera devia-se a algo que aquela jovem havia feito numa noite fria e bolorenta, há três meses atrás.
O corpo do homem nunca fora encontrado. Não que tenha sido também ignorado por meses e sim porque não se tratava de homem. Se bem que, qualquer que o visse diria tratar-se de um rapaz bastante bem apessoado e muito distinto. Rebeca, se viva, diria exatamente estas palavras: "Era ele tudo por que sempre esperei", sem saber que ele nunca esperara por ela e que, se se encontraram aquela noite, não foi por nada mais que o acaso.
A umidade do mar nunca havia se dado a esses luxos de buscar entreter-se com os homens. Mas isso num tempo em que os homens preocupavam-se em agasalhar-se devidamente temerosos de que ela, a umidade, pudesse fazer-lhes algum mal. Assim, era notada, sentia-se presente. No seu contato com os homens, tinha o seu ser de umidade reafirmado a cada novo encontro. Até o dia em que o sol amareleceu e as mentes se enegreceram e os homens da vila começaram a fazer-se heróis da noite e ousavam sair à rua já bem tarde, cortando o vento. A partir desse dia, a umidade começou a não passar de parte de todo aquele cenário, acostumados que estavam os homens a ela.
Rebeca era moça frágil. No dia em que lhe descera pela primeira vez o sangue, sua mãe lhe dissera que não deveria sequer pensar em engravidar de homem. E se quiser ter filhos, pensou Rebeca. Se tiver que engravidar, que seja do espírito santo, respondeu a mãe antes mesmo que a jovem fosse capaz de lhe fazer a pergunta. O corpo esguio, a pele alva. As veias podiam ser notadas em cada canto do corpo. Seu corpo, de onde eu sempre o via, me parecia a solidão, um azul pálido. Este azul conheceu todos os males de pele que a vila já travara conhecimento: acne, angiomas, brotoeja, sarampo, rubéola, catapora, dermatite e até mesmo um pequeno carcinoma que, como todas as outras doenças, desaparecera sem deixar rastro.
Do mesmo modo, sofrera de males do coração, do fígado, pulmão, pâncreas, rins, pernas, braços, cabeça, estômago e de qualquer outra parte do corpo a que um mal possa acometer. Curou-se sempre com a ajuda das ervas de D. Neguinha, a benzedeira da vila, e com as orações de sua mãe, falecida quatro anos antes deste dia memorável em que o mundo da vila mudou.
A constituição frágil de Rebeca fora também a culpada pela paixão fulminante por que se vira tomada quando viu Pedro Villasboas pela primeira vez, sem saber que nunca, nem sequer um só dia de sua vida, seria notada pelo rapaz. Nem por ele, nem por qualquer outro, a despeito de seus contornos suaves, seus seios já em crescimento, dos olhos verde-água, dos cabelos castanhos escorrendo-lhe pelos ombros e pelas costas como água de cachoeira. Sobre Rebeca, pendia a solidão como sina única. Não fora notada pelo jovem Villasboas nem quando, menos por descuido do que por vontade própria, deixou-o ver aquilo que tinha de mais precioso, sua mãe lhe dissera: as coxas bem arrematadas de mulher.
Passou por toda a adolescência à espera de seu príncipe encantado, que poderia bem ser Pedro ou qualquer outro. O príncipe esperado lhe chegou às avessas em seu aniversário de quinze anos: num cavalo negro, vestindo branco e trazendo-lhe uma má notícia. Era Dr. Parmênides, o médico da vila. Viera visitá-la, como de costume, em virtude da já sabida fragilidade da moça, e por fim disse-lhe: "Pequenita, me perdoe! Não sou dado a esconder os males dos bons. Conheces bem alguns males. Já os tivera bastante. Mas este de que vou te falar é novo para ti e requer cuidado...". E foi assim que soube que teria que passar o resto dos dias trancada em casa, com todas as janelas e portas bem fechadas, podendo expor-se apenas ao sol do meio dia e por não mais que meia hora, três vezes por semana. A desobediência da regra tinha uma punição bem certeira, clara e súbita: a morte.
Dr. Parmênides nunca mais retornaria àquela casa. A dor da notícia que tivera que dar a uma jovem tão bela e tão encantadora fizera-o definhar com o passar dos dias. Quinze dias depois, Rebeca ouviria da mãe as circunstâncias da morte do doutor e sair de casa vestida de preto para o velório. Nem sequer pensara neste momento que, por ser o médico o único morador do vilarejo que as visitava, não receberia nunca mais visita alguma, até o dia da noite azulada e úmida.
Desde o dia em que fora noticiada a doença de Rebeca, nenhum habitante da vila pode encantar-se com a beleza da menina e a nenhum rapazote fora dada a benção de poder apaixonar-se por ela. Trancada em sua casa, ela passava os dias a ouvir as história lá de fora trazidas pela mãe todos os dias após sua ida ao mercado de peixes e a arrumar casta e lentamente cada canto da casa, esfregando-o, polindo-o, perfumando-o, ainda com esperanças de que, um dia, seu salvador chegaria, bateria à porta da frente e a levaria de súbito, do mesmo modo como à morte ela estava prometida.
