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quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Correspondências 1

Esta é uma série de cartas encontrada às margens do rio de Águas Turvas num domingo à tarde, em uma caixa amarelada pelo tempo. Acredita-se que tenha sido jogada há poucos dias fora, pois a caixa não estava maltratada pelo tempo, pela água do riacho.
Havendo procurado no cartório da cidade, não encontrei nenhum registro de Bruno ou Clarice. Tudo o que consegui foi o relato de uma senhora, residente num sítio próximo às margens do riacho. Segundo ela, muito se amou naquela região; as cartas poderiam, então, ser de qualquer um para qualquer outro.
(O autor)
Águas Turvas, 15 de Agosto de 1972.

Bruno, minha vida,


Peço desculpas se demorei a te escrever. Queria e deveria ter feito isso muito antes, quando ainda era capaz de olhar-te na cara para dizer o que deve ser dito. Não, as desculpas não são para ti. Peço desculpas a mim mesma se demorei a te escrever, que eu é que sofri calada por todo esse tempo. Que eu é que não dormi todas as noites pensando no que e como dizer. Eu é que fiquei arrumando remendos para teus farrapos de atenção, de cuidado, de afeto, numa tentativa renitente de perdoar a memória que tenho de você, tornando mais fácil a convivência com minhas próprias lembranças.

Se não escrevi antes talvez seja pelo meu apreço à dor. Talvez por minha fraqueza. E se agora escrevo é que a dor está passando. Abriu espaço para outros sentimentos que, lentamente, aparecem e me possuem por inteira, como a raiva de tua carocha vagabunda e de seu sorriso amarelo e escroto.

Foram muitas coisas, minha vida, muitas coisas e pouca consideração por tudo. Até quando, me diga, até quando pretende agir como se criança fosse? Até quando vai continuar usando suas desculpas para fingir que, na verdade, nada é responsabilidade tua quando se trata da vida dos outros? Que bom deve ser viver como um grande ermitão mesmo se estando em meio à multidão e sendo servido por ela. Que bom deve ser não ter que pensar no outro ao decidir a nossa vida! Me diga: é bom?

Por que não me procurou ao menos para dizer que estava querendo continuar sua vida sem mim? Entendo que tenha sido necessário se afastar para decidir suas confusões. E se decidiu, se preferiu voltar para quem estava com você, porque não voltou para me dizer?!

Mas imagino o que seja: seria exigir demais de você que, além de sair de sua confusão, ainda abrisse mão de suas bengalas, não?! E eu sempre aceitei apoiar o teu peso, sempre carreguei tua vida em minhas costas, tudo aceitando, tudo compreendendo. Tua vida sempre me foi um peso, um peso que eu sempre quis carregar. Mas agora, não! Agora basta!

Basta de desculpas nas entrelinhas, desculpas nunca pedidas, apenas mencionadas como uma intenção escondida, inconsciente. Penso que, na verdade, tais desculpas nem nunca existiram e foram todas criação de minha cabeça.

Sabe de uma coisa? Escrevo para que não fique o rancor. Só agora me dou conta de que já é tarde para isso.

Lembra quando me repetiu: "não temos nada. Se ao menos estivéssemos namorando, você podia me cobrar"? Naquela hora já previ o que estaria por vir. Sabia que em algum momento você cairia fora sem nada dizer e, caso eu te procurasse, me jogaria novamente estas palavras na cara. No teu jogo, todas as jogadas são planejadas de modo que você sempre saia vencedor. Sabe? Não me importa ganhar este teu jogo sujo. Do teu jogo sujo, prefiro sair limpa. Limpa, mesmo que ferida! E é assim que saio. Quero devolver-te, com esta carta, a tua sujeira. E ainda, devo dizer, ainda tenho esperanças de que saiba bem o que fazer com isto, esperança de que mude, esperança de que cresça, de que saiba usar tua sujeira para se limpar, que às vezes temos até as ferramentas, só nos falta enxergá-las. E enxergar a merda é um jeito de sair dela. Talvez, no entanto, seja otimismo demais pensar que você seja capaz de enxergar as merdas que faz, a merda que você anda fazendo questão de ser.

Pois muita coisa boa também ficou. Os amigos, por exemplo, ficaram. Tanto os meus quanto os teus. Decerto que os meus são da mesma opinião que eu, mas nunca lhe virarão a cara. Os teus, creio nunca haver dado motivos para que me ignorem e, de fato, até agora não o fizeram. Ficaram também boas lembranças: os passeios, os restaurantes, as idas frustradas ao cinema, a pele queimada e ardida por um sol de um final de sábado em que caminhamos pela cidade enquanto trocávamos palavras doces e cruas.

Tenho raiva de você agora. Mas tenho também muita saudade. Ainda te tenho amor. Menos admiração, mas ainda amor e nunca me arrependo daquela tarde, depois de termos transado, quando disse que te amava. E nem de quando, momentos depois, cantei aquela canção... Aquela nossa canção - talvez você nem nunca tenha percebido que, para mim, era nossa canção -, aquela que eu havia cantado um outra vez sem muita razão de ser mas sabendo que em algum momento viria a ter razão para ter sido cantada e que, então, seria cantada novamente.

Ainda tem coisas tuas em minha casa. Como faço para entregá-las? Preciso exorcizar cada coisa que me faça lembrar você... Só não tenho encontrado meios de exorcizar-me de mim, eu que sou tua e me faço lembrar de ti a cada novo instante. Não quero e tenho medo de te esquecer. Tenho medo que me esqueças também.

Se para ti nada disso ficou, que fique então ao menos uma certeza: de que serei tua ainda por mais algum tempo, quando você passará a ser apenas parte de um tempo guardado nos escaninhos da memória. Serei tua por ainda mais um tempo, mesmo com a raiva, mesmo com o rancor, mesmo com as dores. Aliás, tudo isso também é teu: o rancor, as raivas e as dores, bem como o carinho... As saudades... Os amores... Queria ser forte ou ser dessas que sabem dissimular e dizer que não gosto de você, que de fato nada senti por ti... Não sou assim. Nisso deve haver alguma vantagem que talvez eu descubra com o passar dos anos e que agora ainda me passa desapercebida.

Na espera de que esta lhe encontre bem e, mesmo chateada, desejando-lhe todo o bem de que sou capaz,

Da sua,
Clarice.

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