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terça-feira, 4 de setembro de 2007

Não sabia mais o que fazer.

Não sabia mais o que fazer. Sentia como se a vida estivesse perdendo o rumo. Olhava para os fios nos postes. Altos. Lá de cima, estirados, esticados até o último centímetro. Iam em linha reta até o poste seguinte e ao seguinte, e ao seguinte... Iam em linha reta. Queria que sua vida fosse como a do fio de luz entre os postes altos da cidade.
Passava em frente ao local onde a conhecera. O café amarelado próximo ao cinema. De fato, era inacreditável pensar que ela o vira dentro da agência bancária onde recebia seu pagamento, o procurara na “Clowns and Parties”, agência de festas infantis em que trabalha, e não o encontrara, e, mais inacreditável ainda, é o acaso que fez com que ambos se esbarrassem naquela noite fria, em que todas as pessoas da cidade parecem sair das ruas e enfurnarem-se ou em casa ou em café em tons amarelados.
Passa agora em frente à vidraça da entrada do café. Sua vida, sem rumo, o guiava por caminhos desconhecidos por ambos: por ele, nosso rapaz, e por ela, vida dele.
Resumiria-se como solitário. Era um rapaz solitário.
Trabalhava onde já sabemos. Tinha a profissão que saberemos. Ainda não sabemos nada, porém, sobre essa que, conforme ele pensa agora, o guia: sua vida. Perdi-me em explicar o que se passa agora e esqueci-me de falar do passado de nosso personagem principal e sem nome.
É engraçado pensar que um personagem principal não tenha nome. Todo livro que se pretende livro tem que ter no mínimo dois personagens: o principal, mocinho, aquele com qual o público, em geral, irá se identificar, e o segundo, o rival, aquele do qual o público, na maioria das vezes, terá raiva, aversão e medo. O primeiro, coitado, sempre sofre com tudo e todos. No entanto, em um mundo maniqueísta, sempre vence no final. Antes, porém, sofre o coitado do rapaz (ou rapariga). Sofre. E sofre mais uma vez. Triunfa no fim, mas sofre. E é por isso, aliás, que nos identificamos com ele: temos essa tendência egocêntrica de achar que só nós sofremos no mundo... E somos aliviados no final: se ele triunfou, também hei de triunfar!
Enfim, em nosso caso, isso não se aplica. Saímos em frente, uma vez que, além do mocinho e do bandido, temos Georgina. Na verdade, saímos em frente já por não termos mocinho e bandido. Como no mundo real, somos todos vítimas e assassinos de todos e de nós mesmos e assim são nossos personagens. Ganhamos ainda alguns outros marionetes que ajudam a dar colorido à narrativa: a senhora na fila do banco, a mulher na rua e seu filho que acaba de fazer 18 anos, a atendente da “Clowns and Parties”, aqueles que estão caminhando nas ruas... Ufa! Voltemos ao que contava!
Nosso rapaz se descreveria como solitário. Quando criança, morava com a mãe e pai, apenas. Filho único. Pensa que se tivesse tido um irmão ou irmã, teria mais força perante a vida e seria menos solitário. Leu, outrora, que “se” é a palavra das impossibilidades, por isso toda vez que lhe vem essa idéia em mente, a repudia quase que automaticamente. É filho único e esse é o fato.
Gostava muito de brincar com bonecos dos personagens de desenhos animados que assistia no canal 4 aos sábados de manhã. Escolhia sempre o cavaleiro destemido, o matador de dragões, o lutador imbatível... Qualquer boneco que compensasse alucinadamente aquilo que ele era em relação àquilo que ele queria ser.
Certa vez, aos sete anos, fez amizade com o menino que sentava na carteira atrás da sua na escolinha. Tomé. E foram amigos até o dia em que Tomé mudou-se de cidade com a família. A mãe de nosso rapaz não aprovava muito a amizade: Tomé era por demais desorganizado e, quando ia brincar com seu filho em sua casa, desarrumava todo o quarto de brinquedos. Não gostava que seu filho brincasse na rua. Não gostava que seu filho bagunçasse a casa enquanto brincava. Podemos concluir que não se importava que o menino fosse só. Importava-se mais com a cor branca do sofá que não poderia encardir-se até que pudesse estofá-lo novamente no ano seguinte.
Aos 10 anos e meio, nosso rapaz ganhou um papagaio de presente de sua tia. O mais interessante sobre o bicho, ele pensava, era quer tinha alguém com quem conversar. Bastava que ensinasse o bicho a responder a certos sinais. Foi quando conseguiu fazer com que Louro dissesse “Sim” quando ele, o rapaz, piscasse os dois olhos por três vezes seguidas e “Não” quando ele estalasse a língua. As conversas iam sempre animadas até o horário de fazer o dever, Louro, você gosta de mim (três breves piscadelas), Sim, E de mamãe quando ela implica com meu sapato sujo (um estalo), Não, Quer ser meu amigo pra sempre, Sim. E assim por diante.
Seu pai era sempre muito ocupado. Quase nunca brincava com o filho. Talvez fosse por isso que não sentiu a morte do mesmo como uma perda significativa. Quando menino, já o sabemos, juntou dinheiro para dar ao pai uma poltrona reclinável, tinha certeza de que essa poltrona era o preço que o pai estipulara para sua atenção. Bastaria a poltrona e seriam amigos. Já sabemos a resposta do pai ao ver o presente. Podemos imaginar o resultado disso tudo na relação entre os dois. Desistira de conquistar o pai e provavelmente por isso a morte do mesmo não fizera grande diferença.
