Capítulo antigo. É o capítulo que eu mais gosto do capitulado livro "(Des)mascarado".
Capítulo 7
Não sei, já disse, Impossível, dê sua opinião, Não vou dizer, e riram-se os dois da conversa que tentavam travar. Ela passava a mão nos cabelos dele enquanto ele olhava dois pequenos furículos que ela tem no septo nasal e que fazem do nariz dela uma parte interessantemente especial. O dia era desses nem frio nem quente como era comum na cidade. O sol forte parecia não esquentar o chão, sempre frio. Eram frias também as pessoas. Eram frios, há poucos dias, eles também. Mas agora não. Agora eram qualquer coisa menos fria, qualquer coisa mais aconchegante do que sempre puderam ser. Estavam no play do prédio da menina que tinha cabelos negros em fios grossos e inquietantes. Nunca deixava seus fios em paz, sempre puxando-os para aqui e acolá. Não poucas vezes usava coques, lindos coques que lhe revelavam o rosto. E dois minutos depois de tê-lo feito, o coque, desmanchava-o para reconstruir algum outro penteado. Digo reconstruir pois todos parecem já Ter sido construídos e desconstruídos ali.
O céu era azul como fora sempre, mas tinha esparsas nuvens brancas que ele olhava de soslaio para que a forte luz vinda lá de cima não lhe ferisse as vistas. As mesmas nuvens que olhava refletiam a claridade intensa, o brilho nada fosco da luz amarelada do sol. Estavam na sombra formada pelo prédio, em um banquinho bem encostado à parede alta que se erguia em 12 andares. Como estiveram andando e o mover-se, sabem lá os físicos o porquê, gera calor, sentiam-se quentes. Fora aliás por isso que ele se deitara no colo da menina e ela começara a acariciar-lhe o cabelo.
A superfície fria do mármore do banco lhe gelara as costas e o frescor perpassara todo seu corpo em um arrepio. Todo o calor que sentira esvaíra-se. No entanto, tampouco sentira frio. O sol não esquentava. Fora o colo da menina e o carinho que saia de seus olhos castanho-quente. O carinho aquecia a alma de nosso rapaz.
Sentados no banco, cercados pela sombra que se projetava segundo as formas do prédio a uns cinco metros à frente, podiam olhar o verde fresco da mata que ali perto havia. Era como se as árvores todas ficassem satisfeitas em receber aquele sol frio e claro após longos dias de chuva.
O verde fresco e limpo das árvores. A sombra fresca e fria do prédio. O mármore gelado do banco. O calor do carinho dos olhos de Georgina. Era como se no mundo nada mais existisse.
Olhou para cima procurando os olhos da menina. Ela olhou-o nos olhos e perguntou, O que você acha que combina comigo, que profissão, Talvez Filosofia, Mas não me interesso completamente por isso, é como se tentassem aprisionar o que não é aprisionável, Por isso insisto em lhe dizer que não posso dar-lhe uma resposta apenas e que, tendo que dar-lhe diversas opções, não lhe resolvo os problemas de Ter de escolher que profissão seguir.
A preguiça fez-se presente. Georgina jogou os braços sobre o corpo do rapaz. Pressionou-lhe a cabeça com a barriga, seus seios tocaram-lhe os ombros e os braços estiraram-se ao vazio num longo espreguiçar-se. Lentamente aprumou-se de novo. Olharam-se nos olhos e riram de leve aproveitando cada segundo, que a moleza que sentiam no corpo parecia transformar em minutos. Insisto que diga algo, Não sei, já disse, Impossível, dê sua opinião, Não vou dizer, e riam-se os dois da conversa que tentavam travar.
Não passarei mais tempo, leitor, tentando descrever a cumplicidade que podia sentir ali, vendo esta cena de fora. Era como se não estivesse vendo a cena de fora e sim participando dela. Não passarei mais tempo tentando descrever a cumplicidade nesse dia entre nosso rapaz e Georgina, pois seria o mesmo que tentar descrever a face de Deus ou definir em palavras vazias o sexo dos anjos. Não somos, por mais que queiramos ser, cúmplices desses dois e dos sentimentos que tinham entre si. Descreverei apenas os fatos que se deram nessa conversa. Se quiserem daí extrair sentimentos e subjetividades, fiquem à vontade, mas me eximo de qualquer responsabilidade pelo tom que derem a este relato.
Ele jogou o braço direito para cima e deixou que pousasse por trás do pescoço de Georgina. Puxou-a ao encontro de seu rosto. Olhava fixamente nos olhos dela. Os olhos dela, por sua vez, olhavam fixamente o rapaz naquilo que os olhos dele não mostravam, entrando profundamente em seu ser, sendo seu ser o que havia de menos determinado, e pensou como o ser dele confundia-se e fundia-se no dela de tal modo que ela o culpava de tomar-lhe os gostos. Ela gostava de V. W., a autora, ele também passara a gostar. Ela ouvia A M., a cantora, ele também. Ela gostava de fast-food, ele gostava de restaurante em que se pede e entregam seu pedido rapidamente.
