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segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Exorcizando velhos fantasmas

Deus disse a Abrãao: "Tome seu filho, o seu único filho Isaac,
a quem você ama, vá à terra de Moriá e ofereça-o aí
em holocausto, sobre uma montanha que vou lhe mostrar"
Genesis 22, 2

Não estava acostumado a ambientes como aquele. A cor verde dos corredores lhe dava uma aconchegante sensação de frescor, quebrada pela crueza da forte luz branca das lâmpadas fluorescentes. As pessoas, desde a hora que entrara, olhavam-no sorrindo. Havia algo de estranho nelas... Não era o olhar de adultos encantandos com a graça da infância, aquela que perderam há algum tempo.
No quarto, a mesma forte luz branca cortando-lhe a retina. O verde, que a cada passo adentro daquela casa estranha, lhe acalentava, fora-lhe roubado. Tudo o que via eram paredes brancas e altas. Um pequeno quarto.
A cama não era das mais confortáveis, mas sua avó lhe assegurara: voltariam para casa em pouco tempo. E não havia muito o que fazer. Melhor seria não ter tido o voluntarismo de ir à cidade grande. Caso tivesse feito alguma oposição... Bem, caso tivesse feito alguma oposição talvez algum membro da família tivesse desistido, entendendo a falta de vontade como algum sinal divino.
Onde está minha mãe?, pensava. E como se adivinhasse o pensamento do garoto, vovó passara as mãos de leve na cabeça dele ao passo que dizia: "Meu filho querido, mamãe está voltando".
Naquele quarto não havia ninguém mais que não fossem os dois e a presença etérea de uma mãe desejada, que adentraria a qualquer momento aquele quarto. Sim, ela o tiraria dali caso ele quisesse. Não sabia ainda, contudo, se queria sair dali. Apesar da luz cortante e das altas paredes, estava fatigado. No intervalo entre um visita e outra à cidade grande, esquecia-se do que sempre acontecia e era por isso que sempre respondia animadamente: "Quero ir!", quando a mãe lhe perguntava se gostaria de juntar-se a ela e a avó no passeio. Sempre que iam à cidade, sua mãe e sua avó andavam quilômetros, entrando em todas as lojas abertas, procurando coisas que não queriam, comprando coisas que não precisavam e deixando de lado aquilo que, de fato, era o mais profundo desejo das duas. Melhor levar o que não se quer do que correr o risco de nada mais ter para desejar na vida.
Apenas dez minutos se passaram desde que entraram naquela casa estranha, desde que passaram pelos corredores verdes e viram as pessoas olhando para ele daquele modo que, só mais tarde, viria a entender ser pena: "Uma criança, tão nova, aqui neste lugar!", deviam pensar elas ao ver o molequito andando para dentro do hospital.
Dez minutos era muito tempo para uma criança. Certamente havia naquele lugar uma imensidade de possibilidades a serem exploradas. Poderia, talvez, imaginar que era uma grande casa daquelas antigas, de escravos, e que ele era o senhor de todas aquelas terras. Ou então, que se tratava de um forte de guerra e que ele deveria espionar os bandidos que vinham lá longe na estrada, fazendo poeira ao trotar dos cavalos. Na tentativa de descobrir este mundo, disse:
- Vovó, posso ver a janela?
- Não, meu querido. Em breve chegará um amigo para você e é melhor que descanse.
- Um amigo?
- Sim, meu filho. Um amigo - respondeu-lhe a avó em tom de fechamento. Não era possível explicar a ele o que se passava ali, pensava ela. Melhor: preferia não explicar... Talvez ele ficasse com medo e medo é bobagem, luxo a que o garoto não poderia se dar. Já havia muito que ela e a filha planejavam levá-lo ao doutor. Hoje era o dia, este que planejaram. Tudo estava marcado, mas ainda sentia dentro em si um pequenito receio de algo pudesse dar errado, de que o trem, tão bem posto em seus trilhos, pudesse descarrilar por algum motivo. - Tome! Trouxe aqui uma das revistinhas que você gosta. Porque não lê para mim?
E entregou ao menino uma revistinha em quadrinho nova e viu os olhos dele brilharem. Apesar de ter apenas 5 anos, ele sabia ler. Aprendera aos 4 num pequeno passeio à praia. Desde então, não parara, sempre pedindo novas revistas, novos livros... Não saberia ela determinar (nem ao menos a mãe) se a precocidade do garoto na leitura era um ganho ou um problema familiar, pois o dinheiro que tinham não acompanhava a leitura do menino, que ao final do dia em que recebia uma revista, já logo pedia outra.
- Querido, enquanto lê, vovó vai sair rapidinho. Fique deitado, hein? Já já mamãe chega e seu amigo também. É melhor que descanse.
Nem tivera tempo de sentir-se aflito, nem ao menos de terminar a leitura da primeira historinha da revista. Logo chegaram todos: vovó, mamãe e o novo amigo.
- Querido, este é o Dr. Paulo - disse-lhe a mãe.
- E aí, rapaz? - disse o médico em tom amistoso.
Mas o menino preferiu calar-se. Não era dado a falar com estranhos. Vivera uma infância muito fechada no berço familiar, não era de muitos colegas. Não era afeito a amizades que se fazem de hora para outra. Talvez (sim, talvez) venha a mudar essa postura após o que estava prestes a viver. Talvez tomasse consciência da necessidade de ligar-se aos outros para evitar a dor da vida.
- Meu filho, o dr. Paulo irá te examinar, certo?
- Vou tirar sua bermuda, ok? - disse o médico, como querendo acalmar o menino.
