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quarta-feira, 20 de junho de 2007

Da Amargura

A criança brinca no quintal de terra batida. As roupas da moda, o cabelo com gel, mesmo que pequena fosse. E os cães giram ao seu redor e se divertem com o novo amigo.

Mas é que brincadeira termina e as necessidades fisiológicas fazem-se presentes. Aí um dos cães pára, sai da roda de brincadeira, faz seu côco ali bem perto. Paciente, cheira a bosta recém-saída de si e, muito sorrateiramente, dá uma lambida na merda.

- Écouti! Blrrr! Eca! Aiiiiiiiiiiiii! Que nojo! - diz a criança, passando a manga da camisa na língua que acabara de pôr para fora, como que para certificar-se de que sua língua estava mais limpa que a do cão.

De longe, os tios a observam. Sempre moraram ali naquela região. Joaquina não quis acompanhar a irmã mais nova quando esta foi viver na cidade grande. Hoje, Joana, a irmã, tendo conseguido completar o segundo grau, é auxiliar de escritório numa empresa grande e casada com um desses advogados de casos pequenos; Joaquina, esposa de Cláudio, mora nesse sitiozinho no interior do Rio de Janeiro.

- Criança da cidade é sempre assim: estranha!
- Parece até que nunca viu merda de bicho sair assim. - disse Cláudio, o esposo.
- E cê vê? É 'minino'. Se fosse garota ainda ia de ser mais afrescalhada.
- Mulher, mulher. Olha como cê fala do seu sobrinho.
- Mas é claro que também eu não podia esperar coisa muito diferente de Joana. Mamãe sempre mimou aquela uma.
- Você sabe que eu até acho que ela sofreu bastante?
- E tu sabe de alguma coisa, hômi?
- Ah! Mas que que tu tem com tua irmã que fica nessa implicância?! O minino é saudável, vê! Só não sabe lidar com as coisa aqui da roça.
- E aqui lá é roça?! Tamo a uns quinze minutos da cidade...
- Mas a cidade aqui não é a cidade de lá, Quina. Esse moleque tá acostumado com aquelas coisas de cinema, teatro, video-game e essas coisas que enrolam a língua de falar, tipo aquilo que tua irmã mandou no seu aniversário... Qual o nome daquilo mesmo? "Romi...", "Romã..."
- "Rômititer", Cláudio! Coisa mais inútil! Um bando de caixa de som! Aquilo num serve nem pros bailão no salão da comunidade.
- Pois é, mas foi de bom grado. Tá vendo o que eu digo? Você tem implicância com sua irmã. Sem motivo, que ela gosta de você.
- Gosta! Manda esse moleque pra cá que é pra poder aproveitar o tempo melhor nas férias! Quase nem aparece aqui, só pra buscar e deixar o menino!
- Ora! Mas ela sempre se preocupa, escreve, deixa recado pelo telefone pra gente lá na venda da cidade...
- E faz muito? Faz é pouco! (irritada) Cláudio, você teve irmãos?
- Cê sabe muito bem que não. P... (interrompido)
- Pois é bem por isso que pensa que ela gosta de mim. Não entende. E nem vai mais entender disso nesta vida, que o tempo já passou.
- Aff! Que tinhosa! Além de implicante, é tinhosa!
- (Não dando ouvidos ao que o marido disse)... que o tempo já passou...
- Acorda, Quina!
- Vejo Pedro brincando na areia. Estou acordada... Mas é que...
- É que...?
- É que penso: o tempo já passou pra nós, Cláudio.
- Que passou nada! Ainda temos muito pela frente.
- Mas não temos um Pedro.
- Sim, (com a voz triste) mas você bem sabe que nunca teríamos um Pedro ou qualquer outro nome que seja.
- Pois é. Quando eu e Joana éramos pequenas, brigávamos para ver quem teria filhos primeiro e aí está o moleque. Ela se casou e logo teve Pedro. Já eu... Nós... Bem, há o seu problema...
- Sim, há. Mas veja o menino, que graça! Grande. E com nojo dos cães ainda (risos). Mas com o tempo se acostuma. O tempo aqui na roça é outro!
- Acostuma nada! Moleque bobo...

Um comentário:

Lili disse...

É seu?
Muito bom.