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domingo, 16 de setembro de 2007

Amor, saudade, ciúme (The final Cut)

Outras notícias
do corpo não quer dar, nem de seus gostos.
Fecha-se em copas:
“Se você não vem depressa até aqui
nem eu posso correr à sua casa,
que seria de mim até o amanhecer?”
Concordo, calo-me.
(Carlos Drummons de Andrade)

O pior da noite é a impossibilidade de ser dia. Há situações várias em que tudo o que nos resta é aceitar e, resignados, seguir o rumo que se nos apresenta.
O caminho até a rodoviária não fora tão longo nem tão atordoante quanto poderia ser. Um certo alívio lhe acalentava o peito. "O que não tem solução, solucionado está", dizia seu avô, ele lembrou-se.
Não que não houvesse solução. Voltar era uma solução. E fora esta que lhe apresentara o mundo quando a este ele pedira um sinal.
Vencer seu orgulho nem fora uma tarefa árdua. Pensava que não havia falhado. Pelo contrário, havia conseguido entrar em contato com o mundo de tal modo que o mundo lhe disse o que fazer através do rapaz que embarcara na estação Centro e chorara tão logo as portas fecharam-se atrás dele.
Agora, ali naquela fila para compra de passagens, nenhum pensamento rebelde lhe invadia o peito. Nada o tocava. Havia era mesmo um pequenito sorriso nos lábios, modo encontrado por ele de evitar entrar em contato consigo mesmo.
A fome fizera-o comprar uma maçã com um ambulante. Como a fila estava grande, devoraria a maçã ali mesmo e, não podendo lavá-la, dobrou o joelho esquerdo, apoiando-se com o pé na outra perna, apoio o mochila na coxa e tomou para si o canivete.
Descascou a maçã lentamente. À medida em que os pedacitos de casca caiam no chão e ele os ia recolhendo e guardando na mesma mão com que segurava o canivete, pensava sobre como as coisas revelam-se a nós: por baixo da casca, há um saboroso fruto carnudo esperando por ser mordido. Talvez, por baixo de todas as dificuldades, de todo o ciúme, de toda a saudade e de todo o amor que sentia pelo outro, houvesse um fruto carnudo e apetitoso apenas a espera de ser descoberto. Haveria, talvez, uma outra oportunidade. Esta vez apenas não era a vez ainda, quem sabe?
Guardou os pedaços de casca num dos bolsos da calça junto ao canivete. Depois se desfaria deles em alguma lixeira, tanto dos restos quanto do instrumento comprado inutilmente. À primeira mordida, sentiu o suco adocicado da fruta descendo-lhe pela garganta, como um bálsamo. A carne do fruto invadiu-lhe o corpo. Sentiu-se acariciado por aquela fruta mordida.
Olhou ao redor. Ainda algumas pessoas à sua frente. Talvez fosse de se estranhar tanto movimento aquele horário. Os vendedores nos guichês pareciam nervosos. Certamente não esperavam tanta procura por passagens aquela hora do dia e viram seus planos de conversar sobre o futebol da véspera frustrados por um cliente, e depois outro e mais outro.
Não gostava dos passos lentos em filas. Na verdade, era um paradoxo: não gostava dos passos lentos como também não gostava quando alguém esperava que o espaço existente entre si e o outro fosse maior para só então andar. Sentia-se traído pelo outro, este que lhe tirava o direito de escolher entre dar um pequeno passo ou esperar para dar passos maiores.
Bom seria se bastasse o carinho de um fruto ou a decisão ditada a nós pelo mundo para que realmente os problemas se solucionem. Tão lentamente quanto descascara a fruta, um sentimento lhe apertava o peito. Mas era um processo tão paulatino que nosso rapaz conseguira disfarçar para si mesmo o que se passava, aumentando o riso leve que havia posto nos lábios para não entrar em contato consigo mesmo. Contudo, como um balão de ar a encher-se, chegou o momento em que o sentimento estourou-se e virou idéia: o que ele faz agora na companhia do outro?