O tempo passou e Rebeca fez-se mulher. Aos vinte e cinco anos, ainda saía ao meio-dia, três vezes por semana pela porta da frente, o coração acelerado ao cruzar a soleira, com a expectativa de vislumbrar alguém, quem quer que fosse - homem, mulher ou criança. Mas o que Sr. Parmênides esquecera de falar a menina - ela mesma esquecera de lembrar-se dos costumes locais quando recebeu o peso de diagnóstico - foi que ao meio-dia não havia viv’alma na rua. As mentes obtusas dos habitantes da vila lembravam-nos todos que pontualmente às onze e trinta da manhã, quando o sol não estava a pino mas as sombras já eram minguantes, deveriam entrar para suas casas para refestelarem-se com o banquete que lhes era oferecido: o arroz, a alface e os peixes. E, tendo fartado-se, suas mentes lembravam-lhes ainda que era necessário dormir por alguns instantes, de tal modo que só às duas e quinze da tarde começava a haver novo movimento pelas vielas. Portanto, as idas ansiosas de Rebeca ao sol do meio-dia lhe eram nada mais que uma ânsia de felicidade, frustrada a cada nova tentativa.
Não demorou para que a mãe falecesse. A loucura era muito comum na vila. O mar em sua robustez contra as rochas, acreditava-se, era capaz de endoidecer qualquer ser vivente. Ao completar sessenta e cinco anos, Florinda Palhares quis sentir a robustez do mar em seu corpo e lançou-se do penhasco da região nordeste do vilarejo, aquele de onde podia-se avistar o farol. Imaginava que a luz intermitente do farol iluminaria sua queda gloriosa e a elevaria aos céus tão logo seu corpo senil sentisse a onda batendo contra si ao invés de contra as rochas. O farol não foi, porém, mais do que testemunha da loucura de Florinda, cujo corpo nunca fora encontrado.
Imagina-se a dor de Rebeca ao não conseguir controlar a mãe, que não era de sair à noite. Por mais que tivesse tentado, Florinda insistiu que queria apenas sentir a brisa úmida do mar para sentir-se renovando as energias para mais um ano de idas ao mercado e de notícias contadas à filha. E partiu para não mais voltar, deixando a filha numa espera sem fim.
Os habitantes do vilarejo notaram a ausência de Florinda, mas nunca passaram para perguntar o que havia. Os Palhares nunca foram de muitas amizades. Ao menos, por ser matéria desconhecida de Rebeca, não poderei dizer que a moça se arrependia de não ter amigos. Apesar da ânsia de ver gente, não sabia o que era a amizade.
Mais algum tempo se passou e suas noites e seus dias, e suas saídas breves à rua três vezes por semana, tornaram-se em uma dupla espera frustrada: a de ver quem quer que fosse e a de ver o corpo pequeno e fraco da mãe apontando em algum lugar que os olhos fossem capazes de alcançar.
Foi num dia de sol forte que Rebeca tomara uma decisão que mudaria sua vida medíocre. O esperado meio-dia chegara e, ao abrir a porta, sua vista embaçou-se com tanta claridade. Nenhuma nuvem havia no céu, nenhum pássaro também. O vapor subia das pedras que calçavam a ruela em que ficava o casebre da família Palhares, outrora uma das casas mais visadas do povoado por suas linhas arrojadas e pelas janelas cor de abóbora, desde já uma cor chamativa. Mal sabiam tais janelas que quedariam-se fechadas por bastantes anos, sendo abertas quatorze anos depois de terem sido cerradas em virtude do velório de Santa Rebeca. A partir desse dia, era-se possível ouvir o lamurio das dobradiças por terem que suportar o peso das abas de madeira colorida de laranja: as janelas nunca mais foram fechadas naquela casa findo o velório e iniciado um novo ciclo de glórias para a antiga residência dos Palhares, rebatizada pelos moradores transformados pelo acontecimento da noite azulada de “O Santuário da Solidão”.
Nesse dia de sol forte, Rebeca deixou seu coração extasiar-se com o que via. A claridade era tanta que invadiu-lhe o corpo e a cabeça e adentrou-lhe o ser de supetão. Sentiu-se viva! Viva como há muito não se sentia! Pela primeira vez em doze anos, pois agora ela já contava seus vinte e sete, sentiu a vida pulsar em seu pulso e quase esqueceu-se do que Dr. Parmênides lhe dissera há tempos: queria sair pelas ruas, queria falar com as gentes escondidas nas casas para a ciesta, queria correr pelos campos ao sul e ver o mar ao norte. O grande mar! Há tanto tempo não o via! Queria mergulhar o corpo jovem e enclausurado naquelas águas salgadas e geladas que, sabia ela, enregelavam as ruas da cidade com sua umidade sumarenta todas as noites. E queria poder sentir as noites, ver as noites, ela cuja vida era já uma noite só.
Súbito, ergueu a barra da saia com as duas mãos, uma de cada lado da cintura, recuou alguns passos e deixou o coração selvagem cruzar a soleira da porta. Nesse exato instante, o céu se fechou em nuvens e grossas gotas começaram a cair por sobre os cabelos de Rebeca. Não compreendendo o que se passara, ela olhava para o céu com ar inquisidor. De onde vieram as nuvens? De onde veio a chuva? Era o céu que se fechava para ela. Era o sol que, como todos, não queria vê-la. Foi neste dia de sol e chuva repetina, de um frustrada ânsia por felicidade abandonada e rapidamente readquirida, que tomou uma decisão: mesmo podendo sair a cada três dias por meia hora, mesmo sendo permitido a ela ver o sol e o mundo por alguns instantes, ficaria em casa para sempre. Foi neste dia em que Rebeca encontrou e aceitou - de uma só vez - a solidão como seu único destino.

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