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segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Amor, saudade, ciúme (continuação I)

"O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de irvendo tudo.
Mesmo a ausência dela é um coisa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualuqer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio"
Alberto Caeiro- Heterônimo de Fernando Pessoa


Pela janela vejo um moleque olhando para uma árvore pela tela de seu celular. Não olha com os olhos. Os olhos olham a tela do celular. E meus olhos vêem através da janela. Todos os contatos do mundo são atrapalhados, nada é como é, nada é puro. Queria viver a pureza das coisas, mas estas nunca me são dadas. Ao lado do moleque, o velhote, que, este sim, olha a árvore em sua pureza, também não vê a árvore, mas vê o orgulho que tem do neto que, pequeno, já sabe utilizar a câmera fotográfica do celular comprado em 12 vezes sem juros numa dessas grandes lojas de departamento, na cidade grande.

Moram no meio do nada, estes dois. Ao menos, trabalham no meio do nada. Cuidam dessa barraquita de mangas na beira da estrada. Não sei que estrada. Foi tudo apenas um ímpeto e não posso ainda dizer que me arrependo. O arrependimento talvez venha mais tarde, depois que todos os atos tiverem se consumado. Mas quando poderei dizer que terminei?

Parto por essa estrada. O meu caderno me valhe. Precisava escrever para organizar as idéias que, danaditas, se desorganizam sempre novamente. Foi num momento de iluminação que me dei conta: "é preciso fazer algo" e parti. As estrelas e o céu, a noite, foram minhas testemunhas. Gosto de ficar da janela a noite deixando os pensamentos terem paz. E de que me serve a paz do pensamento? Neste ônibus, busco, no ponto de chegada, a minha paz.

Olho a mochila na poltrona ao meu lado. A velhota na poltrona 47 já adormeceu. Uma velha escarrenta, de cara murcha e feições duras. Não quero envelhecer com marcas do meu sofrimento. A velhice não é redenção. A velhice é a marca da vida e os velhos, como uma grande tela em que a vida segue impressa. Tenho asco de olhar esta tela tão... Funesta. Eles fedem a mortos.

Mas nem o cheiro de morte que vem da poltrona 47, nem o molecote com o celular a beira da estrada e seu avô, me tiram da cabeça a dor e a idéia: a esta hora, ele deita-se com outro.

- Pois vim ver-te - direi.
- Vem cá, endoideceu? - ele irá responder.
- Quem é este cara? - perguntará o outro.

E a cena toda vai começar assim. Um toque de campainha, a porta se abre para mim, subo as escadas do prédio lentamente, porque a ansiedade não caberá no elevador, e entro no apartamento e a conversa se inicia. Se inicia e prossegue com volteamento lógicos e trocas de farpas. Falarei sobre o amor e ele, sobre a abnegação. O outro, gritando que fora traído a todo o tempo. Ele tentando explicar-se. Eu vendo tudo em chamas e sentindo o meu próprio peito esbrasear-se.

- Não vê?!!! Você não deveria ter vindo! - gritará ele comigo.
- Destrui seu mundo cor de rosa? - responderei ironicamente - Querido, não era esta a intenção. Queria apenas resolver tudo. Tenho raiva deste que te acompanha! É com ele que me trai.
- Não! Não invertam o jogo! Eu sou o grande traído! - dirá o outro. - Como puderam?! Como chegaram a isso?! E eu, sem nem ao menos perceber!
- Querido...
- Como assim "Querido"? - direi eu - Quero que decida!
- Decido por ele!
- Sempre abrindo mão do que realmente deseja - dirá o outro.
- Pára! Como assim? Não me quer? - dirá ele.
- Quero, mas é claro que você não me deseja mais como antes. É este que você quer! Este que invadiu nosso quarto e nossa vida - e aponta para mim.

Abrirei então a mochila. Pegarei o canivete... Não... O canivete já não será mais necessário quando eu tiver já morrido por dentro.

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