- Para quê, mamãe?
- Querido, sem perguntas - respondeu ela. Era possível, mesmo para ele, perceber a insegurança e o medo na voz materna.
- Não quero.
Ao som dessas palavras, viu a mãe olhando para a avó. Esta, compreendendo o olhar, dirigiu-se para a parte superior da cama. Mamãe, aproximando-se da cama, debruçara-se sobre o corpo do filho, não sem antes tomar-lhe a revista. Num ímpeto, agarrou-lhe os braços e deu-os à avó, que agora os segurava com força acima da cabeça do garoto com uma mão e, com a outra, levantava a cabeça dele de modo que não pudesse olhar para outro lugar que não para o rosto senil dela. Não lhe era permitido olhar para baixo, não lhe era permitido ver o médico neste momento despindo-lhe dos quadris para baixo.
O que estaria acontecendo?, pensava, ainda tentando manter-se tranquilo, pensamentos vagando na história que lia ainda há pouco. Sentira, então, as mãos geladas da mãe tocando-lhe os pés e prendendo-os firmemente à cama.
- Mâaaaae, não quero! Estou com medo! - gritou em desespero, todos os pensamentos tranquilos esvaindo-lhe como a água de uma banheira sendo sugada para o ralo - Não quero! Vovó! Vovó! O que está acontecendo?
- Calma, meu querido, vovó está aqui - respondera a avó com um sorriso nos lábios. Ele era forçado a ver aquele sorriso, seu rosto sendo puxado em direção àquela visão.
Sentiu as mãos do novo amigo tocando-lhe em sua intimidade. Além do rosto da avó, a única coisa que conseguia ver pelo canto do olho era o vulto alto daquele homem, todo vestido de branco.
- Nãaaaaaao! Nãaaao! - gritava o menino, entre soluços - Nãaaao... Mãe, me ajuda... Vó, me ajuda... Me ajuda...
Sentira então uma grande dor. Dos olhos, as lágrimas rolaram com maior velocidade quando estes se fecharam em resposta ao que sentia. Nem ao menos conseguia dobrar as pernas e defender-se. Não que não tentasse, mas as mãos geladas da mãe eram mais firmes que as pernas dele. Abrira os olhos e o vulto alto do homem na sala tinha agora tons avermelhados onde só havia o banco asséptico.
Já não mais conseguia gritar. Nada lhe era possível. Pensava no pai. O grande herói das revistas que lia. Pensava nele. Porque o abandonara ali, naquele momento? Porque não estava lá para ajudá-lo? Será que sabia?
Uma sensação estranha lhe subia pela garganta. Entre a dor e os gritos havia o ódio. O que havia entre mamãe e aquele homem? Será que ela também chorava como ele? Ou se felicitava com o que estava acontecendo ali?
- Querido, está quase acabando - ouviu, ao longe, a voz da avó.
Sentia-se violado. Sentia-se humilhado naquilo que era seu: ele mesmo. Então não era tão forte como pensava? Nem tão astuto? Nem tão capaz de perceber o que se passava ali antes que tudo se desse?
Sentira que o homem tirara a mão de seu corpo, o mesmo corpo que o menino já não conseguia sentir por inteiro. Alguma coisa lhe havia sido tirada? Uma vez, brincando, cortou-se e sangrara. Sabia que aquele vermelho que percebera de relance era seu sangue. Onde o haviam machucado? Não sabia, criança que era, que não importava o machucado, mas sim os danos invisíveis do espetáculo de horror a que era submetido. Também não o sabiam a avó e a mãe, devo dizer-lhes, para que não dirijam todo seu ódio contra elas. Talvez nem ao menos soubesse o médico que o sangue era o de menos e que a grande ferida era interna.
- Vó, segure os braços com mais força - disse o médico. - Garoto, estamos quase terminando. Agora falta só o remédio. Vou por o remédio agora. Você vai sentir arder.
Já nem tinha forças para se opor. Sentira a ardência queimar-lhe toda a carne. Ainda urrava de dor o pequenito corpo na cama quando tivera as pernas e os braços libertos. Virara o corpinho para o lado, dobrando-se sobre si mesmo ao puxar as pernas para perto de si e ficara assim, na posição em que os bebês ficam quando ainda não precisam sofrer a vida. E nem tempo lhe deram para sofrer a vida. A avó fora logo o empurrando para que se levantasse. Já era hora de ir embora. Não havia porque ficarem ali.
- Vista-se - disse-lhe ela.
E obedeceu. Não seria mais capaz de se opor a nada. Aquilo que era, perdera-se. Restara-lhe apenas a possibilidade de aceitar tudo de todos na vida.
Ao subir a cueca e as calças, vira o que acontecera: um curativo.
- ... caem - ouviu o médico dizer para a mãe ao fundo da sala. Não sabia que se tratava dos pontos e logo imaginou que se tratava da parte de seu corpo a que dava tanta importância, aquilo que o diferenciava das meninas e o fazia parte do mesmo mundo do pai.
Por isso saíra do hospital andando lentamente enquanto as pessoas lhe olhavam com o mesmo sorriso que lhe olharam ao entrar, apenas pela diferença que desta vez perguntavam a mãe:
- Fimose?
- Sim - ela lhes respondia.
- Ah! Ele vai andar assim, com as pernas abertas por mais alguns dias... - diziam, rindo.
Mas não sentia dor alguma. Não sentia nada. Ignorância causualista dos adultos, que acham que para cada causa, um efeito. Sim, andaria com as pernas abertas: era o único cuidado que conseguia pensar para evitar que aquela parte tão querida a si de seu corpo caísse, como vaticinara seu "novo amigo" ao pé do ouvido da mãe.
Entrara no carro. Voltaria para casa. Violadamente, voltaria para casa.

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