Poderia dizer até mesmo que a falta de nome do rapaz deve-se a ele mesmo. É tão comum que se perde em si e no mundo e tornou-se, a meus olhos, um simples rapaz. É solitário como todos, pobre de espírito como muitos, sente-se aquele que tem o privilégio sobre os sofrimentos e mazelas humanas como vários. É mais um dentre muitos, diferindo-se do todo apenas pela particularidade de sua história (oras, mas não é assim com todo mundo?). Temos todos coisas em comum, como essa solidão que aperta o peito a cada nova manhã, mesmo naquelas em que nos sentimos acompanhados por alguém. Seria essa solidão constitutiva?
Não é interessante, leitor (e creio que você há de concordar comigo), longos relatos históricos. Se se tratasse de uma pessoa, bastaria que fizessem uma consulta ao histórico escolar dele, sua ficha criminal. Seu histórico familiar facilmente seria levantado através dos sobrenomes. Em algum cartório obteriam seus dados civis. Na internet poderiam encontrar cadastros em lojas, sites de relacionamento etc. Entretanto, é um objeto esse rapaz e sua história nada tem de real a não ser o relato que faço dela. Aliás, nem sequer o relato que faço dela é real. Tomemos por real apenas o papel que seguram agora ao lerem esta página. Sim, esta é a realidade da vida de nosso rapaz. Não perderei, portanto, mais tempo descrevendo sua história-passada. O que nela for importante terá reflexos em sua vida presente e é esta que quero relatar.
Os postes lhe davam a exata impressão de como sua vida estava agora, depois de Georgina. Enquanto falava sobre sua vida, nosso rapaz, caminhando já saiu da fachada do café onde encontrou Georgina duas semanas atrás. Apesar de já não mais em frente ao lugar, era lá dentro que sua mente vagava.
Viu uma menina estranhamente familiar entrando. Ela o vira desde quando estava na rua. Aliás, fora por isso que ela decidira entrar ali. Nunca gostara muito de cafés, mas para ter a oportunidade de vê-lo novamente perderia seu tempo e dinheiro, ainda mais porque assim que o vira na fila do banco encantara-se com o rapaz que, para ela, a olhara no fundo dos olhos e, por conseguinte, dentro dela mesma, e vira seu “eu” mais profundo. Pensava como aquele rapaz a desnudara com os olhos.
Foi buscando esse rapaz que ela pegou a conta de telefone caída no chão. Foi também pensando nele que ela ligara para o número que constava na conta. Combinara com a mulher que a atendeu dizendo “Clowns and Parties, Gílcia, bom dia, em que posso ajudar?”, que iria no dia seguinte no endereço informado levar os papéis. Esperava encontrar aquele homem lá. Vê-lo. Já era o bastante. Vê-lo, ao menos.
Todavia, chegara na agência, entregara o envelope em que colocara os papéis a Gílcia e saiu com a certeza de que nunca mais teria nenhuma oportunidade de vê-lo, muito menos de tê-lo, aquele rapaz de cabelos negros e olhos castanhos que lhe desnudara a alma.
Ele estava dentro do café e foi por isso que ela decidiu tomar um capuccino com creme.
Ele olhou-a profundamente. Tinha e impressão de tê-la visto já alguma vez. Havia sido um dia cansativo. Gostava de sentar-se na mesa ao fundo do café sempre que tinha um dia cansativo. Tinha a sua frente uma planilha de controle com as datas críticas na agência. Maldito o dia em que aceitei ser sócio daquele lugar, pensou, melhor era quando apenas ia fazer bico quando Richardson convidava.
A raiva que deixou extravasar em pensamento, expressou-se deixando com que a xícara de café caísse em cima de todos os papéis. Foi buscar com os olhos o ponto da mesa em que os guardanapos estavam. Seus olhos, porém, prenderam-se em outra coisa. O café agora gotejava no chão. Não conseguia tirar os olhos da menina. Viu uma menina estranhamente familiar entrando...
Essa imagem se desfez agora em sua mente e voltou para o momento presente. Não podia acreditar, andando agora nas ruas, duas semanas após o dia no café, que tal garota não entrara apenas naquele lugar. Viera como o café, destruidor de papéis, e destruiu todos os planos que tinha.
Já não importavam planos. Já não importavam datas. Perdera os caminhos, os fios, as linhas, os rumos. Perdeu o prumo como um fio num poste não pode perder. Já não invejava, no entanto, os fios. Não... Revendo o que até ali vivera, era como se tivesse enchido de certezas novamente. Era comum vacilar. Muitas vezes vacilava em seus propósitos. Saíra de casa vacilante. Desespero é um nome que podemos dar a esse vacilo: como lidar com tantas mudanças? Mas agora percebia que já não saberia aceitar que as mudanças mudassem novamente e que tudo voltasse a ser como era. Não aceitaria deixar que aquela menina, Georgina, saísse de sua vida.
Já sabia o que fazer. Não sentia como se a vida estivesse perdendo o rumo. Olhando para os fios nos postes e vendo novamente que iam em linha reta até o poste seguinte e ao seguinte, e ao seguinte, já não queria que sua vida fosse como a desses fios estirados. Já sabia o que fazer: iria para o prédio em que ela morava. Queria vê-la e tê-la para si por minutos que fossem. De onde estou, só consigo ver agora o ritmo mais apressado que impôs a si e a seus passos quando dobrava a esquina.

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