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domingo, 16 de setembro de 2007

Amor, saudade, ciúme (parte III)

A sombre de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma.
(Clarice Lispector)
Foi só por um segundo, todo o tempo do mundo. E o mundo todo se perdeu.
(Cláudio Lins)
O corpo era um pecado ao qual ainda não haviam se permitido. Agora já não havia como. O corpo, aquilo a que não se permitiram, seria uma concretude, talvez pesada, talvez nem tanto.
Metrô em cidade grande é sempre uma multidão, todos aqueles corpos estranhos se esbarrando. Por vezes, sentia-se mesmo violado. O toque da corpulência estranha que o outro era lhe incomodava.
A mochila nas costas complicava mais ainda as coisas. Havia de ter ali espaço para ambos: para ele e para sua única companhia naquela cidade. Nela, mudas de roupa e o canivete, memória indelével de uma percepção súbita de que algo deveria ser feito; nele, a ansiedade e o medo.
Conseguira dormir na estrada. De nada adiantaria imaginar e repassar a cena do encontro. E conseguiu deixar-se dormir, o sol na cara e o ar viciado e frio do ônibus. Sempre preferira o vento no rosto, bagunçando-lhe os cabelos, que o ar condicionado e vidros fechados.
No metrô também não havia muita escolha. O ar entrava pelas frestas no teto e pelas diminutas vidraças abertas. Ao menos, não era gelado.
Subitamente um pensamento invadiu-lhe as idéias claras e organizadas e já não era possível parar, pegar o caderno e tentar organizar cada coisa que pensava. Não havia espaço naquele vagão para isso. ALém do mais, já havia feito isso no caminho entre sua cidade e a cidade do outro, sem muito êxito. Sentia falta das estrelas e do céu escuro, de sua janela e de sua insônia.
Só mais duas estações e precisaria trocar de composição. Era distante o bairro do rapaz. Três linhas de metrô diferentes. Já estava na segunda agora. Mesmo próximo, ainda temia. O caminho era desconhecido. E ainda aquele pensamento, desconsertando-lhe as idéias: "E se não encontrar a casa dele? Ou e se encontrar e ele não estiver em casa?".
O melhor talvez seria resignar-se e dar tudo como resolvido, retornando com sua companheira para sua cidade, tentando convencer-se de que o destino, a casualidade, é um bom solucionador. No entanto, e o que fazer de toda a coragem, de toda a determinação e vontade de resolver tudo e, ao fim e ao cabo, por intermédio do instrumento adquirido no camelô próximo à estação de ônibus, obter o êxito esperado em seu empreendimento?
O medo é terra fértil. E se nada saísse conforme o planejado?, começara a pensar. E se encontrasse a casa do rapaz, se encontrasse o rapaz em casa e, mesmo assim, havendo planejado e ensaiado diversas vezes cada palavra e movimento, e se ainda assim nada saísse conforme o esperado?
Um bom caminho seria buscar, em meio ao ar bolorento e de todos os corpos em contato no metrô, um sinal que lhe desse alguma direção, qualquer que fosse ela. Bastava ser capaz de aceitá-la, de ouvir o sinal ou de vê-lo e, abnegando qualquer decisão anterior, seguir o rumo indicado.
Começou então a atentar para cada pessoa e barulho no vagão. Esqueceu-se, contudo, de atentar primeiramente para o fato óbvio de que sinais nem sempre são claros. São símbolos estes sinais que ele procura, símbolos aos quais compete apenas ao expectador dotar de significados. Assim, acabará por dotar o sinal recebido com o significado que mais bem lhe servir, sem deixar que o real significado venha realmente ao seu encontro.
Foi assim que, na estação Centro, percebeu um rapaz embarcando. Este, havendo parado próximo a porta, com um movimento de cabeça, iniciou um choro doloroso e silente. Era um rapaz pequeno, pele morena, cabelos escuros e curtos, deveria ter cerca de 20 anos, e estava chorando no metrô, as mãos agora por sobre os olhos para esconder as lágrimas. Súbito, enxugou as lágrimas, respirou profundamente e pegou o celular no bolso da bermuda. Não era possível, em meio às vozes dos estranhos no vãgão, ouvir as palavras ditas, mas havia certa dor na expressão, certa tristeza. Seria este o sinal?
- Se não voltar para casa, se não desistir de meu empreendimento, passando por cima de meu orgulho bobo, sou eu que voltarei chorando. Serei eu quem estará com o celular em punho, chorando meus problemas com algum amigo que, a esta altura, ainda estará distante, em minha cidade.
Aguardou ansiosamente pela próxima estação. Era nela que pegaria a linha que o levaria até a casa do rapaz. Mas já havia tomado sua decisão: tomaria o mesmo trem, quando este estivesse retornando. Iria para a rodoviária e voltaria para onde, desde sempre, deveria ter ficado.

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