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quinta-feira, 28 de junho de 2007

O contador e a bem-polida

Porque sempre lhe diziam "Vai entender quando for pai", decidiu que deixaria a paternidade como um desejo escondido, como um quadro estranho para o qual a gente não olha.

É que estava cansado mesmo era de entender. As compreensões haviam sido sua vida. E toda a culpa. E todo o medo. O temor já não lhe era bem quisto. Sim, o fora um dia, quando o desejo da paternidade era aceito junto ao medo de que iria entender tudo um dia, por exemplo. Ou como quando pensava nos desejos todos que lhe habitavam e temia-os como teme a criança a espera de seu sorvete em um passeio de domingo: apenas com mais desejo.

Por sorte, escolhera trabalhar com números. Não há o que temer na previsibilidade dos cálculos, apenas que estes estejam errados. Mas assim basta que se pegue a máquina de calcular, sagrada invenção, e se reconte e recalcule tudo novamente. É que não era possível, isso nunca!, viver as coisas mais uma vez para usar a compreensão que tivera delas na tal segunda oportunidade. Viver era de supetão. E ele vivia como se pisasse em ovos.

Mas nem tudo pode-se evitar. Hoje, por exemplo, está aí. Saiu de casa às sete e meia para o trabalho. Pegou o metropolitano lotado como de costume. A camisa, nem notara, ia suja do café da manhã tomado às pressas na bancada da cozinha. Regou antes as plantas que era certo que se não o fizesse, morreriam todas até o final do dia, já que era tempo de calor e a cidade era quente a qualquer tempo.

Foi na saída.

- Desculpe-me, senhorita - disse ele, já ajoelhado recolhendo do chão cada papel que fizera cair ao esbarrar na moça que ia entrando na composição ao passo que ele saía.
- Não há problemas... - respondeu ela, com aquele ar de resignada que só mulheres que carregam papéis têm. "Deve ser a esposa de algum advogado levando os papéis ao escritório a pedido do marido adoentado", pensou ele, mas disse:
- Sim, perdão mais uma vez. Aqui estão seus papéis. Há algo mais que possa fazer para perdoar-me? - "Não, não, não! Diga que não, por favor. Já me atraso para o trabalho!", pensou.
- Poderia esperar comigo a outra composição, então, que assim não me sinto só - respondeu ela com um olhar matreiro. Talvez quisesse que ele fosse um pouco mais atrevido no que dizia. Talvez apenas quisesse confundí-lo como essas mulheres que gostam de apenas seduzir. Talvez nada quisesse, era apenas uma moça educada e de boa família.
- Pois não.

O silêncio era incômodo. Não havia como voltar atrás e simplesmente não esbarrar na senhora. Ou senhorita?

- Qual o nome da senhora? - perguntou.
- Ah, senhorita... - corrigiu-o prontamente. Juliana. E o seu?
- Orácio. Orácio Guerra. Está indo trabalhar, senhorita?
- Não, apenas levando uns papéis para meu pai. Já é um senhor... E hoje não tenho muito o que fazer... O senhor trabalha aqui pelo Centro?
- Ah, sim. Trabalho. Sou contador naquela agência da esquina da Sete de Setembro com a Travessa do Ouvidor.

Outra vez o mesmo silêncio. Pois bem. Não havia como evitar. Agora já compreendia: não se deve sair sem cálculos de nenhuma composição. Há sempre a possibilidade de que tudo se desorganize. E aquelas coxas... Como eram gostosas. Mas há sempre a possibilidade de que tudo se desorganize... E se a convidasse para sair? Para almoçar, talvez. Mas não! Melhor não correr desses riscos, que não é de mais valia compreender uma nova situação, posto que as antigas compreensões nunca lhe serviram de nada, vide hoje: compreendera, repito, qual a melhor maneira de sair do metropolitano, mas já não basta compreender que não pode evitar a situação por que passa agora. E há sempre o risco da paternidade. O desejo apertado em seu peito. O desejo recalcado de viver a paternidade em sua plenitude e não apenas cuidando de plantas pelas manhãs. Melhor não convidá-la que os cálculos se perderiam caso tivesse que ter hora para parar e encontrar com a moça, já que poderia ainda estar no meio de um longo raciocínio aritmético.

- Almoça por aqui por perto?
- A senhora... Senhorita, perdão, está indo longe? Ia pegando a composição... - "Sim, boa saída!", pensou.
- Estou apenas levando os papéis para papai, como disse. Anda com a memória ruim. Esqueceu estas coisas hoje pela manhã quando saía de casa. Mas moro há duas quadras. - olhou-o nos olhos. Sim, sei o que pensa: não é bom morar no Centro. Mas é que lá em casa somos só os dois desde que mamãe morreu e... Bem, fica mais barato morar aqui pela região.
- Compreendo - Não! A maldita compreensão novamente! E de que adianta! A sensação de que estava em perigo se acentuava em seu peito. Queria correr da própria resposta dada. Precisava sim tomar aquelas aulas de etiqueta que se propagavam pelos corredores do escritório. Talvez já tivesse conseguido sair polidamente desta situação caso tivesse tido os ensinamentos corretos para isso.
- Pois então... O senhor almoça por aqui?
- Ah... Sim... Eu... Bem, trabalho por aqui, não é? Não daria tempo de ir em casa.

As palavras podem ser ditas sempre e de qualquer maneira. Estas foram ditas rudemente e tomaram um certo ar de repúdio que a jovem senhorita logo compreendera. Nervoso, Orácio ajeitou a gravata, afrouxando-a um pouco, e enxugou a testa com um lenço. É que nesses momentos de convívio não havia como voltar atrás com a máquina de calcular e ressomar tudo, recalcular e aparar as possíveis arestas, acertando os resultados.

- Desculpe-me por ter soado rude - disse ele ao ver a cara de espanto da jovem senhorita.
- Qual nada! Imagino que estejas atrasado... Pode partir se te aprazes a idéia - respondeu serenamente. Sim, devia sim ser moça de boa família. Ao menos, boa educação, que moças capazes de compreender o medo de um homem e respeitá-lo apesar de tudo devem ser bem educadas.
- Pois que tens razão. Se não há problemas, parto agora.
- Sim. Um bom dia, senhor. E obrigada pela ajuda.
- Um bom dia, senhorinha.

Aliviado, partiu para o trabalho. Havia alguns cálculos do dia anterior para refazer.

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