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quinta-feira, 21 de junho de 2007

Da culpa

A fila era interminável. Dora, com os olhos ainda vermelhos por carpir-se, ao lado do corpo do pai falecido. Infarto do miocárdio, algumas veias entupidas. E o fumo. O maldito cigarro que ele não conseguira largar por toda a vida. A fila era interminável:

- Meus pêsames!
- Meus pêsames, querida!
- Oh! Coitada! Tão nova e sem pai! Me dê cá um abraço - disse a tia do interior.
- Meus pêsames...
- (levantando o rosto para ver quem lhe falava) Você?... O que você faz aqui? - disse Dora.
- Vim cumpriment...
- Tirem esse homem daqui! Por favor, alguém - gritava a filha do falecido.
- Calma minha querida. Ele cuidou de seu pai. - falou de modo tranquilo a vizinha da família, que acompanhara todo o caso.
- Pois como queira, senhorita. Retiro-me.
- Não! Pare! Melhor assim! Venha ver o que fez! (Aponta para o caixão aberto) Vês? Esse homem, meu pai! Você tirara-lhe a vida!
- Senhorita, compreendo sua dor. Também perdi meu pai um dia... Irei retirar-me para que se tranquilize...
- Pois foge agora, não? Não consegue encarar os frutos de sua incompetência?!
- Está nervosa, cara. Está alterada. É melhor que eu me retire. Sabe onde atendo. Apareça lá para conversarmos, caso queira.
- Eu?! Aparecer?! (risos nervosos) Pois só pode estar brincando! Não quero nunca pisar naquela sala novamente! Me faria mal só de ver-te. Aliás, (chamando a atenção de todos ao redor e falando alto e pausadamente) este homem, senhores, foi ele quem matou meu pai. Sim, ele. Médico. Cardiologista, que médicos adoram títulos. Não procurem nunca este homem, se querem o bem.
- Senhorita, (falando baixo) está me difamando. Mas compreendo sua reação...
- De que adianta compreender?!! DE QUE ADIANTA, MERDA?!!! Doutor, como seu pai morreu?
- Meu pai morreu de câncer no esôfago quando eu tinha 23 anos.
- O meu morreu de infarto! E sabe porque? Por sua incompetência! Diga, doutor, na frente de todos: quantas vezes lhe disse que meu pai deveria sair do hospital? Que aquele ambiente só o faria mal, que estava piorando mais a cada dia?
- Algumas vezes, senhorita.
- Fale mais alto! - grita Dora - Quero que todos ouçam!
- (fazendo força para ser ouvido) Algumas vezes, senhorita.
- E quantas vezes lhe disse que papai não gostava daqueles remédios?
- É que remédios não são de gostar ou não gostar. São apenas de tomar e...
- Pois é assim que pensa, doutor? É assim que vê as pessoas? Como puras coisas a quem o senhor pode mandar e desmandar? Pois não são assim! Eu, assim como você, tenho vontades!
- Sim, mas a vontade maior deve ser a de que se viva e seu pai sabia dos riscos.
- SIm, meu pai sabia dos riscos. Eu sabia dos riscos. Aliás, o que o senhor faz muito bem é repetir quais são os riscos! E a operação! Sim, o senhor opera bem, mas não pensa nas consequências para cada um depois de tudo.
- Como?
- Vê? Nem ao menos sabe do que se trata!
- É que está nervosa. O que diz não está fazendo muito sentido para mim... Quer mesmo conversar sobre isso agora?
- Antes tarde do que nunca! E já é tarde que o corpo do meu pai se vai daqui a quinze minutos! Papai chegou para você apenas com dores no peito e se vai. Ai, que desmaio! Acudam!

Desmaia. Doutor Eduardo corre ao carro. Medidor de pressão. Apenas um pouco acima do normal.

Minutos depois, Dora recobra o sentido, já deitada em uma maca no posto de saúde próximo ao cemitério. Doutor Eduardo a acompanhava. Todos os familiares ficaram no local para o enterro do falecido, que deveria consumar-se.

- Onde estamos?
- No posto de saúde, senhorita. A trouxe para cá depois do desmaio. Sente-se bem?
- Melhor. Ainda um pouco tonta. Mas não me esqueço do que me trouxe aqui... Discutíamos.
- Sim, me falava de minha culpa...
- Certo, doutor. Quero apenas que carregue o fardo que lhe cabe. Não é justo que os pecadores sigam a vida incólumes.
- Ambos sabemos que não havia erros, certo?
- Não. Ambos sabemos quem errou!
- Senhorita, ainda está alterada. Descanse um bocado. Vou buscar algum enfermeiro que possa nos ajudar com algum ansiolítico.
- Não aguenta, não é? Quer que me cale! Pois não me calo!
- Não quero que se cale! Estás louca?! Pois bem! Tenho aguentado e tentado ser compreensivo. Mas então, que conversemos, já que isso é importante para você. Houve um culpado? Sim, certamente.
- Bom que reconheces!
- Senhorita, seu pai chegou para mim com dores no peito. Lembra-se o que recomendei?
- Sim. O senhor receitou dois remédios. Lhe falei como papai destestava remédios. Desde que mamãe falecera que ele mora comigo e com meus filhos. Sabíamos muito bem como era papai e o senhor... O senhor nem queria nos ouvir!
- Há coisas em que a escuta não faz diferença! Não seja infantil! Remédio não é questão de gosto! Há remédios muito gostosos por aí e nem por isso podemos tomá-los sempre. E há os ruins e não podemos evitá-los sempre.
- E não evitamos, mesmo sabendo como era doloroso para papai.
- Mais alguma recomendação fiz naquele dia?
- Aquela dieta... Sem gorduras, muitas verduras, nenhuma bebida e o cigarro.
- Certo. Disso o que fizera?
- Tudo, apesar de papai não gostar.
- Tudo, senhorita? - disse, enérgico.

Dora calou-se. Uma lágrima.

Doutor Eduardo afasta-se lentamente da maca. Vemos apenas o carro saindo do estacionamento. É ele que vai embora. Voltamos a ver Dora na maca. Chora compulsivamente.

2 comentários:

Anônimo disse...

Esse tem a cara do filme "Flores partidas"...se não assitiu, assista!

Rodolfo Souza disse...

ANônimo rs
Ainda não vi. Tem passado na net. Quero mt ver.Uma vez vi o trailler e adorei, mas ainda não consegui ver.
Vou tentaaaar! bjs