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segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Insight (compreensão interna)

Somos no mínimo dois, devo admitir.
Na cama, o casal é no mínimo três,
também devo concordar.
Nas palavras, os sentidos são melhores
quando são um só. Mas isso nem sempre
é como a linguagem se apresenta, que,
para a sorte de nossos propósitos, ela
tem meandros e melindres.O texto não está
no texto. O texto é construído nas entrelinhas.


Outrora, num tempo deveras passado mas nunca esquecido, havia um lavrador possuidor de todas as terras da pequenita região onde morava. Não era, assim, grande feito ser dono de toda a terra, que toda a terra era pouco chão. Ali, vivia acompanhado por Baco, seu cão, numa casa modesta, de palafita, com apenas dois cômodos: o de Baco e o dele, Dubielino.
Muita história tinha o lavrador, a começar pelo nome. Pai e mãe, desde então já possuidores do mesmo naco de terra, nunca chegavam a um acordo sobre nada. Josefa queria ter uma propriedade repleta de girassóis.; Sr. Nô, uma repleta de cravos multicoloridos. Este mesmo desacordo se extenderia a qualquer assunto: a compra do mês, a raça do cão que iria substituir aquele que havia morrido, a cor do tecido que comprariam para fazer as vestes que usariam pelos próximos seis meses etc. Até que Josefa falou para Sr. Nô da gravidez e nova querela se iniciou: ele queria que, sendo menino, se chamasse Pedro; ela, José, homenagem que prestaria a si mesma. Foi quando, na feira da vila mais próxima, ouviram um sábio falando de um púlpito improvisado com caixas de legumes: "O texto, meus senhores, é dúbio!".
Maravilhados pelo discurso do palestrante, Sr. Nô e D. Josefa foram perguntar ao sábio o que dúbio significava e ele disse: "Dúbio é tudo o que não se define", e definiram então que o nome do filho deveria ser Dubielino, o rapaz cujo nome não se define.
A propriedade herdada dos pais não era difícil de reconhecer: ao longe podia-se ver o campo repleto de narcisos amarelejando as verdes gramíneas, que ele não precisava debater o que queria plantar, uma vez que era só.
Seus narcisos eram conhecidos em toda a região. Muito bem cuidados! Flores lindas, impecáveis, perfeitas na cor, no porte e no cheiro exalado. Decerto eram assim, pois Dubielino devotava sua vida a sua plantação. Buscava sempre na vila novos métodos de plantio, novos fertilizantes, novas ferramentas, que pudessem lhe auxiliar na labuta e lhe garantir resultados a contento.
Numa dessas buscas, descobriu que para cada tipo de planta, um tipo de adubo. Comprou então trezentos sacos de adubo para Narciso e viu, como que por mágica, sua plantação florescer cada dia mais bonita, se isso fosse possível.
Todos os dias, havendo regado as plantas, extraído ervas daninhas, adubado a terra, enfim, tendo realizado todo o ritual de cuidado, Dubielino chamava Baco e iam os dois, cão e dono, para a janela do casebre contemplar a beleza amarela na gramínea verde.
Mas todos os dias são muitos dias. Com o passar dos anos, Dubielino começou a notar que suas vistas já estavam se cansando do amarelo, esta cor tísica. O que fazer? E toda a vida devotada àquelas plantas? E todo o adubo estocado?
Apenas a primeira destas perguntas, contudo, é que passou pela cabeça do lavrador. Para ela, respondeu: "Vou começar plantio novo".
E lá foram ambos, ele e Baco, comprar novas sementes.
Quando voltaram para a propriedade, Dubielino foi logo pegando a foice e, decepada a parte incômoda dos narcisos, justo aquela que ficava bem abaixo e a frente da janela do casebre, lançou as sementes dos gerânios avermelhados.
Cuidava das novas flores todos os dias e com o mesmo cuidado que cuidava anteriormente dos narcisos. Aliás, sim! os narcisos! Esquecera-se deles. Os coitados, espalhados por maior parte do terreno, mas não no naco de chão visível da janela, começaram a murchar lentamente pela ação da sol e das ervas. Ignorados, definhavam.
No entanto, ignorar é um modo de reconhecer a presença. Quando acordava, o lavrador devia escolher novamente ignorar a presença dos narcisos e, nesta deliberação, acabava por reconhecer indiretamente que aquelas plantas amarelas ainda existiam em seu terreno. Foi num desses momentos matutinos de reafirmar sua escolha, que Dubielino viu-se de cara com ela, aquela que estava presente em seu nome, a Dúvida.
Vinda do nada, a Dúvida lhe disse:
- Pretende ignorar até quando aquelas plantas inocentes?
- Do que fala?
- Você bem sabe do que falo... Os pobres narcisos não tem culpa pela futilidade de seu dono. Não deveriam pagar. Se aqui há culpado, este é você, que agora os deixa à mercê da Morte, minha companheira de trabalho.
Assim como chegara, a Dúvida fora embora: do nada, e só podiamos ver, então, os passos apressados de Dubielino para o celeiro, e do celeiro para o campo e do campo para casa, com a companhia de seu cão, e na casa, para a janela. Adubara os narcisos, cuidara deles e ainda voltara a tempo de ver o sol se por por sobre as novas flores avermelhadas.
Dubielino começara a dar valor aos prazeres da vida. Aquele antigo lavrador, compromissado com suas plantas, ficara para trás, dando lugar a um homem capaz de se felicitar apenas com o prazer, não tolerando as dores e sacrifícios. Entretanto, pensemos: como poderia ser prazeiroso adubar de modo diverso, posto que para cada planta um adubo, narcisos e gerânios? A labuta só aumentaria! E o espaço para o prazer à janela?!
Dubielino, juntando todas as suas economias e chamando Baco, partiu novamente para a vila, voltando desta vez com a grande sensação do momento: o Adubo Universal, capaz de alegrar gregos e troianos, ou melhor, narcisos e gerânios e quaisquer outras plantas que queira qualquer lavrador.

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