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quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

A Descoberta de Ricardo

Saber o que se quer lhe era tão necessário quanto inútil. De nunca lhe adiantaria saber o que queria caso continuasse a lhe faltar a quantidade exata de amor-próprio para levar o desejo adiante, pois mesmo quando descobria suas reais vontades, calava-se e aceitava sujeitar-se ao desejo do outro.

Fora um encontro casual. Algumas linhas trocadas, alguns telefonemas, o almoço cancelado numa tarde de domingo e, então, o encontro em frente ao cinema de um dos shoppings da cidade.

Pela foto as pessoas são sempre diferentes, pensou ele. Não que estivesse desapontado, mas, sim, pelas fotos as pessoas eram mesmo diferentes. O outro, por exemplo, parecia mais alto, maior, pele lisa e perfeita. No entanto, não era tão alto, nem tão grande e tinha uma cicatriz do lado esquerdo do rosto, na parte mais baixa da bochecha.

Isso não o incomodara. Incomodara, contudo, a frase "Pois bem, agora já nos conhecemos. Fique à vontade para fazer o que quiser" dita pelo outro logo no começo da conversa. Então era só isso?, ele pensava, então todas as linhas trocadas, todos os telefonemas e o almoço cancelado transmutaram-se em um breve olhar, alguns passos pelo shopping e uma despedida? Não tinha bem claro o que queria, talvez pelo outro não ser uma foto, talvez pelo foto não ser o outro.

Em verdade, as fotos e as pessoas são sempre a mesma coisa. O que as diferencia é a história que criamos para as fotos, ao passo que as pessoas têm suas próprias histórias. Não tenho acabado ali o encontro, já juntos e conversado por algumas horas, Ricardo, nosso rapaz, já não via no outro a foto e nem buscava vê-la. Via no outro o outro. E o outro passou a ser não uma foto dessemelhante a ele mesmo, mas todo um álbum, todo um livro, toda uma vida que se abria diante dos olhos de Ricardo e entrava por seus ouvidos... Se a vida de alguém fosse matéria gastronômica, diria mesmo que queria comer a vida do rapaz. Se fosse um souvenir, gostaria de trancá-la em um baú para poder olhar sempre que quisesse.

Não podendo comer nem trancafiar a vida diante de si, beijou-a e amou-a de tal modo que saiu do encontro com uma parte dela em si, mas nem se deu conta.

Falaram-se todos os dias até o próximo encontro. E o mesmo até o próximo, em que dormiram juntos. Foi esta a primeira - e única - vez em que Ricardo pode sentir o outro dentro de si. A alienação que a carne do outro em seu corpo lhe causava, apenas contribuía para que Ricardo se perdesse de si, esquecendo-se e distanciando-se de suas reais intenções.

Mas intenções, desejos, vontades, essas coisas do muito querer retornam e sempre com mais e maior intensidade. Se se falavam todos os dias, após o sexo, o outro não mais ligou. Nessas ocasiões, Ricardo passava por estágios bem simples no modo - já que sempre ele parecia triste - e complexos no conteúdo - que era sempre remoído internamente e nunca externalizado em sua completude na conversa com os mais próximos.

Primeiro, era a fase da compreensão - ele deve estar cansado, ele deve estar dormindo, ele não deve ter recebido meu recado. Depois, vinha a fase do sentir-se rejeitado - ele não quer responder, ele não quis ligar, ele não gostou do que houve e não quer fazer contato. Por fim, a fase da raiva, disfarçada em desistência - se ele não quer, não importa, pois não vejo porque agarrar-me a uma possibilidade enquanto outras várias fazem tocar meu telefone.

Até que quem fez tocar o telefone foi o outro: "Está em casa?", ele perguntou. "Sim", Ricardo respondeu imediatamente, o coração exultante, a raiva esvaída em felicidade.

Mais uma vez, dormiram juntos. Nesta ocasião, porém, o inesperado se deu. Das outras vezes em que estivera na casa do outro, houve muita conversa antes do contato, sempre estabelecido por Ricardo: um pequeno beijo, um toque leve nas costas, um abraço tímido na chegada. Desta vez, contudo, Ricardo decidiu não mover-se e esperou que nada acontecesse até que o outro o chamasse para o quarto. Durante a conversa, em geral, cada um sentava-se em uma poltrona e falavam, falavam, falavam, até que o convite para a cama era feito, como uma cerimônia religiosa, cheia de dogmas e passos previstos. Nesse dia, contudo, Ricardo sentou-se no sofá maior e, para sua surpresa, o outro deitou-se no mesmo sofá e pôs os pés em cima do colo de nosso rapaz, que, sem nada entender, começou a acariciar aquela companhia quente, agradável e inesperada.

