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terça-feira, 4 de setembro de 2007

Bernardo e o Vazio

O sentimento de vazio era ainda grande. Como não sentir-se esvaziado em situações como essa? A dor que sentia devia-se mais, porém, à solidão que ao vazio que sentia. Mas não seria o vazio fruto da solidão? Se sim, podemos dizer que o vazio tinha parte nessa dor.

Júlia era uma mulher bonita. Cabelos compridos até quase os quadris, escorridos e em tom amarronzado desses produzidos por grandes empresas de cosméticos. Mesmo não lhe sendo natural, a cor dos cabelos lhe caia muito bem e parecia ter nascido assim já. Os olhos castanho claros, a depender da incidência solar, mostravam-se verdes. Melhor mesmo era quando eram da cor que eram de fato, pois eram realçados pela cor anti-naturalista dos fios grossos e pesados que desciam pelo seu corpo.

A pele branca e salpicada com algumas sardas na altura dos ombros dava um tom de experiência de vida unida à vontade de viver. Há quem pense que experiências de vida diminuem a vontade de viver justamente pela sensação do já-vivido, mas esse não era o caso de Júlia. Sentia-se a vida, seu cheiro, exalando por cada um dos poros daquela mulher.

Fora isso que o fascinara. Bernardo vendo Júlia pela primeira vez teve certeza de nada ter vivido em sua vida. Ela entrar na livraria e partira direto para a seção de Filosofia. Como uma mulher bonita poderia interessar-se por tais assuntos, questionu-se Bernardo, sem nem parar para pensar como estava sendo paradigmático. Sim, gostaria de aproximar-se, mas não poderia. Era tímido demais para isso. De onde estava, detrás da prateleira de livros de Psicologia, ele poderia olhá-la por mais alguns minutos e isso já seria o suficiente.

Isso poderia ter sido suficiente não fosse a angústia rasgando e queimando seu peito. Alguma coisa naquela mulher o atraía. O olhar decidido de Júlia percorrendo a prateleira o encantava cada vez mais. Viu que ela agora puxava um livro. Estava de frente para ela, bem na direção em que ela estava. Não poderia ver qual era o livro e nem ter certeza se ela, de fato, retirara algum da prateleira, mas pelo que viam seus olhos, imaginava que sim.

Enregelou-se por dentro quando o olhar de Júlia subira dos livros e encontrara os dele. Desceu o olhar e tentou agir como se estivesse olhando para o nada ao invés de como se olhasse para ela.

Júlia não havia notado aquele homem ali na prateleira de Psicologia. Não até que visse que ele a olhava. Não se interessara por ele de primeira, embora mais tarde viesse a dizer que sim: a idéia do amor a primeira vista ainda encanta os humanos que, num mundo de "viver sem fronteiras" em que faz-se "mais que o possível", tudo deve ser vivido como se fosse capa de uma revista de moda. Seria mais "primeiro-capesco" dizer que seu coração palpitara por ele desde que o vira desviando sorrateiramente o olhar.

Júlia, mais madura e experimentada que Bernardo nas coisas do amor, decidira sentar-se no café da Livraria, uma vez que Se ele quiser, virá me encontrar, pensou ela.

Bernardo seguiu-a minutos depois. Tomou o cuidado de sentar-se numa mesa bem em frente àquela em que a mulher se sentara. Trocaram olhares e, dias depois, confidências ao pé do ouvido. Tudo fora muito rápido.

O casamento fora como Bernardo sempre quisera: apenas foram morar juntos. O apartamento de dois quartos enchera-se com a vida de Júlia e com os objetos dela. Dera seu tom à casa. Ajeitara cada canto a sua maneira.

Bernardo já não tinha nada que fosse só seu. Júlia tinha seu sofá, seu computador e seus livros. Bernardo já não tinha sua casa apenas, tinha a casa deles dois. Júlia tinha a casa dela e era com muito orgulho que falava isso para as amigas do trabalho. Bernardo não sentia-se só por saber que Júlia estaria ali e Júlia sentia-se só a cada vez que Bernardo não aceitava ir ao shopping no domingo à tarde.
Cansada de viver sozinha, Júlia decidiu partir um dia. Mudou-se de uma hora pra outra levando sofá, e computador, e livros e tudo aquilo que era seu. Bernardo, em casa, sentia-se vazio: já não tinha mais com quem dividir sua vida. Júlia, noutra casa, sentia-se completa: já não tinha mais que dividir-se em dois.

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