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terça-feira, 4 de setembro de 2007

Evidências Apodíticas

O mundo já não fazia sentido. O peso de seu corpo sobre o colchão duro. O ventilador girava. O vento movia-lhe os fios de cabelo levantados. Já não havia ali, porém, nem cama, nem colchão, nem ventilador, nem vento, nem fios de cabelo: o mundo já não fazia sentido.
Não era vítima de nenhuma síndrome em que os sentidos se desfazem. Estava apenas deitado e percebeu como, nos últimos dias, já não sentia. Não era coisa momentânea, como o leitor pode ter pensado: era coisa de dias, mas que era apenas percebida agora por ele: não sentia.
Já não é a primeira vez que falo dos anestésicos. Essa insígnia dou àqueles que juram nada sentir quando tudo sentem. O mundo a estes se apresenta e sentem que nada sentem. Mas sentir que não se sente, já perguntei-os, leitores, uma vez, não seria também sentir? E (esta questão, garanto, é nova) será que não sentem?
Ao menos podemos nos aliviar com a idéia de que percebe que ainda consegue pensar e refletir e com o fato de que desse pensar e dessa reflexão conseguiu tirar um sentido ao menos para seu momento atual: não percebe o sentido do mundo.
Para os empiristas, sentido deriva-se de atos mentais que têm início no sentir. O mundo sensível é o caráter gerador. Mas como fica aquele que já não sente?
Olhou para o ventilador no teto. Girava. No girar daquelas pás, viu as cenas que lhe vieram comprovar o sentido que dera a todos os pensamentos que lhe ocorriam. Pensamentos tais que organizou cartesianamente em ordem de evidenciação:
Evidência 1: Há treze dias vira uma menina de 10 anos ser estuprada numa cena de filme. Não se comoveu. Achou até bastante natural, dadas as circunstâncias, que aquilo tivesse acontecido.
Evidência 2: Recebeu o telefonema de um amigo antigo. Atendeu-o muito bem. Fora até caloroso. Não conseguira, todavia, compreender o porquê das lamentações do amigo pelo tempo em que ficaram sem contato: A vida tem dessas coisas, disse ao rapaz do outro lado da linha.
Evidência 3: Vira, próximo ao trabalho, um corpo estirado no chão.Imediatamente, olhou para céu e, vendo que o sol estava despontando após longo período de chuva e frio, disse: O tempo está melhorando.
Evidência 4: Assistira a um filme em que crianças matavam adultos, em que pais perdiam seus filhos, em que mães morriam com bebês no colo. Quanta dor... Já fazia 3 horas que não comia e seu estômago reclamava por comida: Quanto dor...
Evidência 5: Já não sentia o coração ao dizer a um amigo “eu te amo”.
As evidências, perante elas mesmas, passaram a não ter importância. De que importava evidenciar sua falta de sentido? Agora que a evidenciara, sentia. Sentiu a dor por tudo que deixara de sentir no tempo certo e lembrou-se do que lhe disse seu pai quando era ainda criança e brincavam de cavalinho nas tardes de domingo: “Filho, viva tudo antes que, por não sentir, tudo lhe tome a vida”.
A primeira lágrima escorreu do olho direito. Desceu pelas bochechas e molhou o colchão duro. A velocidade do ventilador parecia diminuir, mas na verdade era o tempo que começara a correr em outro tempo. A segunda lágrima. A terceira. O choro.
Chorava compulsivamente pelas dores, alegrias, amores, sentenças, libertações. Chorava por todas as sensações que não sentira. Aquelas evidências eram, certamente, apodíticas como exigiria seu professor husserliano. Mas aquelas evidências... Certamente fariam sentido num livro de filosofia ou lógica, mas não lhe traziam o sentido de tudo. Apenas o ajudaram a recobrar o sentido de tudo. O sentido, existindo, estava no próprio vivenciar da vida que cobrava-o os sentimentos que não lhe foram devotados. E chorou pela menina na tela, e pelo amigo distante, e pelo homem morto e jogado na rua, e pela crueldade do filme e pela falta de amor no “eu te amo”.
Nesta noite, dormiria e sonharia que tocava e era tocado pelo mundo lá fora.

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