Pela primeira vez, o convite para a cama não fora feito, mas aconteceu naturalmente, os dois levantando-se e concordo silenciosamente que era hora de deitarem-se um ao lado do outro.

O acaso tem suas artimanhas... E no dia seguinte, mais estranhezas se fizeram presentes, pois que o outro parecia incrivelmente mais próximo, falando coisas suaves. Nada demais, se pensado friamente, mas muitas coisa se compreendido a partir do desejo real e desconhecido que Ricardo alimentava.

Nos dias que se seguiram, pela primeira vez Ricardo ouviu o outro dizer: "Também tenho saudades de você", e sentiu tamanha felicidade que foi incapaz, por dias, de fazer o que mais gostava: escrever. É que para escrever, Ricardo necessitava de um estado tal de espírito que se assemelhava à melancolia, mas esta não lhe fez visita.

Não lhe fez visita até que a ausência do outro novamente o visitou. Nada fazia tocar o telefone de nosso rapaz, nem mesmo as mensagens que ele, em vão, enviava. Nenhuma era respondida. E nenhum contato fora feito.

E outra vez, os três estágios: a compreensão, o sentir-se rejeitado e a raiva disfarçada em desistência, até que o telefone tocou alto e fundo em Ricardo.

O rapaz dormia e acordou de sobressalto. Quem liga a esta hora de uma manhã de final de semana?, perguntou-se. E foi como se cada gota de chuva que caia do céu naquele dia parasse aos poucos de cair e preguiçosamente retornasse para a nuvem de qual se desprendera. E como se cada nuvem decidisse, malandramente retirar-se para que viesse o sol. E como se o sol, espertamente, acordasse os pássaros. E como se os passáros, celeremente, acordassem é saíssem pelo céu azul e cálido em canto belo, ágil e feliz.

- Alô? - disse Ricardo.
- E aí? - respondeu o outro do outro lado, como de costume.
- Oi! Nossa, que bom te ouvir. Que bom ouvir de você. Fico feliz que tenha feito contato!
- Mas eu sempre faço contato...
- Não foi isso que eu quis dizer...

Nessa hora, Ricardo esqueceu-se do que mais gostava: os subtextos, as entrelinhas. De fato, o outro sempre fazia contato: sempre que queria e, por isso, tinha a sensação de que era sempre. E Ricardo contentou-se com o "sempre" do outro, sem pensar no que era "sempre" para ele.

Aquela noite, dormiram abraçados mais uma vez. Não sem antes o outro dizer a Ricardo o que queria de fato.

- Estou em um momento muito tranquilo, ele disse. Busquei muito alguém ano passado, ele disse. Tem sido legal, ele disse - contou Ricardo para si mesmo algumas vezes no dia seguinte, e no seguinte e no outro, quando, sem aguentar a ausência do outro, ligou para dizer: "Aceito o seu tempo, aceito sua tranquilidade e compreendo seus medos. Também tem sido legal para mim."

Todavia, ao falar, Ricardo não ouvira a voz que gritava dentro dele. "Aceita?", ela gritava. "Compreende?", ela dizia insistentemente.

Nos dias que se seguiram, Ricardo tentara contato outras vezes, sem obter êxito. Quem obtivera o êxito esperado fora a tal voz insistente, que fez com que Ricardo entrasse em contato com aquilo que realmente queria e constatasse o quanto aceitara, nas últimas vezes em que conhecera alguém, os limites do outro, sem nunca impor os seus limites e suas vontades.

Não queria deixar de ver o outro, mas também não queria continuar oscilando entre a tristeza e a euforia, entre a solidão solitária e a solidão acompanhada. Não queria solidão. Queria mesmo era companhia. Além do mais, era mais só ficar só acompanhado do que só sozinho.

Até agora, Ricardo não sabe o que fazer. Pensa que talvez o ideal seja falar. Ligar para o outro, marcar um encontro, ter uma conversa sincera. No fundo, deseja que tudo se ajeite entre eles, mas agora sabe o que quer e sabe que o que mais deseja é que tudo se ajeite da melhor maneira para si mesmo.

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