Puxara a cabeça da menina ao encontro da sua. Seus olhos, levados pelo momento, fecharam-se num espasmo preguiçoso. Lenta e involuntariamente. No colo de Georgina a cabeça do rapaz movera-se como que para melhor ajustar-se. O rosto dela vinha só, sem a ajuda das mãos dele, que afagavam os fios grossos e negros e inquietos. Ela havia compreendido o pedido.
Seus lábios se encaixaram num beijo tépido. A superfície seca dos dois lábios. O vento fresco enregelando as partes desnudas do corpo. Mãos e braços e pernas desnudos encolheram-se num frêmito, como se funcionassem em conjunto. E os lábios secos se abriram. E se moldaram e remodelaram. Aos poucos, deixaram de ser apenas lábios e eram a coisificação do sentimento que ali havia e que insisto em não revelar. Suas línguas tocaram-se timidamente. Retraíram-se. Eram como duas crianças tímidas frente ao desconhecido que, surpreendemente, pareciam conhecer. Nunca se sabe o que iremos encontrar nos beijos de outros. Cada um entra com aquilo que tem no mundo dos negócios. Assim é também no dos sentimentos. Cada um beija com o sentimento que tem e quando os sentimentos são, não iguais, mas partes um do outro, completam-se. E as línguas tocam-se calmamente, os lábios personificam a coisa amada e o ser do amor.
Afastaram-se lentamente. Abriram cada um os olhos. Ele viu o rosto da menina e afagou-lhe a pela lisa com a mão descendo do cabelo, a mesma que a puxara e iniciara aquele momento. Pensou e clamou aos céus para que nunca lhe deixassem esquecer aquilo. Ela abriu os olhos e não viu. Olhava para dentro de si perscrutando em seu interior o que haveria ali que ela não havia visto antes. Certa forma, ambos arrependeram-se pelo tempo perdido em discussões passadas e, internamente, lamentaram-se sozinhos pelo destino dos dois.
Hum-hum, mas você ainda não respondeu, Ah meu Deus, valei-me. Ele olhou o queixo da menina e riram gostosamente da conversa que insistia em falhar. Percebendo de algum modo que não conseguiria evitar uma resposta por muito mais tempo começou novamente a tentar responder sem dar resposta, Já disse diversas vezes que acredito serem as literaturas a área que mais se assemelha a você, mas creio que faria uma boa enfermeira, Sabe que minha mãe fora enfermeira, Sim, falou-me uma vez, Então lembra-te do que digo, Algumas vezes, pois são tantas, Dizes que falo demais assim, na minha cara, Não digo que falas demais, digo que falas e isso é bom, Mas não poderia eu ser médica ao invés de enfermeira, assim poderia ser mais, Verdade, sempre pensei que enfermeiras são pessoas que não conseguiram passar para a faculdade de medicina, Nem sempre.
Como de costume, apesar dele ainda não conseguir prever estes momentos, sendo justamente essa imprevisibilidade que os fazem bonitos, ela desceu seu rosto rapidamente ao encontro da boca do rapaz e deixou que seus lábios tocassem os dele. Ergueu-se novamente, como que orgulhosa pelo beijo tomado e dado de volta. Ele, que antes falava, parara e ficara assim, atônito, apenas encarando-a e ela a ele. Ambos perdidos nos pensamentos de cada um, tentando adivinhar o que o outro pensara sobre aquele momento e sobre tudo aquilo. Ambos sem obter qualquer êxito.
O sol fora se pondo. Passaram boa parte da tarde ali naquela conversa. Se pudesse eu escolher um momento sublime escolheria sempre esses em que o mundo não se modifica. A sombra que o prédio lançava agora era muito maior que os cinco metros apenas e já ultrapassara o pátio que formava o play. Algumas crianças haviam chegado ali para aproveitar o tempo curto de suas férias de verão, mas era como se ali não estivessem. Georgina e nosso rapaz não as percebiam e nem as perceberiam.
Ela olhou para o relógio. Suavemente empurrou a cabeça do rapaz para cima como que lhe convidando a erguer-se. Tinham que voltar para casa. Ela tinha seus compromissos. Ainda se veriam aquela noite, para a qual faltava menos de uma hora, mas ela ainda tinha muito o que fazer.
Ergueu-se e cruzou os braços sobre o casaco preto que vestia. Mais uma vez aproximou seu rosto do da menina. Trocaram mais alguns beijos. Se ela tivesse percebido as crianças no play não teria aceitado tais carinhos, É melhor que as crianças percam-se em sua inocência enquanto é tempo, dizia. Beijos eram inocentes. Mas sentimentos não. E o beijo que beijavam já não era beijo apenas.
Um comentário:
Me lembro deste capítulo, eu li na época, que fofo. ;-)
Ela sabe que é para ela?
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