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terça-feira, 21 de agosto de 2007

A necessidade de morrer ou Sobre a morte como tentativa

Não entendia porque escrever, agora, quando tanto havia para dizer, parecia um fardo pesado. Tudo aquilo que tinha para contar não passava dos dedos para o papel, não havendo lógica capaz de explicar tal fato. Escrever fora uma dádiva e esta, lhe tomaram.
Em sua cabeça, cenas das aulas da infância: "Assim é um vírus", dizia a professora. Amar era um vírus e comia-lhe a vida e as idéias.
Talvez um trago. Uma dose dupla de scotch no bar da esquina. A ardência que lhe tomaria a garganta e o estômago o fariam esquecer da outra ardência, a mais interna. Quem sabe assim as palavras não lhe cairiam na cabeça, uma linda chuva de idéias e a ânsia e o mal-estar de ter mais para dizer do que os dedos são capazes de imprimir no papel.
Cada novo passo era para si uma experiência de renovado risco: poderia perder-se, poderia achar-se. Lançava-se no absurdo que era o gostar e, sem pudor, pelo gostar era carcomido.
Não lhe bastaria falar de objetividades: "apaixonei-me por muitos na vida", poderia escrever, "e neste final de semana que se passou, corri atrás do amor, este em que eu tanto acreditava", mas os fatos não iriam rendê-lo das dores do amor e do fracasso que agora lhe tomavam. De que adiantava saber de tudo o que vivera? E de que lhe serviria revisitar a dor e a frustração do já vivido?
Sim, isso! Grande! Desista, rapaz! Abandone a caneta sobre o papel. Para quê chafurdar na lama? Que prazer há de haver no sofrimento para que tanto o busque? Levante-se agora e abra a janela. Olhe o céu! Fecha-se em nuvens, mas lá no fim o sol se anuncia, bem lá no horizonte, onde os olhos já quase não alcançam. Ou apenas deite-se e deixe o pensamento aquietar-se. Tente lembrar-se dos momentos bons, rapaz, quando amor e sexo caminhavam juntos e eram diversão apenas. Delete de si a adultez que lhe toma, que corre em suas veias e faz doer-lhe o peito comprimido.
Deitou-se. A dor era tanta que não conseguia mover-se. Estava deitado por sobre a cama. A raiva contida. Os sentimentos contidos. O horror preso a si, bem ao fundo de si. Tinha horror e raiva da vida, essa coisa absurda que se passa com todos. A vida é uma doença, pensava. A vida é fracasso, concluira.
À vida, são as dores que dão o tom. Se isso é verdade, o que dizer de todos os outros momentos? Como quando este mesmo amor era ainda uma dádiva e você sorria ao encontrá-lo no final do dia, criança que era no parque das sensações. Mas agora é um adulto, deitado em posição fetal e vertendo em lágrimas. Assim sente-se seguro, assim acalma-se.
A vida é doença, é fracasso. E a vida é uma longa espera. Fora uma longa espera e um carrilhão desgovernado de esperanças cada novo amor. Mas os vagões sempre passaram ou pararam pela estação em que se os esperava. Desta vez, fora feito viajante frustrado na mesma estação e a expectativa esvaiu-se em si e, ao mesmo tempo, fora tudo o que lhe restara. Dessa vez, ele não aparecera e tudo fora uma grande espera.
O corpo retesado por sobre a cama, cada músculo em contração, as idéias comprimidas na cabeça. Seu interior era todo apertado demais para aquilo que sentia e seu sangue, correndo e comprimindo-lhe as veias, era insuportável. Como poderia tanto acabar em nada? Que rio, me diga, desagua em riachos? Coisas que se passam em sua vida apenas, imaginava: só com ele grandes amores transmutavam-se em pequena amizade, troca fortuita e banal de experiências sobre o dia longo de trabalho ou o novo relacionamento daquele que amava. Sim, ouvira sempre deles: "Tenho um novo amor, quer saber?", "Pois meu relacionamento vai mal e em breve termina", "Amo-o mais que a mim" e coisas afim.
Não dessa vez! Não outra vez! Mais uma vez era o suficiente para ser insuportável de aguentar. Ele não aparecera e a vida tornara-se uma grande espera: "será como irá falar-me a mim de sua ausência?", pensava ainda no bar, "mais uma vez irei receber uma proposta frugal de coleguismo? 'Mas podemos ser só amigos', dirá ele? Não, não mais uma vez", falou em voz alta, erguend0-se em súbita violência da cama.
Era preciso abrir-se e fazer a dor vazar. Aquele aperto. Aquela angústia. Era preciso abrir-se. Começara então pela diminutas verdezinhas dos nós dos dedos. E chegara ao pulso e à junção macia entre o braço e o antebraço. A essa altura, o quarto já enchia-se de sangue. Mas ainda faltava cortar os tendões do tornozelo, as veiazitas da pélvis e detrás do joelho.
Por fim, livrara-se de toda a angústia que o comprimia rasgando de um só vez a pele, do pescoço ao começo do estômago e sentindo o aço já quente adentrar-lhe o peito, assassinando a uma só vez a si mesmo e aos amores que alimentara.
E ainda assim, mesmo tudo isso, de nada adiantara. Ainda assim a vida era uma grande espera... E esperava o dia em que se falariam de novo, como antes.

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