Era o mesmo pensamento que o fizera sair de sua cidade. O mesmo sentimento que não o deixara dormir na noite anterior. O que fazer daquilo? Como livrar-se daquele sentimento? Seria possível virar a dor pelo avesso?, pensou ele.
Deixou a mão correr por sobre a calça e sentiu-o. O canivete, o instrumento que lhe fora necessário e que então o deixara de ser... A concretude daquela ferramenta ainda poderia servir-lhe de algo.
- Mas que idéia mais disparatada - falou baixinho, apenas para si.
Mas... Porque disparatada? Ele apenas a ele pertencia. Entretanto, e aquelas pessoas todas ao redor? O que diriam? E o que tinham a ver com sua história? Não precisavam ser testemunhas daquele desfecho. "Sim, o melhor é esperar pelo momento certo", decidiu, já pegando o canivete no bolso da calça e guardando-o novamente na mochila, como que para distanciar-se da idéia.
Foi com o pensamento ainda confuso que chegou diante do atendente.
- Uma passagem para ..., por favor - pediu.
- A que horas? - perguntou o atendente. - Hein, ou, a que horas você quer ir? - Repetiu ele de modo rude, ao notar que nosso rapaz não lhe dera atenção.
- Ah, sim... Bem, qual o próximo ônibus?
- Parte em meia hora. Plataforma 47. Vai?
- Sim, está ótimo.
- Vai pagar como?
- Cartão... - ao que invadiu-lhe um pensamento ético: já não seria possível pagar a fatura do mês seguinte. Talvez a família pudesse quitar as despesas, mas não queria deixar para eles nenhum fardo além do da própria morte - Não... Perdão. Ainda dá tempo de mudar? Prefiro se puder pagar à vista.
- Olha, não dá pra gente ficar trocando toda hora. É a vista mesmo... Ou o senhor ainda vai pensar em outra coisa antes de eu emitir o bilhete? - respondeu impaciente o atendente.
- À vista, por favor.
- 79 reais, senhor.
- Ah, sim. Um instante, por favor.
O acaso é um mestre. Tem seus ardis. Certo que nosso rapaz não perceberá mas, sim, apenas agora é que o mundo realmente entra em sintonia com ele. Enquanto pegava a carteira e o dinheiro para comprar o bilhete sob os olhos raivosos do atendente, ouviu o toque de seu celular. Buscou-o rapidamente num dos bolsos da calça e, com um sorriso amarelo dirigido ao empregado da companhia de ônibus, atendeu a ligação: era ele.
- A.. Alô? - titubeou nosso rapaz.
- Alô. ... ?
- Sim, sou eu, querido. Está tudo bem? Sua voz está estranha...
- Acabei de almoçar com ele.
-Com ele?... - prefriu fazer-se de desentendido.
- Você sabe... Saí mais cedo do trabalho hoje. Chamei-o para almoçar comigo no centro da cidade. É um restaurante que a gente gosta. Achei que ia caber bem à situação.
- Sim...
- É... Bem... - falava sofregamente. Era como se quisesse algo. Precisava de algo que ainda não conseguia dizer. Enquanto falava, tentava organizar as idéias e os sentimentos em seu peito - Contei para ele a verdade. Disse que temos nos falado, disse que ainda não te conheço, disse o quanto tempo nos falamos todas as noite, como nos conhecemos. Enfim, contei tudo.
- E ele?
- Saiu chorando. Pegou o metrô. Ainda não nos falamos.
- E você?
- Eu... Eu quero você aqui, agora.
- Eu p...
- Não diga nada... Sei que é difícil. Sei que...
- Moço, por favor, cancela a passagem - disse nosso rapaz para o atendente, que olhou-o lívido de raiva.
- Passagem? Onde você está?
- Onde VOCÊ está?
E soube assim nosso rapaz que ficaria mais uns dias ainda naquela cidade desconhecida.

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