Google

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

O encontro de Rebeca - parte 2

Queridos, o conto "O encontro de Rebeca" é um só... enfim, só estou postando em partes porque está ficando grande e demorado... Ela resiste em morrer... rs
Ah sim. Esta não é a versão final... A parte 1 já sofreu alguns acréscimos. Acho que nenhum corte... Mas acréscimos que ajudam a compreender os fatos. Ao final do conto, posto de uma vez só ele todo.

O Encontro de Rebeca (continuação)

Por mais dois anos, as portas e as janelas da residência dos Palhares permaneceriam fechadas, até o dia em que seriam abertas para que Rebeca encontrasse a morte e a coroação como Santa. O corpo de Rebeca, enclausurado, embranquecia dia após dias e ganhava um tom mais solitário ainda do que tinha quando mais moça: era azulado pelas veias aparentes. Sorte tinha ela, contudo, pois que muito havia para que tivesse enlouquecido, contudo a ausência de contato com a brisa marítima lhe evitava tal mal. Além do mais, não podemos dizer se loucura seria um mal que Rebeca pudesse pegar. Desde que Dr. Parmênides lhe anunciara a doença mortal que nunca mais adoecera de outros males. Quando viva, sua mãe costumava mesmo brincar: "Minha filha, minha vida, que doenã estranha essa: não gosta de dia e nem de companhia! Que doença é coisa ruim: quando vem, vem sempre em conjunto!", e esse não era o caso.

Se pudessem escolher, dentre tudo o que há no vilarejo, aquilo que mais pesa sobre suas vidas, certamente os habitantes escolheriam o mar. O mar ruidoso. O mar gelado. O mar bravio. O mar robusto. Ele era a vida daquele lugar e o único faixo de luz na mente escurecida de todos os moradores. Falar no mar era falar do que lhes mantinha vivos e por isso sentiam-se iluminados neste momento. Clarões de lucidez podiam ser vistos emanando de cada pessoa ao falar daquela entidade tão querida, o Sr. Mar. Tão querida e tão temida, como tudo o que é verdadeiramente amado. O amor, coisa tão mais complexa que o mar, traz sempre consigo pesos vários que, a princípio não lhe competem. Quanto mais amavam o mar, mais o temiam e mais o respeitavam: raras eram as vezes em que se via algum corpo mergulhando entre as ondas e a espuma salina, raros eram os pescadores que aventuravam-se com seus barcos nas águas revoltas, raras eram as pessoas que, como Florinda Palhares, se arremessavam contra as rochas, pois que era desreipeito ao mar fazê-lo um assassino.

Havia um acordo tácito entre habitantes e o grande rei: ele lhes fornecia tudo quanto precisassem, contanto mantivessem o respeito. Ninguém sofria: nem o mar, nem eles. Os peixes eram ofertados em abundância, assim como as danças à beira do praia todas as quintas-feiras dos meses de agosto, quando o mar dali fazia bodas. As conchas eram poucas na praia, mas todas as que haviam eram tão belas que permaneciam ali, intocadas, incapazes que eram os homens de recolhê-las diante de tão estonteante beleza. Ostras, camarões, lagostas, pérolas, corais, estrelas-do-mar, cavalos-marinhos: tudo isso o mar lhes oferecia em troca do respeito observado.

Nunca houve, como acreditavam os homens, nada no oceano além de peixes, e plantas e vidas marinhas comuns e conhecidas. Talvez uma ou outra espécie de peixe desconhecida, um novo tipo de alga, mas nunca coisas como monstros, sereias, lulas e polvos gigantes, deuses das fossas abissais. Além do comum e esperado, só havia no mar água. E era tão do mar a água como o eram as outras coisas, quiça mesmo mais, que não haveria mar sem ela. A água e o mar eram dois amigos tão próximos, que os habitantes da vila os confundiam em casamento dizendo: "Trouxe um pouco de água do mar". Mas a água não era de ninguém. Era apenas água e, se muito, poderiamos emendar: amiga do mar. Portanto não lhe cabia de modo algum um respeito cego ao acordo dos homens com o mar. Nada ela ofertava aos homens, apenas exigia deles o mesmo respeito que devotavam ao amigo, como se esta fosse uma obrigação de todos para com ela, que lhes permitia - e disso os homens sabiam - viver.

Para mim, é um labor imenso compreender tal amizade. Pois qual das gentes seria amiga de uma pessoa que só lhe faz empurrar contra os rochedos? O mar não hesitava em lançar a água contra os rochedos, fazendo-a voar pelos ares em forma de pequenas gotículas e retornar para sí e para a onda seguinte, e a seguinte, e a seguinte... E nesse vai e vem, parte da água se ia, subia, talvez, como já dito, por vontade própria das gotículas ou por força da evoparação - que é o que preferem crer os homens do vilarejo, tão fechados à magia da vida por terem mentes obtusas e escurecidas – virava a umidade incômoda que tomava as ruas do vilarejo todas as noites e que era barrada à porta das casas.

Labor imenso também é compreender porque os homens da vila tanto evitavam a mágica da vida e preferiam interpretações simples dos fatos cotidianos. A evaporação é um processo tão mais cor pastel do que a crença na cor da vida das gotículas e na vontade própria delas. E é difícil de compreender esta opção pois à vida, é a mágica que dá cor. A mágica e os sentimentos e se esta história se deu é justamente porque houve um dia uma noite com a cor da solidão: o azul pálido, a mesma cor de Rebeca e das gotas reunidas no grande mar, e das estrelas brilhando no negro céu, e da lua em certas noites de frio quando os homens cruzam as ruas e cortam o vento cortante. Se há esta história, é porque um dia houve mágica apesar das mentes obscuras não terem querido vê-la. Mas depois de toda a cor e do ruído que houve aquela noite, as mentes se abriram e viram e Rebeca, como sabemos, virou Santa.

Talvez pela mente estreita dos homens, com o tempo a água do mar começou a sentir-se desacredita deles. Não era agradável vê-los falando dela sempre em relação ao mar. Além do mais, não haveria mar sem ela! Pensou em isolar-se da humanidade, mas isso significaria muitas perdas. Foi quando decidiu, num ímpeto, a adentrar as ruas da cidade todas as noites misturada ao vento frio, fazendo-se notar pelos transeuntes.

No começo, obteve o êxito esperado. Todos aqueles que saíam as ruas à noite falavam dela. Dela tão unicamente. Não misturada ao mar, vinha nas conversas: “Mas que neblina enjoada”, ouvir uma vez um jovem rapaz falando. Era Pedro Villasboas. E tanto fez persegui-lo que o rapaz, tão logo pode, mudou-se para o interior, onde a brisa enregelante não o pode perseguir. Sem saber, a água estragou os sonhos de uma jovem menina de doze anos, bastante adoentada, que era apaixonada pelo rapaz mesmo sem nunca ter sido notada por ele. Menos ainda sabia a água que esta menina seria, no futuro, o seu destino.

Nenhum comentário: